Senhor do Medo
Senhor do Medo
O gondoleiro tinha a forma de um grande urso que ficava empoleirado em uma das extremidades da gôndola comprida e silenciosa. Espetava a água com seu remo longo e prateado, olhava para o escuro distante com seus olhos amarelos e opacos. Em nenhum momento ele olhou para o garoto que estava encolhido do outro lado da gôndola. David tinha no máximo 12 anos e, com certeza, era mais magro, mais tímido e mais baixo do que os outros garotos que tinham sua idade. Ele estava com frio, abraçava os joelhos na tentativa de ocupar o menor espaço possível, sentia-se mais seguro assim. Seus olhos verdes e redondos não desgrudaram nem por um segundo da silhueta humanóide que fazia a gôndola se mover. O medo havia enrijecido suas articulações e mesmo que houvesse alguma possibilidade de fuga, ele não conseguiria aproveitá-la. Estava paralisado. As nesgas de escuridão pulsavam ao seu redor, tocavam a superfície do espelho de água negra com seus dedos nebulosos, dedilhavam alguma melodia noturna e muda. Depois de algum tempo que, talvez, tenha sido uma pequena eternidade ou apenas um estalo, a gôndola parou. Estavam diante de uma plataforma de pedra que ficava exatamente na altura da superfície do lago. O gondoleiro subiu na plataforma e seu peso fez toda a estrutura tremer. David soltou os joelhos e também subiu. Estava tremendo, mas conseguiu se mover.
O monstro ficou olhando para ele, como se esperasse alguma coisa. Era alguns metros mais alto do que ele, tinha os ombros largos e suas mãos quase tocavam o chão. David olhou ao seu redor, em busca de alguma coisa que poderia lhe trazer confiança. Não havia nada ali que podia ajudá-lo. Então, sem outra opção, ele fechou os olhos. Lá também estava escuro, tão escuro quanto o lado de fora. Mas em algum lugar havia algo familiar, ele sabia. Ele não estava vendo, mas sabia que havia algo ali. Ele se agarrou à primeira coisa sólida que encontrou e emergiu de dentro de si mesmo. Abriu os olhos e o gondoleiro continuava lá, como um monstro de sombras sólidas. David se aproximou e quando abriu a boca para falar o gondoleiro se curvou, ajoelhou-se, como se prestasse alguma reverência. O garoto olhou para o monstro sem entender o que ele fizera.
- Por que fez isso? – David perguntou.
- É assim que costumo tratar meus senhores – a voz do gondoleiro era rouca e áspera.
- Seu mestre está aqui? – David olhou para os lados. – Não há ninguém além de nós.
- Você é meu senhor – o gondoleiro disse sem erguer o rosto.
- Não sou senhor de ninguém.
- Você teve medo, sentiu muito medo em algum momento? – o monstro perguntou.
- O que?
- Há algum medo forte dentro de você, posso sentir o cheiro dele.
David pensou por alguns instantes. – Talvez haja sim – ele disse com receio.
- Por isso você é meu mestre.
- Sou mestre de um gondoleiro?
- Não me chame assim, me chame apenas de Gondo e não se engane quanto ao meu trabalho.
David ficou calado.
- Dê-me o que comer, dê-me forças. É a única coisa que lhe peço em troca dos meus serviços – ele levantou-se. – Tenha medo, é tudo o que você precisa fazer.