História desmontável de várias vidas e uma morte gradual.

Sentou-se novamente na mesa no mesmo lugar em que todos os dias é posicionada como para esperar-lhe, trouxeram-no a cerveja e o copo foi servido, como em quase todos os dias acontece à mesma hora. Apoiou os braços na mesa e o queixo sobre as mãos que estavam juntas e ficou por alguns minutos admirando as pequenas bolhas que subiam do fundo do copo à espumosa superfície e as gotas transpiradas do lado externo do copo em movimento contrário, e pensou que “a vida começa aos quarenta” não é mais do que uma frase de merda para que todos trabalhem e não se arrisquem esperando sempre um momento de redenção posterior, um suposto céu na terra, uma esperança para que não percebamos que não há esperança alguma. Estava velho e com as mãos e o coração calejados de perdas, estava velho demais para mais uma foi o que eu pensou e não se referia á esperança quando pensou nisso, pois esta havia sido a última que se perdera. Quando horas antes, ainda em casa, o telefone tocou e a voz que o chamava falou o que tinha de ser dito, respondeu sem ser entendido “Ainda faltava isso”, e decidiu, como se não fosse uma ação cotidiana, ir ao bar, porque não ficaria em casa sabendo que poderia não conseguir pagar pelas peças quase impossíveis de serem encontradas para a restauração da vitrola que lhe acompanhou por toda a vida e que era a única coisa que lhe restara, e consequentemente não ouvir mais seus discos e aí sim, não haveria mais nada, e lhe apareceu na cabeça uma estranha convicção de que no ponto em que estava ele no traçado da linha vital, a morte ou vida da vitrola seria, não coincidentemente, fator determinante para sua própria vida ou morte, e se assim fosse então que assim seria, e saiu.

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Sentia e sabia que estava chegando ao fim a sua boa e tranquila vida e por isso mesmo não estava triste, não conseguia pensar em grandes desejos os quais pudessem ter lhe feito mais feliz em todos os anos em que conviveu com ele. Não invejava os que lá fora andavam sem saber pra onde pelas ruas sujas e barulhentas e os automóveis lhe causavam medo e nervosismo, e por mais que ás vezes não desperdiçava uma oportunidade de um passeio solitário, o mundo do portão para fora não lhe parecia convidativo, com exceção para aquela magricela ruivo-loura que costumava aparecer e que atraía-o sem dúvidas, e ela não deixava de ir até o portão para breves flertes, mas ainda assim, adorava viver ali, naquele espaço que conhecia como ninguém, e principalmente com o carinho e o amor que lhe era recíproco e que por vezes pensava que parecia ser até de cão, por mais que soubesse que os homens não tem essa capacidade que os cães tem, mas o dele, o que recebia, parecia sim, era demasiado para ser de um simples homem, aquele homem agora tão solitário, mas parecia. Era disso que mais gostava na vida e foi isso que concluiu quando percebeu que internamente algo lhe dilacerava o estômago e os intestinos e que chegara o momento de resignar-se a um canto do quintal e esperar, e ficou confuso quando não conseguia mais desembaçar os olhos, tentava arregalá-los para poder entender aquilo, mas escureciam mais, e ele estava ali, na sua frente, deitado de bruços com o rosto frente ao seu focinho e os olhos dele estavam apavorados e deles saia muita água e não entendia o porquê, ouvia de forma mais distante do que costumeiramente os acordes finais daquela conhecida música que ele sempre ouvia quando estava triste e em seguida os compassados “tic, tic, tic”, que ouve-se entre a que terminou e a que começará, e sentiu aquele carinho da mão dele sobre a cabeça e então não viu nem ouviu mais nada e estava calmo.

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- Você não é mais meu filho. Está morto para mim!

Falou isso após a longa, áspera e violenta discussão com o filho homem mais novo enquanto era possível ouvir desde muitas centenas de metros da casa os gritos lamuriosos da mãe/esposa tentando desesperadamente fazê-los parar de agredirem-se, e logo não ouvia-se mais quando já desmaiada nos braços das duas filhas descansava de toda a adrenalina familiar. Não conversaram mais por muitos anos, ou conversavam por intermédio da mãe, mas já numa relação que não fazia o menor sentido ser reatada, pois não faziam falta alguma um para o outro, a não ser quando superestimavam a algum dos dois a importância do respeito e a moral familiar. O que não aceitava no filho era o que julgava ser falta de seriedade em relação a trabalho, e isso consequentemente levava a falta de caráter, que naturalmente conduzia a imoralidade, malandragem, vagabundagem, entre outros adjetivos das concepções conservadoras que o velho nunca se livraria. Porque não podia estudar, como fizeram as duas irmãs, ou trabalhar em uma ocupação de verdade, como fazia o irmão mais velho, ou estudar e trabalhar, sucessivamente, é claro, como fazem os clérigos, era o que se perguntava desde o dia em que o infeliz lhe falou da vontade de trabalhar com aquilo que mais lhe parecia missão para uma vida com algum sentido do que meramente trabalho. Agora o velho estava deitado e frio, imóvel, sem batimentos ou sonoridade alguma no coração e foi isso que levou seu ex-filho de volta a vê-lo, e este, chegando no momento do velório, olhou fixamente para o corpo de um desconhecido, sem emoção alguma que não fosse aquela inquietante que ronda o ar e entra pelas narinas de todos os que frequentem algum velório. Olhou e nem lembrou-se da frase que ouvira há muitos anos, no dia da discussão, a frase que inclusive deu fim à discussão, e nem precisou, porque desde antes talvez não se sentisse como tal, era um desgraçado filho desde antes, ao menos em relação ao velho, e repentinamente indagou-se se não tivesse estado morto desde a frase proferida, para em seguida também repentinamente ter tudo á luz racionalmente e poderia até abraçar e agradecer ao velho ali mesmo, ele esticado no caixão, só não o fez porque os familiares considerariam hipocrisia, cara-de-pau, e de novo falta de respeito ao pai, e exclamou-se aliviado, “Não, ele é quem livrou nós dois de sua morte sofrida, naquela hora”.

