O JOVEM VELHO FOLIÃO *

Era justamente na festa dos tímidos, o carnaval, que aquele jovem desengonçado, cheio de acnes denunciando sua puberdade e seus complexos, resolvia soltar-se. Há muito tentava frequentar salões de baile, porém sua timidez não o permitia tirar nenhuma garota para acompanhá-lo, ficando frustrado. Sentia-se um desastre, repudiava danceterias, talvez por usar lentes de contato, e o escuro dos salões, com luzes coloridas o incomodasse sobremaneira, ou, ainda pior, percebera que o próprio som, em alto volume, não o apetecia, aliás, o desnorteava. Assim sentia-se um jovem velho, arredio aos convites próprios aos de sua adolescência; era, por assim dizer, um peixe fora da água. Os livros eram o refúgio, mas eles, por si só, o alimentava de imaginações não o supria, todavia, de suas necessidades de convívio social, pelo contrário o afastava das vivências coletivas. Distanciando-o dos colegas de escola e de pessoas outras de sua faixa etária, sempre apresentando-se compenetrado e sisudo, tido como pernóstico e metido a intelectual. Sentia-se evitado pelos mais próximos, a considerá-lo estranho e inadequado. Ele na verdade cansava-se da vulgaridade de tantos assuntos, além de repudiar as gírias e conversas levianas, freqüentes nesses grupos. Cedo percebera que era só, entregue às fugas nas letras de grandes autores, alimentando seu universo onírico e tristemente solitário.

O que o encantava eram as marchinhas carnavalescas, pois lhe traziam a sensação de que nos salões decorados, todos os adultos, por algumas horas, pareciam inocentes crianças naquelas danças e fantasias. Não que fosse puritano ou infantil, ou que não o alimentasse o desejo típico de qualquer rapaz de sua pouca idade, longe disso. Aquelas considerações era o alimento de suas cogitações mais literárias que reais, porém necessárias para a sua visão de mundo, concessão imposta a si mesmo para poder se aproximar dos semelhantes sem sentir-se um estranho no ninho. Na infância os pais os levavam, a ele e aos irmãos, nas matinês carnavalescas, sendo as letras das canções conhecidas e tradicionais, o que facilitava a sua inteiração ao ambiente. Ocultos sob máscaras, confetes e serpentinas, em uníssonas vozes entoando deliciosas canções maliciosas, algumas, mas com tons pueris, assim codificava aquele universo, onde se permitia aventurar vencendo suas injustificáveis resistências. Nenhuma outra ocasião lhe parecia mais propícia que nos festejos de momo, nos salões decorados. A agitação não cobrava uma coreografia a ser seguida, bastava adentrar na multidão e, confundido com ela, seguir os foliões, ninguém observava ninguém, todos pareciam brincar despreocupadamente, cenário ideal para enturmar-se na folia, esbaldando, e, até, permitindo-se, curiosamente, sambar alguns passos, algo inédito para sua própria surpresa. Não havia cenário mais propício para desafiar a sua detestável timidez. Mas, embora tentando divertir-se seu senso crítico não lhe dava folga, sempre observando as pessoas e tirando conclusões, inspirando-se, quando o que desejava era fugir de si mesmo, buscando uma semelhança de atitude própria à sua juventude. Assim, no vai vem, na aparente descontração, conjecturava com seus botões, a contra gosto: “ bailamos com nossas imagens, arsenal de disfarces e ritos, como nos apresentamos. Celebramos as cerimônias em mesuras programadas e em risos previsíveis (momento em que chegou a pensar em parar e procurar um guardanapo de papel para anotações, felizmente desistiu, afinal apenas desejava se esquecer, conviver com os outros, sociabilizar-se), contudo, o pensamento analítico de tal forma impregnado em sua conduta costumeira, insistia. Sorria com todos registrando detalhes na mania de analisá-los de forma compulsiva... “Maquiagem retirada, cara limpa, lavada, sem fugas, artifícios, neons e frenesis, somente o íntimo desnudo, implacável, ainda podemos fugir, nos anestesiar, rir, dançar, cantar, darmos asas acreditando na fugaz alegria, deitarmos embriagados e ressonarmos. Se, contudo, insistirmos, nos atrevermos, arriscarmos nas dores do autoconhecimento, nos apresentaremos inclementes a nós mesmos”.

Neuroticamente, parecia uma terapia aquele exame consciencial e tormentoso de cada momento, não importando o inusitado do momento e local.

