Terra das Criações - Capítulo 2
Segundo capítulo da história Terra das Criações:
Capítulo 2
O chão estava parcialmente coberto por restos de tecido, plástico e metal, tudo estraçalhado, misturado e envolto em gosma. Quando Humoresque viu os restos mortais de sua infância jogados por toda a parte daquela forma seu coração congelou, como se parte dele morresse por dentro. Tudo destruído, nada havia sido poupado. Mal era capaz de acreditar que seus pais seriam capazes de tal ato.
- Não... Eles não podem ter acabado com tudo, tem que haver algo sobrando.
Tomando cuidado para não pisar nas partes desmembradas de seus bonecos, ele procurou com a visão limitada pela escuridão por qualquer coisa restante. Um boneco apenas seria o bastante para guardar como um bem precioso. Nem precisava ser um de seus favoritos. Sua busca o levou para todos os cantos mal explorados do local, mas sequer foi capaz de rever a primeira criação de seus pais. Obviamente haviam levado consigo, para garantir que nunca mais fosse visto por ninguém, principalmente seus filhos. Humoresque procurou em todo lugar, mas tudo que encontrou foi um mar de cadáveres de brinquedos. Finalmente algo inteiro surgiu, parecido com um de seus maiores bonecos sentado de costas para ele. Era o mesmo que costumava usar como cama quando tinha menos de quatro anos, e mesmo agora sua altura era três vezes maior. Por um instante sorriu achando ter encontrado um remanescente do massacre. No entanto, sentiu haver algo suspeito ali.
De repente viu que o boneco gigante se moveu sozinho. Ele também rugiu e limpou a garganta com sons monstruosos. Humoresque assustado o chamou pelo nome, Urso, fazendo-o se virar e mostrar o rosto que um dia era um simples sorriso na costura. Agora possuía dentes, rugas e olhos ameaçadores e brilhantes. Sua boca salivava incessantemente e com a cabeça de um boneco preso em um de seus vários dentes caninos. Seus braços também carregavam bonecos ainda inteiros e alguns já partidos em pedaços.
- Foi você? - disse Humoresque horrorizado sem conseguir acreditar - Por que fez isso?
Urso então se pôs sobre as patas, deixando o que carregava cair no chão, e se aproximou de Humoresque para mostrá-lo de perto no que havia se tornado. Além da expressão raivosa e faminta, ele exalava um cheiro insuportavelmente podre com sua respiração pesada.
- Veja quem cresceu e já é quase um homem. - disse o monstro gordo e peludo.
- Como você pôde? Eles não eram seus companheiros?
- Do que está falando? Eu sou o único vivo aqui, e isso graças aos grandes criadores. Eles me criaram, e eles me deram vida, junto com uma ordem. Coma, digira, defeque e repita até não restar nada destes brinquedos além de restos irreconhecíveis de gosma e merda.
- E você obedeceu?! Eu sou seu dono, não eles!
- Você?! Meu dono?! Quer que eu o veja como meu mestre após nos abandonar por mais de uma década em um quarto escuro? Confesso que fiquei feliz ao revê-lo quando o vi entrar alguns dias atrás, mas tudo que fez foi nos trazer para um lugar ainda mais escuro! Nossa única função sempre foi alegrá-lo, e você nos agradece assim? Agora, se me der licença, preciso terminar de jogar o lixo fora.
Não importava o quanto Humoresque insistisse, o Urso se recusou a parar de comer os brinquedos, e ele era grande e forte demais para ser impedido. Já não restava nenhum brinquedo inteiro além do Urso. Assistir seus brinquedos sendo cruelmente comidos inúmeras vezes era insuportável, por isso Humoresque desistiu de continuar lá e retornou para a superfície do castelo derrotado. Lá, ele ordenou que os guardas enjaulassem o Urso, mas que não o machucassem em hipótese alguma. Afinal, era o único brinquedo que lhe restava, mesmo que agora possuísse uma mente corrompida pelos pais.
- Talvez tenha sido minha culpa também - pensou Humoresque ao lembrar da acusação do Urso.
Seu passado estava completamente destruído e digerido, e antes disso poderia tê-lo salvado, mas não o fez. Pelo contrário, obedeceu seus pais cegamente na tarefa de jogar fora tudo que lhe era mais precioso. Mais uma vez sentiu-se perdido, mais do que nunca, sem nenhuma pista sequer do que fazer em seguida para inspirá-lo a seguir em frente. Tudo que lhe restava eram restos do que um dia foi uma família feliz de brinquedos. Aquela seria a última vez que daria pouco valor para seus pertences, e por isso teria que se dar ao trabalho de dar um fim adequado para seus brinquedos sujos e despedaçados.
