Estória de um destino a dois.
Desde o momento em que trocaram as primeiras palavras, as palavras que são ditas com os olhos, souberam que seriam o destino um do outro. Souberam disso e a partir de então a única angústia que atormentava cada um dos dois corações era que não sabiam o momento certo em que se encontrariam de verdade e superariam aquele êxtase metafísico. Ele escrevia e trocava, nas noites, seus versos e poemas por possibilidades de consumir a noite no que quer que lhe parecesse divertido, e ela não perdia uma oportunidade de trocar as sucessivas diversões vazias de suas noites por qualquer coisa escrita de mais poético e versejado que lhe aparecesse.
Agora, em meio ao beijo encarnado que de cada um se alimentavam, ele pensava em quanto já a amava, e que ela não levava (nunca levara) essas coisas muito a sério, e em como ele abriria os olhos e veria os olhos dela ainda fechados por vários segundos (aproveitando aquele prazer na própria escuridão particular) e se sentiria bem por isso, e depois pensaria na pouca afeição cardíaca que ela tinha por ele, que só era pouca porque ele imaginava isso e comparava com o amor dele por ela, e segundos após, pensaria e iria lhe dizer que gostaria de ter a conhecido muito tempo antes, que ela não tivesse ninguém mais além dele na vida, que ele fosse único e incomparável para ela, e pensava num jeito de fazer a história da estória deles, assim. Ela pensava que quando abriria os olhos veria ele a olhando com aquele olhar que parecia idolatrar a sua pele e o seu rosto e seus olhos, e saberia novamente que ele sim, era merecedor de sua dedicação amorosa, que ele, com aquela sensibilidade particular, havia conseguido ser o que ela procurara por toda a vida, e interrompeu carinhosamente o beijo e disse à ele:
- Queria ter conhecido todas as pessoas possíveis antes. Assim, eu teria sempre a certeza de que ninguém mais além de você é a pessoa que procuro.
Ele não conseguiria ouvir aquelas palavras se não fosse com o coração, e assim, sentiu-as com certo impacto pontiagudo. Confundia-se se perguntando “onde estaria a pureza do amor?”, e não se conformava com tudo aquilo que lhe parecia libertinagem. Tentou acalmar-se por alguns segundos, para tentar reorganizar as ideias sem rancor. Pensou, como pensava com frequência, que apenas ele tinha o dom supremo do amor, e pensando nisso, surgiu-lhe na boca a frase que disse à ela:
- Nem você sabe o quanto eu gosto de você, e por isso, farei com que não me conheça quando nos conhecemos, farei com que seja depois, quando já quiseres me conhecer e já estiver cansada de outros conheceres inúteis.
Ela olhou-o com um leve sorriso, daqueles que se dão quando se demora alguns segundos para entender o que foi dito. E depois sorriu, já um sorriso de quem entende a brincadeira e o riso dizia “mas já nos conhecemos, não há como isso acontecer”. Mas ele havia dito a sério, e da mesma forma, continuou:
- Esqueceu que sou escritor? Posso voltar no tempo e voltar o tempo. Posso voltar ao tempo que nos conhecemos e fazer não nos conhecermos quando nos conhecemos.
Ela, que fechara o riso quando ele reiniciou a fala, mirou-o diretamente nos olhos, era um olhar patronal, um olhar que o repeliu alguns centímetros, um olhar de poder, como são os olhares femininos quando as mulheres concluem que é hora de usá-los, como se elas soubessem que possuem este olhar desde o nascimento, mas que é preciso guardá-lo para alguns momentos apenas na vida, como se fossem uma reserva numerada e finita e agora era um desses momentos em que ela julgou e concluiu que deveria usar, e olhando-o assim respondeu:
- Não, não pode. Nenhum pode. E sabe por quê? Por que os escritores dependem dos personagens e não o contrário. As personagens é que decidem o rumo da estória, os escritores apenas escrevem depois o que elas querem que seja escrito.
- Mas os personagens são criações dos escritores...(disse ele já com a convicção abalada).
- Não está entendendo. – interferiu definitivamente ela – É exatamente como te falei. E não vai conseguir fazer isso, não vai voltar, por que eu sou a personagem.