O HERÓICO FEITO DE HUONG TSUI, O SHERPA

DE TODOS OS LUGARES NA TERRA, O MONTE EVEREST é mais próximo de Deus. A montanha gelada, inóspita e prepotente se eleva numa arrogante -e inútil- tentativa de alcançar os céus, até chegar a vertiginosos 8.848 metros de altitude. A neve eterna em seu cume venceu todos os seus desafiantes e se manteve intocada por séculos infindos até o memorável 29 de maio de 1953, quando Sir Edmund Percival Hillary finalmente dobrou a arrogância de Chomolungma, a deusa mãe do mundo, e suas pesadas botas conspurcaram pela primeira vez desde a aurora dos tempos a alvura titânica. O bravo neozelandês embriagou-se até o êxtase da inédita e poderosa e inebriante e vã sensação de contemplar a amplidão do mundo de um lugar jamais alcançado por outros olhos; de não ter acima de si ninguém além das portentosas entidades que habitam as esferas celestes. Esta é uma espécie de solidão que raros homens tiveram o privilégio de experimentar (de sofrer?). Ainda que sua extensa comitiva fosse inicialmente composta por cerca de quatrocentos experimentados alpinistas, Sir Edmund, porém, chegou praticamente sozinho ao teto do mundo; da mesma forma que o Santíssimo de Israel separou apenas trezentos valentes do exército de Jerubaal para desbaratar o arraial dos midianitas, a montanha atroz proibiu a subida dos indignos, permitindo que somente Sir Edmund chegasse ao teto do mundo. Ele, e Tenzig Norgay, sherpa.

A façanha do irrequieto alpinista neozelandês assombrou o mundo e despertou a cobiça de todos; desde então, outros mil e quatrocentos pares de botas de nacionalidades diversas pisotearam a neve do cume do Everest. A montanha, porém, não se deixa vencer sem combate; mais de duzentos homens já deixaram seus corpos congelados ao longo de suas impiedosas escarpas. Inúmeras expedições trazem, ano após ano, seu tributo de almas à implacável Chomolungma. Em 1996, a montanha esteve especialmente sedenta, embebedando-se do sangue de quinze vítimas sacrificiais.

O elemento comum a cada uma destas ondas de aventureiros é a presença ubíqua dos sherpas. Sem os minúsculos carregadores e sua extraordinária força; sem seu conhecimento dos caminhos e humores agros das encostas vorazes; sem sua estoica natureza que os torna aptos a sobreviver na montanha hermética, chegar ao cume é tarefa que chega às raias do inalcançável; desde a façanha de Sir Edmund, o único humano a alcançar sozinho o topo do mundo foi Reinhold “Mad Man” Messner, em 1978; porém, sua façanha não deve ser levada em conta, pelo simples motivo de que Messner é um Yeti -fato sobejamente conhecido entre os montanhistas de todo o mundo.

Os sherpas são criaturas peculiares. Enquanto alpinistas afluem dos quatro cantos do planeta até a sua montanha em busca da glória mundana, para a maioria dos pequenos carregadores, atacar o topo do mundo representa pouco mais do que uma oportunidade de fazer os preciosos dólares ocidentais migrarem das mãos de seus detentores originais para as suas próprias. A familiaridade com que estes duendes gelados se relacionam com a montanha e sua primazia física em relação aos demais humanos se revela nas assombrosas façanhas registradas por alguns deles. O sherpa Apa atingiu o cume do Everest incontáveis dezessete vezes (o sistema numeral sherpa declara que qualquer número acima de doze é infinito, crença similar à de Asterion, em relação ao número quatorze), a maior quantidade registrada por um humano(?). Babu Schhiri permaneceu no ápice vertiginosas vinte e uma horas, sem se utilizar de oxigênio extra, recurso imprescindível para os homens comuns. Pemba Dorje deixou o sopé da montanha em 21 de maio de 2004, subindo pela temida face Sul, e pouco mais de oito horas depois, já havia humilhado o cume a seus pés.

