ANJO VERSUS DEMÔNIO
Estava eu em minha morada celestial quando o mensageiro trouxe-me um recado:
— Senhor, o demônio deseja visitá-lo!
Esbocei um ligeiro sorriso e por um momento meditei se aceitaria recebê-lo ou se o ignorava como muitas vezes o havia feito.
— Traga-o aqui, aceitarei sua visita — disse eu ao mensageiro, e ele partiu com essa resposta.
Com a permissão para adentrar as plagas etéreas, o demônio veio célere à minha morada e logo estava diante de mim simulado sob a forma de uma alva pomba, demonstrando que vinha em paz e em termos amistosos. Achei-o patético, pois eu podia entrever sua horrenda catadura através desse simulacro. Ele então me disse:
— Caro amigo, enfim me recebe! Há quanto tempo não nos vemos. Olhe, tenho algo a propor-lhe, se me permite... — soltei uma gargalhada de desdém, mas tão breve me contive, lhe perguntei:
— O que um demônio ousaria propor-me?
— Apenas um jogo, um jogo bem divertido — respondeu-me ele de um modo tão simplório que, aliado com a figura de uma pomba, quase me esqueci de que era o demônio que me falava. Porém fiquei curioso e o deixei continuar.
— Meu caro, sei que é um amante de jogos, ao menos costumava sê-lo nos velhos tempos, quando o conheci — disse ele.
Era verdade. Jogos sempre foram minha paixão. Agora mais interessado, retruquei ao demônio:
— Fale-me mais sobre este jogo — enquanto falava, levei-o até a sala para acomodarmo-nos em poltronas.
— É um joguinho de guerra — continuou o demônio —, e não vejo melhor lugar para combatermos do que em Eldrom, a terra pacífica.
Eu conhecia bem aquela terra, estava sob minha jurisdição espiritual e, como o demônio mencionou, era um lugar pacífico, a população não conhecia a guerra.
— Não acha que devemos sacudi-la, nos divertirmos um pouco? — insinuou o demônio, e eu comecei a irritar-me.
— Miserável — gritei irado, e ele assumiu a forma de um inseto, como querendo demonstrar sua insignificância perante a mim. — Ousa pensar que sou tolo? Que vantagem terei neste seu joguinho?
— Todas as vantagens, meu caro amigo — volveu o demônio, ainda sob a forma de inseto. — Se o anjo não quiser, retiro-me já...
— Espere! — exclamei, retendo-o — Que vantagens são essas?
— Vejo que o anjo se interessou mais — replicou o demônio. — Para seu total proveito, e nenhum meu, salvo o do deleite de jogar, sugiro que o anjo use as minhas armas, e eu, as suas. Assim não está melhor?
Confesso que sou irascível, mas diante de tal proposta me acalmei progressivamente, ao mesmo tempo em que ele voltava a doce forma de uma pomba. As armas do demônio eram vastas e muito poderosas, enquanto que as minhas se resumiam a pobres pessoas. Fiquei desconfiado, e perguntei-lhe:
— Demônio, aonde quer chegar? Quer entregar-me a vitória numa bandeja?
— Só quero me divertir — foi sua única resposta.
Embora eu seja um jogador nato, em meu íntimo ainda não estava disposto a aceitar, mas antes de lhe dar qualquer resposta, quis saber o que eu ganharia com este jogo e indaguei-lhe sobre isso. O demônio, percebendo minha hesitação, usou de muitas palavras suaves e servis com o fito de convencer-me a aceitar, dizendo-me que, como a vitória já estava assegurada a mim, como prêmio ele me daria sua alma. Ele sabia negociar! Porém era a minha vez de falar, e como era praxe nos jogos, de minha parte faltava apresentar um prêmio, caso ele ganhasse. Ofereci-lhe então minhas asas.
Fomos para a mesa de jogos, e o demônio, assumindo agora a forma de um gato, denotando que iria se divertir como um felino doméstico, pediu-me licença e ordenou a seu lacaio, que veio com ele, que tocasse algo em meu piano como acompanhamento, e nosso jogo começou.
