SÓ UMA BALA NA AGULHA...

O amor é uma bala perdida...
Viaja sem rumo e sem destino. Explode no coração do primeiro incauto que cruza seu caminho...
Não escolhe idade. Não tem piedade. De ninguém...
No caso de Cornélio, chegou bem cedo. Decidido a criar raízes. Pegou o rapaz, na plenitude de seus 15 anos...
Com uma saúde de envergonhar Biotônico Fontoura, de repente, sem qualquer motivo aparente, o jovem começou a deixar seus pais preocupados. Para começar, abandonou os livros. Parou de escutar rádio. Não ficou nem um pouquinho curioso, naqueles letárgicos dias de 1965, em querer ver as primeiras imagens geradas pela TV Morena. Parou de bater bola com seus amigos. Vivia suspirando pelos cantos. Seu pai, seu Oscar, cochichou para sua mãe: “Maria, aí tem dedo de mulher!”...
Ledo engano. O responsável por aqueles suspiros não era ainda uma mulher. Era só uma menina. Quase um anjo. Só 14 anos. Criança que, à noite, ainda passava da sua cama para a de seus pais. Teresinha...
Que menina...
Estudante do Colégio das Irmãs. Carinha de ingênua. Fingia não saber de todo o potencial que seu corpo começava a revelar. Displicente, propositadamente ou não, parecia não notar o generoso botão (sempre desabotoado) de sua blusa que, dependendo da perspectiva, premiava o observador com uma visão maliciosamente pecadora. A saia colegial (audaciosamente) rodada e curta, nunca era capaz de cobrir todos aqueles encantos que Deus generosamente lhe confiara...
Os meninos, pelas ruas de Campo Grande, viviam batendo cabeça e tropeçando, tentando enxergar algo mais ao longo daquele delicioso e juvenil par de coxas...
Teresinha, a bala perdida que feriu o coração de Cornélio...
O espevitado aluno do General Malan, morador dos arredores da Igreja do Perpétuo Socorro, aos domingos, era o primeiro a chegar para a missa das sete. Não para orar. Muito menos para louvar. Para adorar. Para ficar, sem dar um suspiro. Vigiar todos os gestos que a ninfeta fazia naqueles eternos minutos de culto e devoção. A troca constante de olhares, não podia dar em outra coisa. Acabaram se enamorando. Paixão instantânea e recíproca...
Teresinha, católica fervorosa, vivia sempre na igreja. Não perdia missa, novena ou quermesse. Ajudava no que podia. Por toda esta dedicação, Cornélio começou a achar que ela era uma santa. Por isso mesmo, apesar do imenso desejo que o consumia, se segurava. Agüentava firme. Tratava a menina com o máximo respeito. Sem nenhum beijo na boca, muito menos carícias nos seios. Ela, pelo contrário, era um verdadeiro vulcão. Cheia de amor para dar. Pela lerdeza do rapaz, consumia-se em desejos inconfessáveis...
O moço fazia questão de não avançar o sinal. Bom caráter. Enquanto segurava as pontas, vivia repetindo: “Não Teresa! Vamos com calma! Espera o casamento! Eu agüento!”...
Para o pai, confidenciava: “Sou um cara de sorte! Minha mulher é uma santa!”...
A realidade é que estavam mesmo perdidamente apaixonados. Por isso mesmo, com pouco tempo de namoro, casaram-se. Parecia que viviam felizes...
Terezinha continuou a ter a mesma generosidade de antes. Nos seus decotes e sentares. Por sua vez, o jovem, cada vez mais enamorado, vivia debulhando elogios para a mulher amada. E o tempo passando...
Sete meses de casamento. Nenhum sinal de barriga. Nenhuma ameaça de gravidez...
Uma noite, depois de ouvir sua sogra reclamar que queria um neto, Teresinha desabafou: “A culpa é do seu filho! É um tonto! Nunca chega aos finalmentes! Tá pensando que sou santa! Tá pensando que sou feita de aço! Que não tenho vontades! Que não sinto desejos!”...
Esta conversa acabou chegando aos ouvidos do velho Oscar...
Ávido por um neto, o coroa ficou indignado. Sabia que seu filho não era bicha. Era macho, como ele. Por isto, pegou no pé do rapaz. Cobrou. Queria saber qual era o problema. O que é que estava empatando a gravidez. Afinal, Teresinha era uma potranca. Transpirava sensualidade. Doida para subir pelas paredes...
Cornélio desconversou. Argumentou que sua mulher não era nenhuma puta. Tinha que ser respeitada. A gravidez era um problema dele. Na hora certa, aconteceria. Ninguém precisava ficar pressionando. Seu Oscar, meio desconfiado, advertiu: “Vou ter uma conversinha com esta menina! Ela vai ter que me explicar direitinho esta falseta! Que conversa é essa?”...
