KAFKA - DIVAGANDO A METAMORFOSE

“Quando certa manhã Gregor Samsa despertou, depois de uma noite mal-dormida, achou-se em sua cama transformado em um monstruoso inseto”. (KAFKA, 2003, p. 17)

- Que me aconteceu? – perguntava-se ele preocupado.

De repente a cama ficara grande demais para ele. Sentia-se literalmente um pontinho escuro sobre um lençol branco. Examinou-se atentamente. Adquirira uma carapaça dura, algumas pernas a mais, um ventre achatado, onde se pronunciavam algumas ondulações e um par de antenas. Engraçado. Não se lembrava de ter bebido nada a noite passada.

Gregor olhava-se ainda mais intrigado. Como teria se transformado naquilo? Teria sido abduzido? Teria sonhado? Teria morrido e reencarnado? Não achava explicação. Melhor adaptar-se à sua nova forma de vida, ele pensou. Escorregou lentamente pela cabeceira da cama e foi até o espelho. Queria ver sua nova imagem. Não era das mais agradáveis, mas era assim que teria de viver daqui para frente – ele pensou já se conformando com a ideia.

Entretanto, apenas uma coisa o incomodava. Como se apresentaria assim à sua família? Como eles o receberiam? Não, melhor dar mais um tempo antes de mostrar-se a eles. Não estava preparado. Como sua profissão exigia que viajasse bastante, achou melhor deixar que eles achassem que havia recebido um telefonema no meio da noite e tivesse viajado às pressas. Afinal, já acontecera outras vezes. Melhor deixar assim.

Estava ainda a mirar-se no espelho, quando uma batida súbita na porta o sobressaltou. Na certa era sua mãe que vinha chamar-lhe para o café. Assustado, correu para trás do espelho. Ela enfiou a cara pelo vão da porta e percebendo sua ausência, fechou-a novamente. Ele respirou aliviado. Estava salvo. Olhou para o relógio. Marcava oito horas. Em meia hora não teria ninguém mais na casa e ele poderia sair do quarto.

Enquanto esperava o tempo passar, Gregor resolveu testar as habilidades que adquirira junto com seu novo corpo. E pôs-se a correr pelo quarto. Admirou-se com a graça e a leveza de seus movimentos. Jamais poderia correr daquela maneira em sua antiga forma de vida. Mas de súbito sentiu alguma coisa dentro de si se revirando. Talvez fosse seu estômago. Não sabia se ainda tinha um estômago. Precisava se informar sobre isso.

Olhou novamente o relógio. Mais de meia hora havia-se passado. Podia sair do quarto. Passou sem dificuldades por baixo da porta e se dirigiu até a cozinha. Correu até a lata de lixo embaixo da pia, mas a encontrou vazia. Alguém já o havia recolhido. Paciência. Daria um jeito. Decidiu entrar pelo ralo da pia e descer pela tubulação. Nunca pensara que um dia conheceria a rede de esgoto de seu prédio, mas era o que estava acontecendo. Encontrou um emaranhado de canos pelo caminho com todo tipo de sujeira que se possa imaginar. Sentiu-se enojado, estômago embrulhado.

Nunca pensara em conhecer o mundo subterrâneo, que por muito tempo esteve sob seus pés. Aquilo não era vida. Aquilo era pura degradação. Uma tontura invadiu-lhe o corpo e cambaleante procurou uma saída. Precisava de ar. Precisava sair daquele labirinto imundo e fétido. Não merecia uma existência assim. O entusiasmo que em princípio sentira em experimentar uma nova forma de vida esvaiu-se como água pelo ralo. Queria sair dali. Queria voltar a ser o que era. Queria ser Gregor Samsa novamente. Mas quem era Gregor Samsa?

Súbito encontrara uma fenda na parede e saíra para o outro lado. Estava atrás do prédio. Vendo a rua lá embaixo, lembrou-se que tantas vezes por ali passara apressado seguindo seu caminho. Desceu até chegar ao chão nos fundos do prédio, onde o lixo era depositado. Ainda atordoado pelas imagens que presenciara, Gregor chocou-se contra um objeto. Horrorizado, jogou-se para trás. Era o seu fim, pensou agoniado, vendo aquele animalzinho olhando fixo para ele à sua frente. Mas estranhamente ele não o atacava e observando-o atentamente, Gregor percebeu que havia algo de errado com ele.

- Não tenha medo. Não vou atacá-lo. Estou morrendo – ele lhe disse com a voz fraca.

Sem conter a curiosidade, Gregor quis saber:

- O que houve? Sua pele...

- É uma longa história... Saí à noite passada para dar uma volta e procurar comida e entrei por uma janela. Estava escuro e silencioso. Mas acho que era um quarto. Eu estava vagando pela parede, quando subitamente alguém acendeu uma luz e tentou me matar. Da primeira tentativa escapei...

- E depois o que aconteceu? – indagou Gregor, sentindo o alarme que se aproximava.

- Me escondi atrás de um móvel e fiquei lá por um bom tempo. Julguei que estava seguro, apesar da luz continuar acesa e tudo ter ficado silencioso novamente. Entretanto alguma coisa me denunciou e...

- E depois? E depois? – perguntou Gregor cada vez mais alarmado.

- Então... de repente recebi do nada uma borrifada de veneno e tonteei. Saí correndo, meio cambaleante, mas não levei muita sorte. Uma bordoada me pegou no meio do caminho e fez esse estrago que você está vendo. Agora minha pele está caindo... e como se não bastasse, acabo de perder minha cauda levada por um pardal.

Era realmente a imagem da morte, aquela lagartixa ali estendida naquela pá de lixo, sem a cauda e com o corpo em carne viva. Gregor sentiu-se extremamente penalizado e tentou confortá-la em seus últimos minutos:

- Puxa, que pena. Deve ser uma morte bem dolorida. Sinto muito pela sua sorte.

- Não, não sinta. É... eu vou morrer, mas em compensação aquele humano desgraçado...

E, subitamente Gregor compreendeu aquela sensação inquietante que o acompanhava desde que começara a ouvir o relato do pobre animalzinho. Quatro horas da manhã. Gregor levantara-se para urinar e ao voltar sentira uma presença a mais no quarto. Agora se lembrava de tudo. Ao voltar de seu devaneio, percebeu que a lagartixa não mais falava. Havia morrido. Desnorteado, Gregor saíra a esmo pelo pátio atrás do prédio, quando sentiu um impacto sobre seu corpo e uma substância branca jorrando de suas entranhas. Fora pisado.

Acordou desesperado sacudindo o travesseiro, gritando para que ele não morresse.

Alessa B
Enviado por Alessa B em 26/02/2013
Reeditado em 13/03/2020
Código do texto: T4160611
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