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O jovem, assim como todos fazem, criava e desenvolvia suas certezas e tentava defendê-las de tudo que pudesse atacá-las, e dessa forma afirmava que nunca poderia ver, assistir ao vivo, um grande concerto, um grande show, uma apresentação irreprimível musicalmente, e não era porque os ingressos seriam a preços altos demais para poder alcançá-los e nem porque aconteceriam a milhares de quilômetros de onde vivia. Chegou a esta conclusão no dia em que estava pensando no quanto àqueles discos de música clássica e aquelas sinfonias musicais lhe confortavam, alegravam, lhe jogavam vida desde os cabelos corpo abaixo, e aí parou de rir sozinho e abriu os olhos lembrando-se que todos aqueles músicos, artistas gênios, todos eles estavam já há muito tempo, mortos, e ficou muito impactado com essa óbvia constatação que a ele assemelhava-se a uma grande descoberta ruim. Quando os pensamentos esclareceram-se para o lógico, pensou que o que lhe transmitia aquela vitalidade toda não eram eles e sim as obras deles e então decidiu, naquele momento, que o que queria fazer na sua própria vida era poder sempre ouvir aquelas sonoridades transcendentais e trabalharia para que os discos, aqueles vinis eternos, sempre pudessem estar bem conservados e serem ouvidos, e de alguma forma não deixar que aquilo tudo pudesse morrer.

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Ela não suportava mais aquela situação e estava decidida. Aquilo não era vida, nem conjugal e nem individual, uma mulher não deve se submeter á isso, o que queria quando começaram uma vida a dois era outra coisa completamente diferente, mas isso, isso já era o limite. Todos esses desabafos surgiam com as lágrimas quando sentava-se na cama, sozinha, aos soluços, enquanto tentava lembrar-se do que imaginava antes de se casar e como deveria ter sido e se talvez ela mesma não tivesse feito as coisas do jeito que não deveriam ser feitas. Ponderava. Relutava em admitir a decisão que não queria, mas que lhe parecia o melhor, ao menos para ela, sem dúvidas. Ele havia perdido o pai recentemente, e ela achava que ele não sabia lidar muito bem com essas questões de morte, se nem de vida o sabia. Ponderava novamente. Sabia da bondade e da sensibilidade dele, conhecia a personalidade dele como poucas pessoas, tinha ciência das suas paixões e de suas ideias, era por isso que se apaixonara anos atrás, mas não tinha mais forças para continuar. Sabia que os negócios já não iam muito bem, mas de qualquer forma, ele sempre dava um jeito, e deveria continuar dando mesmo que não estivessem mais juntos. Disse a ele que “Agora você pode continuar essa sua vida sozinho, eu não quero mais isso, O que? Se não lhe dou mais atenção é porque também tenho as minhas necessidades”, e disse com muita raiva que ficasse também com o cachorro, além das próprias tralhas e velharias, depois de ouvir dele que não precisava de nada da casa, apenas aquelas coisas dele, ela sabia bem o que era, e disse com ódio que não ficava nada de bom, aquele casamento estava morto para ela, após ouvi-lo dizer com uma exagerada apesar de amedrontada serenidade que aquilo não seria uma morte, mas sim um renascimento, sem saber que para ele a dor de nascer lhe parecia infinitamente maior do que a da morte, mesmo que após os quarenta anos ainda adorasse a vida.

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O gerente da superloja de variedades musicais recebeu-o, abraçou-o, cumprimentou-o com muito respeito e saudosismo, ofereceu a cadeira já de modo formal e não mais amistoso, e tradicionalmente perguntou como iam as coisas, você já superou muitas dificuldades, tudo se resolverá, o importante é que esteja bem e isso vê-se que está, a saúde é o importante nesta fase em que se encontra, com todo o respeito, é claro. Conhecia-o há muitos anos e sabia que sempre que vinha estava procurando algum trabalho, ouviu ele dizer que ainda realizava alguns serviços particulares bons com colecionadores, mas que tinha a impressão, e principalmente uma impressão de bolso, que as oportunidades para isso diminuíam. Haviam alguns itens estocados há algum tempo e considerou lhe oferecer a organização de tudo. Sentiu a necessidade de estender a conversa e disse ao velho conhecido que aquilo no qual se especializara já não era útil, disse-lhe que restaurar, recuperar, ou o que quer que fosse com os discos, não teria importância atualmente, que as coisas mudam e mudaram, haveria ele também de mudar, aquilo tudo se decompôs e o novo estava no lugar. Ele ouviu, entendeu o que há tempos sabia, sentiu-se lúgubre por um momento, e noutro, que não era ele o que estava empoeirado e em decomposição. Depois, fez o serviço solicitado em poucos dias, os vinis recuperados e organizados por ele foram, aos poucos, sendo vendidos na superloja em meio aos outros formatos de memória musical, mas a partir daquele dia, a esperança, que até então lhe restava após todas as vidas vividas, morreu, se perdeu.

Henrique Pitt
Enviado por Henrique Pitt em 29/01/2013
Reeditado em 29/01/2013
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