Viagem de um ateu

Um projétil atravessou minha cabeça segundos antes de eu cair inconsciente em uma das plataformas da estação ferroviária. Bom, não posso afirmar que tenha sido exatamente isso o que aconteceu. Talvez um aneurisma ou um derrame cerebral seja a causa. Na verdade, isso é infinitamente mais provável. Mas o fato é que segundos depois eu já estava desperto e sentia como se nada tivesse me acontecido.

A princípio busquei me levantar com cuidado, receoso de que a dor ainda estivesse escondida em algum lugar dentro da minha cabeça. De pé, procurei paulatinamente por algum ferimento ou sangramento, mas nada encontrei; nem machucado nem escorrimento e tampouco a dor. Sentia-me agora perfeito, até mesmo o constante incômodo do desvio na coluna havia sumido.

Refeito do susto, desviei a atenção de mim e finalmente olhei a minha volta. Foi só então que percebi os estranhos espectros que desfilavam suas grotescas imagens ao meu redor. Era como se eu tivesse adentrado em uma pintura de Goya ou em um conto de Hoffmann. A minha esquerda passava uma bizarra procissão de homens e mulheres carregando os mais variados objetos desde rosários e ícones de santos até bolsas de soro ou sangue.

Do outro lado, uma incomum fila de crianças e adolescentes de idades variadas caminhavam amuados rumo ao embarque em um dos trens. Se é bem verdade que essa fila era significativamente menor, também o é que ela era bem mais repugnante. Não era difícil avistar ali algum jovem com algum membro amputado ou algum infante com sinais de afogamento ou queimadura.

Não posso detalhar a sensação que tive. Se me fosse possível descrever, confesso que asco seria bem mais verdadeiro do que medo ou espanto. Mas algum tempo depois, recuperado do susto inicial, procurei por alguma liderança que pudesse me auxiliar. Ao longe, avistei um policial orientando algumas pessoas sobre o local em que deveriam embarcar. Foi nesse instante que percebi que não eram apenas duas filas, mas milhares de pessoas se punham uma atrás das outras para entrar em algum dos sete trens que ali estavam parados.

Com receio, aproximei-me do policial. Aguardei paciente até que ele me chamar:

— O bilhete, por favor! – disse-me ele com autoridade, sem demonstrar a menor empatia.

— Desculpe-me – respondi – eu não tenho nenhum bilhete. Na verdade eu precisava de uma ajuda: eu desmaiei agora a pouco e quando acordei encontrei a estação nesse caos. O senhor pode me explicar o que está acontecendo aqui?

— O senhor não percebe o que aconteceu? – perguntou-me ele, sem nem me olhar nos olhos.

— Confesso que não, talvez alguma catástrofe natural – arrisquei. Os terremotos são comuns na região e eu ainda tinha em mente as grandes inundações de 2005.

— Nada disso, professor Ivan. O senhor está morto.

O homem saber o meu nome me causou mais estranheza do que a afirmação dele. Como eu poderia estar morto? Aquela afirmação era ridícula, cômica até. Voltei-me para ele mais uma vez:

— Por gentileza, senhor policial. Eu estou falando sério, eu quero informações sobre o que está se passando...

Sem esperar eu concluir a fala, o homem me interrompeu:

— Professor, eu não tenho muito tempo. Olhe o tamanho dessa fila, os trens vão partir a qualquer momento. Se o senhor não acredita que todos os que estão nessa estação estão mortos, me explique aquilo...

O guarda apontou para um jovem casal, o homem com uma barra de ferro atravessando o estômago e a mulher com a cabeça quase completamente decepada, presa ao pescoço unicamente por um pequeno pedaço de pele como se ambos tivessem sofrido um grave acidente.

— Acredita em mim agora? – questionou triunfante o guarda. Dê-me o bilhete para que eu possa indicar o seu trem e o senhor possa partir tranquilo.

Atônito, afastei-me do guarda sem dar muita atenção ao que ele dizia. Em seguida procurei por um lugar no qual eu pudesse refletir. Estava claro naquele instante, pelo menos para mim, que eu não estava morto. Em uma espécie de lógica cartesiana, o pensamento era a certeza de que eu estava vivo. Mas, diferentemente de Descartes, eu não podia aceitar que a consciência pudesse sobreviver independente da matéria. Isso era mitologia religiosa, impossível de ser real.

A minha negação pode fazer parecer que eu tenha nascido em um ambiente ateu ou agnóstico. Nada menos verdadeiro, pois meus pais mantinham vivas as tradições religiosas recebidas dos meus avós. Moradores de um pequeno vilarejo, as respostas recebidas pelos sucessivos sacerdotes da igreja local eram suficientes para sanar todas as dúvidas que por ventura meus genitores tivessem. Talvez eu mesmo tivesse mantido essa fé não fosse a Universidade com seus santos marxistas e nova eclesiologia comunista na América Latina. Nova fé e novo credo.