A população de Eldrom, acostumada com a tranquilidade de suas terras, estranhou e se alarmou com a súbita formação de uma gigantesca nuvem, negra e movediça, surgida no horizonte. Eram gafanhotos, inúmeros, milhares, enviados por mim para destruir as plantações daquele povo. Em questão de pouco tempo, os eldromenses, assim se chamavam, viram-se privados de suas colheitas. A primeira jogada estava concluída, agora era a vez do demônio jogar.
Tendo os eldromenses celeiros, a fome não lhes atormentou por um determinado período, mas teriam que recomeçar os plantios, e o demônio, para minha surpresa, os conduziu com maestria nesse sentido. Em pouco tempo a população via florescer as primeiras sementes. O jogo estava apenas no começo.
A minha segunda ação foi enviar-lhes severas moléstias, abatendo dezenas de eldromenses. Meu adversário divertia-se a valer, como se minhas ações em nada o abalasse. Então ele, com seu jeito brejeiro, me indicou que entre a população havia um sábio curandeiro, e com seus cuidados e remédios as pessoas estavam se livrando de todas as moléstias. Enquanto se passavam minutos para mim e o demônio, para os eldromenses passavam-se semanas.
Nosso jogo seguia equilibrado, todas as minhas investidas eram rebatidas e aniquiladas pelo meu adversário sob forma felídea, usando de muita astúcia, devo dizer, tendo em vista, como eu erroneamente supus, sua fraca munição. Assim seguíamos empatados, e o jogo começava a desagradar-me. Decorridas outras tantas jogadas, fui percebendo que o povo de Eldrom adquiria malícia e se fortificava a cada dano que eu lhes impunha, algo que eu não havia considerado de início.
— Toque a balada dos Deuses! — ordenei enérgico ao lacaio, e ele igualmente enérgico dedilhava as teclas do piano. — Chegou a hora da jogada final!
Meu belicoso exército estava pronto para a batalha. Seria o fim dos eldromenses e, por conseguinte, a derrota do demônio. Sem mais demora, ordenei marchassem os dragões, trolls e diabretes contra Eldrom. Mas, para minha total estupefação, algo inusitado acontecia entre os eldromenses: forjavam espadas, escudos e armaduras completas! E treinavam, havia ali alguém que lhes preparava para a guerra. Formaram-se cavaleiros, arqueiros e toda a sorte de guerreiros dispostos a qualquer investida. Nunca os imaginei capazes de tal progresso. O demônio os manipulava com argúcia. Então, quando meu exército chegou às fronteiras de Eldrom, encontrou os eldromenses já preparados e ansiosos para o embate. Iniciou-se a jogada final.
Como primeira medida, expedi a vanguarda de dragões que, com suas descargas de fogo, incendiaram as árvores e as casas dos eldromenses. Porém seus hábeis arqueiros, com flechadas precisas, abateram todos os meus dragões.
Avancei com minhas tropas de trolls e diabretes contra os guerreiros eldromenses, tornando nosso jogo muito mais acirrado e cruento. A princípio acreditei subjugar meus oponentes com minha força colossal, pois impingi muitas perdas ao adversário. Mas seja qual fosse minhas estratégias, a todas o demônio repelia e se recuperava espantosamente. O jogo se aproximava do fim.
Desferi um murro na mesa e meus dentes rangeram de raiva. O demônio olhava-me zombeteiramente e, entusiasmado, aumentando ainda mais o meu furor, gritou ao seu lacaio:
— A tocata final, por favor!
O demônio assumiu agora sua verdadeira e horrífera figura, lambendo seus repugnantes beiços com prazer. Maldito! Minhas tropas antes superiores sucumbiam perante o reduzido número dos guerreiros eldromenses. Foi com grande pasmo que vi o povo de Eldrom comemorar a vitória. O jogo terminou. Fui derrotado pela astúcia do demônio. Entre exaltadas gargalhadas de prazer e escárnio, ele me disse:
— Meu tolo anjo, suas asas são minhas!
Tive de entregá-las a ele, muito a contragosto. Porém faz parte do jogo. Desprovido de asas, não pude mais ficar em minha morada celeste, e de lá despenquei. O lugar onde estou realmente não importa. Muitos anos se passaram deste então. Nem sei se ainda sou um anjo ou se sou um desesperado jogador em busca de jogos, pois tudo o que eu mais ansiava era jogar novamente. Ninguém me aceita mais como oponente.
Mas espere, aí vem um mensageiro em minha direção, parece que o demônio quer me ver!