EU E O EX

Hoje cedo fui ao cemitério cumprir aquela via crucis que nunca cumpri; mais tarde terei ensaio de um curta metragem que farei em São Paulo, sobre um ex-presidente. Amanhã ensaiarei um musical para o qual fui convidado, um musical sobre a vida do compositor, cantor, sambista e poeta baiano Batatinha. Caminhei por todo o cemitério pensando no motivo que os produtores me convidaram para esse trabalho, não sei cantar e muito menos dançar! Mas acho que eles querem isso mesmo, um cara desafinado e mais duro que o quiabo renegado do carurú. Cheguei ao túmulo do Raul Seixas, de quem sou fã ardoroso e comecei a chorar, já não sei se choro sentindo falta dele ou se é uma representação, as coisas se misturam incrivelmente, fogem ao meu controle. Gostaria que tivessem colocado uma música daquelas católicas para eu chorar de maneira genuína. Olho para o lado e quem vejo? O ex-presidente da República.

Chorando!O ex-presidente chorava sobre o túmulo do Raul! E chamava por Raul! Chamava literalmente, com palavras, que fique claro! Aproximei-me pensando em minha desafinação, eu não conseguia parar de pensar nisso. Cumprimentei-o, ele me abraçou com força, quase me quebrou as costelas. Seus cabelos grisalhos estavam molhados de suor, aqui em Salvador está um calor infernal, mas ameaça chover. Beijou-me a face, olhou-me nos olhos e disse que estava usando uma calcinha. Como?, perguntei tentando me desvencilhar. Eu estou usando uma calcinha. E me soltou. Me levou a um canto, afastado dos fãs e sósias do Raul. Me disse que sempre usa calcinha em eventos assim. Que sempre despachou de calcinha. Nos afastamos, ele respirava fundo, disse que precisava desabafar com um anônimo. Mostrou a peça íntima pela lateral da calça cinza. Era verdade, fiquei atônito, comecei a tremer não sei se de medo, de satisfação ou pela surpresa insólita. Uma calcinha amarela, a cor das putas da Grécia antiga, aquela potente antes dessa falida da zona do euro. Um segurança vigiava de longe. Não tirava o olhar de nós dois, isso me dexoi constrangido, mais que calcinha. Mas por que despachar de calcinha?, eu quis saber. Uma sensação de poder maior que a faixa! A presidencial, perguntei com o brilho da minha idiotice e do rosário de minhas obviedades. Uma sensação de poder muito maior, disse ele arregalando os olhos. É uma pessoa renomada, conhecida no mundo inteiro!, pensei. Como pode usar uma calcinha? E ainda por cima amarela! Um fã do Raul aproximou-se cantando a música da aranha. Ou era da mosca na sopa? Ou era do pluc plact zum? Não importa. Quando dei por mim o ex-presidente ia longe escoltado pelo segurança. Agora penso na calcinha amarela do ex-chefe da nação e no meu canto desafinado. E na minha anti-dança.

Uarlen Becker
Enviado por Uarlen Becker em 01/03/2013
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