Contudo, afirmo que nunca fui um ateu militante. Na realidade, o espírito presunçoso do ateísmo ativista nunca se apoderou de mim. Ao contrário, por pedido de minha esposa aceitei casar-me na igreja e batizei meus dois filhos tão logo nasceram. Mas daí a crer que o complexo sistema neurológico no qual subsiste a consciência seja dispensável para que a mesma possa existir, seria um passo grande demais.

O mais provável para tudo o que ali se passava era que eu estivesse dormindo. Foi a isso que me apeguei. Os sonhos são os legítimos pais da fantasia. E se aquela cena antes me parecia grotesca, agora que eu estava mais calmo, se assemelhava a risível alucinação de uma mente em estado de devaneio.

Eu já tinha ouvido falar em sonhos lúcidos. Pessoas que tem consciência de que estão dormindo e que tudo o que ali ocorre se passa tão somente dentro de sua cabeça. Era essa a realidade, tudo naquela estação devia ter a sua existência dependente de mim. E nisso eu teria crido, não tivesse o tempo passado e o despertar nunca chegasse.

A angústia de não conseguir abrir os olhos e retornar ao meu corpo foi se apoderando de mim de tal forma que o raciocínio cedeu lugar ao desespero. Pensei na possibilidade de ter sofrido um AVC, era possível que agora meu corpo estivesse deitado em uma maca, passando por algum procedimento cirúrgico, enquanto meio litro de soro com alguma anestesia geral era injetado em meu corpo para evitar a dor.

Aquelas imagens não seriam, dessa forma, produtos únicos da minha mente delirante. Elas seriam frutos também de alguma droga hospitalar capaz de evitar a dor provocando as mais diversas alucinações. Sim, foi isso o que repeti incansavelmente a mim mesmo como um mantra. Mas o acordar não vinha. Aquelas personagens fantasmagóricas que me circundavam continuavam a agir como se cada uma tivesse consciência própria. Ah, como eu ansiava que o despertar viesse e exorcizasse todos aqueles espectros para algum abismo no fundo da minha mente!

O apito forte de um dos trens acabou silenciando minhas reflexões. De sua cabine, ainda consegui ouvir um velho maquinista alertando os passageiros:

— Cinco minutos para partirmos.

Reparei novamente a minha volta e as filas, antes enormes, agora não tinham mais do que uma dezena de pessoas. O guarda que falara comigo a pouco, aproximou-se e, sem muita cerimônia, pediu-me novamente o bilhete.

— Já disse ao senhor que eu não tenho a passagem – repliquei.

Foi somente depois de responder ao guarda que percebi o absurdo daquilo. Se nem o guarda ou o maquinista ou qualquer uma daquelas pessoas existiam, por que manter algum diálogo com elas? Era possível que como na maioria dos sonhos eu nem sequer me lembrasse deles na manhã seguinte.

A busca por explicações racionais para o que se passava durou apenas mais alguns segundos. O apito de outro trem me trouxe de volta a realidade daquela situação: como seria se eu nunca despertasse? As plataformas de embarque estavam cada vez mais vazias o que me trazia à mente a possibilidade da solidão perpétua. Não é raro, o relato de pessoas em coma e que ficam presas nesse estado por meses ou anos. E se fosse esse o meu caso? Não seria menos cruel comigo mesmo abraçar de vez o mundo fantástico dos sonhos do que me por escravo da razão, esperando por um despertar que talvez nunca viesse? Sem dúvida que sim, afirmei com segurança a mim mesmo.

Sem esperar que o guarda me chamasse pela segunda vez, fui até ele e sem questionar se sua existência era real ou não, lhe disse:

- Desculpe-me, mas perdi o bilhete.

Ele sorriu e como é comum no absurdo mundo onírico pôs a mão no bolso da minha camisa e retirou de lá a passagem, leu-a e me entregou. Mais com as mãos do que com palavras ele me indicou o trem na plataforma sete. Ainda distante, ouvi o barulho da locomotiva apitando e iniciando a partida. Acelerei os passos de modo que com algum esforço consegui subir no último vagão. O trem já em movimento lançava com força sua fumaça por toda a chaminé. Sentei-me ao lado de um homem com uma faca encravada próximo ao peito: “assalto”, adiantou-me ele. Em seguida, me ajeitei na poltrona e parti para esse destino novo e absurdo.

Se é verdadeiramente o hades eu não sei, quem sabe eu não sou apenas uma vítima da esquizofrenia ou outra psicopatia qualquer. O que posso afirmar é que o mundo fantástico em que embarquei não é nem mais cruel e nem mais terrível do que o ilógico mundo real, afinal não é nele que nossa mente se refugia todas as noites?

Rangel Luiz
Enviado por Rangel Luiz em 23/02/2013
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