O julgamento
Um homem inteligente queria ser mais inteligente ainda. Para tanto (porque balbúrdias atrapalhavam seus estudos) saiu da urbe e foi viver no mato; então, bem lá no fundão da floresta, onde só se ouviam os bichos, a chuva e os ventos, fez para si e seus livros e apontamentos uma casa de taipa em vão único, com porta ao sul, janela ao leste, um fogareiro no canto mais escuro e rede eternamente atada aos caibros do telheiro de tímido pé direito.
Muito tempo se passou. O homem estudava e estudava, escutando a mata; escutando e escutando, estudava a mata, até que aprendeu a língua dos pássaros e das grandes árvores, das lagartixas, das ratazanas e dos pirilampos, dos caniços à margem do riacho e, até, a linguagem do próprio riacho. Aprendeu também os sinais da névoa matutina, dos multi colorantes raios de sol, do frescor úmido após as tempestades e os significados das inúmeras e sonoras palavras em forma de canto, no fim da tarde (mas que, por vezes, se aquietavam).
A cada manhã o homem inteligente acordava mais grato e feliz. A floresta o tratava como igual, e ele sabia os anos, os nomes e as seivas de cada planta, cada animal, cada brisa... Ela se desnudava para ele como a última amante (que deixara em prantos, mas deixara); em reflexo às vontade e necessidade do homem, a floresta a ele se desnovelava, e desvalendo-se de seus mistérios, o deslumbrava.
Um dia aconteceu grande rebuliço: ao longe e chegando mais e mais perto um tropel de cavalos e gritos humanos estancou o homem à porta da edícula; ali ele ficou em compasso de espera enquanto bichos, folhas e águas sussurravam entre si.
Quando os cavaleiros surgiram, o eremita os saudou e indagou o que faziam por bandas tão longes. "Perseguimos um fugitivo da cadeia da vila", foi a resposta do que se disse Capitão da Guarda.
O homem inteligente perguntou sobre a culpa do foragido, e eis que lhe foi dito de crimes horrendos, do juri sem dúvidas e sem perdão. "Ele será enforcado no pátio da vila às primeiras horas de amanhã", garantiu o Capitão, cofiando os bigodes.
"Bem feito!", falou o homem que vivia isolado. Os soldados despediram-se e continuaram a se embrenhar pelo mato, no encalço de outro homem só.
Após alguns instantes, o homem inteligente e solitário estranhou o profundo silêncio da floresta. Querendo notícias do mato, apurou bem os ouvidos mas escutou apenas o ruído do vento nas folhas, do riacho rolando sobre as pedras, dos pássaros diurnos gorjeando, gorjeando.... um guincho de porco-do-mato mais além, o zumbido de um besouro-mangangá, um balido intermitente, o relinchar dos cavalos... e gritos humanos.
O homem inteligente e só morreu muito tempo depois, mas nunca mais conversou com a floresta. Restou-lhe o consolo de ser por ela conhecido.
(Há quase quarenta anos li uma estória com esse enredo na biblioteca pública de Morada Nova-CE; tal conto me enlevou e, com certeza, muito contribuiu para minha formação emocional, intelectual e ética. Por tempos estive indecisa sobre escrever a história: além de não ser 'fruto de meu pomar', não posso precisar o autor ou o título, pois os registros da leitura e o livro não mais existem no citado local. Por gentileza, quem reconhecer o conto e souber seus dados informe em comentário ou através de contato de visitante. Antecipadamente grata, Gina Girão)