A roda crescia, conclamando a todos a engrossá-la em deliciosos apelos, ele seguia desenvolto e perseguindo, braços no ombro da foliona à frente, a corrente humana que se estendia dando voltas no salão. Breve pausa, os olhares se encontrando, ele e a menina de um sorriso encantador e, encabulado, suado, camiseta colada no corpo e diante a uma princesa de olhos graúdos e negros, como a cabeleira lisa e a tez morena clara. No aperto da entusiasmada multidão, rostos próximos, não havendo como evitar o contato, tão desejado e querido. Gracejos, o sentir do perfume da fêmea, o par continuava a brincar , como se sentissem a respiração um do outro. Jamais imaginaria o que estava acontecendo, via-se correspondido e esmorecia seus receios e nem se reconhecia tão solto e desinibido. O seu lado inquiridor e analista cedia aos ímpetos do jovem sedento de emoções, querendo viver e gozar a sua juventude. Os braços segurando a cintura da parceira, trajando uma bermuda e uma corpete deixando o belo corpo à mostra. Que bela companhia, não queria acordar daquele momento único. Seguiram a noite toda juntos, falaria o menos possível temendo assustá-la com sua prosa adulta e aborrecida, alheia à sua imagem jovial. No burburinho não precisava se expor, apenas a troca de olhares e de sorrisos. Não queria por nada quebrar o encanto, temia falar e assustá-la, ou mesmo desiludir-se ao ouvi-la, bastava vê-la tão bela e sedutora. A atração dava-se no silêncio dos olhares, nos sorrisos embevecidos, no que era correspondido. Fim de noite, beijinhos trocados, emeios e promessas de se encontrarem em algum dia, a combinar.

Ao chegar em casa, nas primeiras horas do dia, ainda as lembranças da musa morena e cativante, o sono distante. Ligou a televisão e, absorto, sua mente girava e codificava o que via sempre em abstrações versificadas, comumente encontrada em livros literários. Parecia que a sua paixão, a leitura, o estava condicionando e estreitando sua própria existência, ao contrário do que deveria ser. Na solidão, apenas seu lado crítico se enaltecia, como se fosse um pesquisador da alma humana, atrevendo-se a análises e conclusões. Aquela parecia ser a causa de seu isolamento, seu cárcere pessoal.

Ao ver os blocos focalizados pelas lentes da emissora, passavam as escolas de samba, no fervor das suas alas e porta-bandeiras. Sua ótica poeta e analítica, desperta, compondo mentalmente seus versos livres, e tristes. “Meu bloco na rua aclamado. Vibrante, cantante, emocionante. Mesclado às emoções desse povo. Seus lamentos, prantos feito encantos. Artistas por momentos, desdobrados na avenida, em fogos de artifícios, suas alegrias e alegorias. Samba nos pés, gemendo, na evolução da bateria. Suores e lágrimas, mescladas, na passarela da vida. São purpurinas, reinos dos foliões, castelos de magias. Cada qual no seu brilho, estrelas por instantes. Aplausos, os anônimos em destaque, a arquibancada no palco. Reviravoltas, piruetas, os frenesis, esquecidas dores nas efêmeras euforias.

Em cada noite uma nova musa, todas passageiras, nos bolsos números de telefones, endereços eletrônicos, nunca respondidos. Uma coisa era adentrar na massa alegre e despreocupada, onde se misturava no anonimato, não significando coragem para dar seguimento a algo mais concreto. Chegou a discar, algumas vezes, mas apenas ouvindo as vozes, silenciando-se. Era um misantropo sem querer sê-lo, uma personagem que vagava naquelas noites, ganhando vida e alma misturado na multidão, sem enfrentar a si mesmo. Na confusão da brincadeira era atuante, na individualidade uma fortaleza intransponível.

Na última noite, sempre chegando ao amanhecer, depois de ter vibrado e cantado, inclusive conquistado tantos corações femininos, ligou a televisão registrando os momentos finais da quarta-feira de cinzas.

“Despidas as fantasias, descidos dos pedestais, reinados nos salões, pierrôs, arlequins e colombinas, lembrados em confetes e serpentinas. Astros no asfalto, alas das baianas, mestre escola, porta –bandeiras, a dispersão dos carros alegóricos, a debandada das arquibancadas. Silêncio nos trios elétricos, dispersa a vibrante multidão, desfeitas as alegorias, restos espalhados pelos cantos das avenidas, vestígios das folias. Um povo, um exército, homens e mulheres, retornando a seus postos, na lida dos dias, anônimos heróis, pondo a engrenagem a girar, até a próxima convocação, para a alegria e a chamada geral. Sonhos e magias, arrimos a suportar as labutas de cada sina.

Veio o sono, desligou-se, ele e a TV, foi dormir. Talvez ousasse com mais coragem no próximo carnaval...

* Publicado em livro na antologia CONTOS DE VERÃO fevereiro/2015, editora CBJE - Rio de Janeiro-RJ