Os feitos dos pequeninos carregadores nepaleses são relatados com fervor religioso ao redor da fogueira e louvados aos quatro ventos por montanhistas de todo o orbe; entre os próprios sherpas, tais conquistas não passam de ingênuas disputas, passatempos, divertidas e inúteis competições de caráter juvenil. Não; entre eles, o nome que não se pronuncia sem sincero espanto por cada homem, mulher, ancião ou criança sherpa em cada aldeia é o nome de Huong Tsui, filho de Humei Tsui, carregador, pastor de cabras. O jovem Huong Tsui executou, para o povo do Leste, a tarefa verdadeiramente inaudita. Sua gloriosa conquista ecoará por gerações em todas as geladas cabanas no Nepal.

Huong Tsui contava quatorze primaveras. Com a resignação de quem desconhece outra vida, já estava pronto para acompanhar o velho pai na sina de carregador quando o acaso o deparou com Casper Evans MacGregor, montanhista escocês. Por algum insondável mistério da providência ou da sorte ou do destino (os da seita dos hipotéticos declaram ser, todos estes, meras derivações do nome do deus definitivo), o enorme escalador ruivo afeiçoou-se ao garoto franzino de olhos espertos e prometeu a seu pai que, se fosse bem sucedido em sua tentativa de alcançar o topo, assumiria a tutela do pequeno Huong Tsui. Um MacGregor exausto, exitoso e feliz desceu praticamente ileso da montanha (a perda de pedaços de orelhas, narizes e dedos dos pés em razão de congelamento é desprezível para os alpinistas, não sendo sequer contabilizada) e retornou às suas queridas Highlands, levando consigo o novo pupilo. A chegada do menino foi uma inesperada e renovadora notícia para a senhora MacGregor. Huong Tsui foi acolhido com alegria.

Para alguém oriundo de um povo cuja língua primitiva ainda desconhece a forma escrita, a alfabetização de Huong Tsui deu-se de maneira assombrosamente rápida; aluno aplicado e voraz, o pequeno nepalês galgou com ávido desassombro todas as etapas da tortuosa escalada acadêmica, tornando-se o primeiro -e até os dias de hoje, único- sherpa a ostentar o diploma, conquistado na prestigiosa Oxford, de Doutor em Geopolítica da América Latina, subcontinente do qual jamais ouvira falar em suas duas primeiras décadas de existência. Seus concidadãos montanheses mais supersticiosos o veneram; consideram-no a encarnação da sabedoria de Chomolungma.

Porque, para um sherpa, subir e descer a montanha, deixar nas ríspidas curvas das trilhas pedaços congelados de seus próprios corpos, contemplar os cadáveres mumificados pelo gelo abandonados ao longo do caminho até o topo, viver e morrer em suas terríveis encostas, continuamente assoladas por ferozes avalanches e tempestades, é algo tão natural e instintivo e inexorável e parte das circunstâncias e contingências da vida quanto acordar pela manhã, sentir frio ou calor, comer, respirar, fazer sexo com suas duras mulheres. Para os simplórios sherpas, o verdadeiro assombro, o inextricável mistério da vida se encontra nas extraordinárias ruas de Nova Iorque ou Londres ou Paris, esses profundos, caóticos, mortais labirintos de concreto e aço, povoados por homens e mulheres insaciáveis; labirintos onde trovejam, frenéticos, terríveis dragões de metal e borracha, ávidos por dilacerar carne humana; labirintos de computadores e celulares e luxo descartável e placas de publicidade e ações na bolsa de valores; para um sherpa em sua primitiva e plena simplicidade, incerto e perigoso é transitar entre as vertigens da traiçoeira existência do moderno homem ocidental.

O Doutor Huong Tsui visita seus pais em março, quando o frio já não é tão atroz. Ao caminhar pelas vielas de sua aldeia natal, recebe oferendas, homenagens, súplicas, pedidos de casamento. Da janela de seu antigo quarto ele contempla as neves eternas de Chomolungma. Sabe que, um dia, também ele precisará empreender a famosa escalada; a porção selvagem de sua alma sherpa –ainda que erudita, domesticada- anela pela vertigem do topo, como a corça anseia pela corrente das águas; da mesma forma instintiva e primeva que o coração do tigre encarcerado anseia pelas inextricáveis profundezas da floresta natal.