Sem pedir ajuda de ninguém, Humoresque carregou o que restou de todos os seus brinquedos do subsolo para o primeiro andar, onde era o lar original deles, para então restaurar um por um. Era uma tarefa tediosa, complicada e nojenta, pois requeria separar partes de um brinquedo grudadas pela gosma em partes de vários outros brinquedos, limpar tudo, então costurar de volta para devolver a antiga forma. Isso sem contar os brinquedos compostos por plástico e metal, o que exigiria uma restauração mais complexa. Demoraria dias de trabalho caso não parasse até acabar, mas ele sabia que em todo reino ele seria o único com a habilidade, paciência e carinho capaz disso.
Enfim, após uma semana de duro trabalho, estava tudo restaurado. Antes de dormir precisava mostrar seus esforços para alguém, então ordenou que trouxessem a jaula contendo o Urso para ter uma chance de se redimir. A atitude do Urso ainda era agressiva como sempre desde que foi descoberto no subsolo, mas quando foi deixado pelos guardas no primeiro andar do castelo e deu uma breve olhada, logo ficou calado. Ele viu uma cena quase perfeitamente restaurada de como aquele lugar sempre foi. Cada brinquedo em seu devido lugar, todos cheios de costura, mesmo após terem sido destruídos pelo Urso a um ponto sem reparo. Incluindo o rosto dos bonecos. Cada um possuía uma expressão levemente diferente, mas Humoresque lembrava-se perfeitamente de como cada um era e assim os reparou.
- Você realmente nos amava, não é? - disse o Urso na jaula.
- Sim, mais do que tudo. No entanto, quando minha irmã nasceu eu tive que escolher ela sobre vocês. Eu queria ter todos ao mesmo tempo, mas eu era jovem e imaturo, por isso acabei esquecendo de vocês e isso foi injusto por minha parte. Agora que meus pais não estão mais aqui e tenho consciência de meus atos, eu quero reparar tudo, assim como fiz com todos estes brinquedos. Eu espero que possa me perdoar.
- Com uma condição.
A condição do Urso foi difícil de aceitar. Ele pediu para que seu verdadeiro dono tirasse a vida que lhe havia sido dada, pois ela significava apenas fome pelas lembranças de Humoresque. Agora que sabia que poderia confiar na criança que cresceu após dormir sobre sua barriga, rejeitava aquela vida acima de tudo. A única coisa que queria era seu lugar entre os brinquedos, onde estaria seguro e amado enquanto seu dono existisse.
No final, Humoresque não teve outra escolha. Pior que tirar a vida do Urso seria não tê-lo de volta com todos os seus brinquedos. Em compensação, poderia aproveitar a experiência de remover o que os pais haviam implantado no Urso para assim aprender a dar vida para suas criações. Os dois se despediram uma única vez, então Humoresque rasgou suavemente a nuca do Urso com um canivete e removeu o novelo emaranhado contendo a vida artificial dada pelos pais. Seus olhos se apagaram, e mais uma vez não passava de um grande urso de pelúcia. Após guardar o novelo, Humoresque costurou de volta a cabeça do Urso, pronto para retornar completamente restaurado junto com seus outros brinquedos. Esta noite deveria descansar em paz, pois no dia seguinte começaria a estudar o novelo para descobrir como funcionava.
Enquanto estudava cada linha, conexão, cores e elasticidade, Humoresque descobriu o segredo por trás da formação da personalidade, inteligência, disposição, capacidade de memória, aparelho psíquico, sentimentos, tudo que tornou o Urso um vingador esfomeado. Era definitivamente um trabalho complexo e digno dos pais. Mas o que queria não era um monstro, por isso sua próxima criação teria que ser muito diferente daquele novelo em suas mãos. Não apenas um companheiro, precisaria de alguém que o ajudaria a progredir na arte de criar, um ajudante com inteligência capaz de ajudar até mesmo um criador. Sem os pais para ensiná-lo práticas avançadas, o que lhe restava era uma gigantesca biblioteca no castelo contendo mais livros do que poderia ler, poucos contendo o conhecimento que precisava, e muitos destes com linguagem além de suas capacidades de interpretação. Estes livros ensinando teorias avançadas na arte de criar são antigos e utilizam palavras extintas, de difícil compreensão e tradução.
Foi pensando nisso que projetou um boneco baixo com uma cabeça duas vezes maior que a própria, para caber uma mente capaz de pôr a biblioteca em uso. Ele começaria do zero, talvez sem conhecer nenhuma palavra, mas em pouco tempo poderia traduzir cada livro para que seu dono pudesse estudá-los.
- Você não precisa ser bonito, forte nem perfeito - disse enquanto costurava a cabeça após o implante - O que quero é um companheiro que esteja ao meu lado pelo que sou, pois estarei ao seu pelo que é.
Aos poucos os olhos sem vida se acenderam com poucas piscadas e a cabeça se ergueu. O boneco se equilibrou com os próprios pés, observou os dedos das mãos enquanto os movia individualmente, então se virou para ver seu criador. Sua boca se abriu, produzindo com voz fina algumas palavras para surpresa de Humoresque.
- Quem é você?
Sem responder, apenas sorriu e o abraçou. Sua primeira criação, pensou.