Ninguém da família, no entanto, ficou sabendo se algum dia ele chegou a cumprir esta promessa. Enquanto isso, o tempo foi passando rápido. Quase todo mundo já havia esquecido aquela história quando, numa terça feira qualquer, Cornélio recebe um envelope. Um moleque, que nunca vira antes, lhe disse: “Pediram para entregar pessoalmente para o senhor!”...
Dentro, um bilhete. Anônimo...
Curto e grosso: “Sua mulher está te traindo!”...
Na manhã seguinte, recebe outro. Depois, outros. Revelavam os dias dos encontros clandestinos. Onde aconteciam. Davam detalhes. Nenhum nome...
Pobre Cornélio. Sua vida virou um inferno. Ficou insuportável mesmo. No princípio, talvez por orgulho, fez absoluta questão de não acreditar naquelas malditas mentiras. Fingiu ignorar as palavras que havia lido. Escritas, tinha certeza, por algum maldito invejoso...
Um dia, meio da tarde, mais um bilhete lido, depois de ter observado atentamente as atitudes de sua amada, chegou ao limite. De incrédulo, passou a desconfiado...
Começou a pensar concretamente no caso. Concluiu finalmente que era verdade. Estava sendo traído. Mas, por quem? Como de imediato nenhum nome lhe veio à cabeça, para se sentir melhor, decidiu isentar sua mulher de culpa. Hipocritamente, para ele, Teresinha continuava sendo uma santa. Sua santa. Respeitava-a. O culpado? Era o canalha que a estava iludindo. Aproveitava-se da ingenuidade de sua mulher. Da sua inexperiência. Da pureza de caráter. Quem sabe não era o aventureiro mesmo quem estava mandando aqueles bilhetinhos idiotas? Pois sim...
Sem mais nem menos, optou pelo caminho que achou mais fácil. Prometeu que se fosse preciso, mataria o conquistador. Para defender a honra, a reputação de sua amada. Assim, começou a arquitetar um plano...
Pensou em comprar (e comprou!) uma pistola...
Por precaução, com medo de que no dia que tivesse que usar a arma contra o safado, sentisse tentação de atirar (também) na sua amada, resolveu colocar só uma bala na agulha. Só uma...
Pensou: “Para mim basta uma! Uma é suficiente!”. Não teria piedade. Encostaria o cano da arma na cabeça do tarado e, “fim da linha parceiro!”...
Em uma quarta feira, numa hora em que deveria estar na novena com sua mulher, Cornélio, fingindo uma mal estar qualquer, ficou de cama, em casa. Deixou que ela saísse sozinha...
É lógico que (se os bilhetes estivessem contando a verdade) Teresinha não iria perder esta oportunidade para encontrar-se aquela tarde com seu amante...
O coitado deu um tempo. Mais tarde, dia morrendo, arma debaixo do paletó de linho, checou mais uma vez as cartinhas e saiu. Tranqüilamente. Como se estivesse saindo para ir pescar...
Chegou ao endereço delatado. Uma pensãozinha na Rua General Melo. Colada na Estação da Noroeste...
Pagou pela informação da presença do casal. Gravou o número na cabeça. Quarto 13...
Pela descrição do porteiro, a mulher era mesmo a sua esposa. Para poder subir deu mais uma grana para o rapaz. Prometeu que não ia fazer nenhum escândalo. Disse que só ia tirar uma dúvida. Queria só ter certeza. Pegou a cópia da chave do quarto. Começou a subir a escada. Cautelosamente. Era o 13. Com muito cuidado, destrancou a porta. Empurrou-a lentamente, quase com medo. Mal acabara de entrar, um pé depois do outro, ouviu os ofegantes gemidos de uma mulher. Era mesmo Teresinha. A sua. Em pleno cio...
Hora do Ângelus. Os dois amantes, tão apaixonadamente ativos, não notaram sua presença. O barulho do trem do Pantanal chegando à estação de Campo Grande escondeu o som abafado de seus passos...
Cornélio, coração na mão, enojado, foi chegando mais perto do casal...
Antes de atirar, fez questão de saber quem era o homem que havia lhe roubado o coração de sua mulher. Tinha que ver a cara do infeliz...
Pobre rapaz...
O tarado, o canalha, o safado, o amante da sua Teresinha, era o velho Oscar. Seu próprio pai...
A arma disparou. O tiro, fatal, ecoou pelos corredores do Colégio Dom Bosco e assustou os hóspedes do Hotel Gaspar. Explodiu a cabeça do infeliz...
O sangue escorreu pelas paredes. Os miolos mancharam os alvos lençóis da impura cama...
Campo Grande inteira se comoveu...
Foi realmente uma tragédia. De uma bala só...
Cornélio, o mais apaixonado, o mais fiel de todos os maridos, acabara de se matar... 
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