Terra das Criações - Capítulo 1

Esta noite eu tive um sonho sobre criação, decepção e conflito em um mundo de fantasia. Ela começa com um homem e uma mulher, grandes criadores, que unidos dão vida a uma terra com sua vasta criatividade e habilidade de criar qualquer coisa. Após se estabelecerem eles dão luz a três crianças, com quatro anos de intervalo para cada. Seus dois filhos e filha eram crianças tão criativas quanto os pais. A terra inteira os respeitava, incluindo os filhos como herdeiros dos maiores criadores de todos os tempos.

Tudo parecia perfeito e harmonioso, nada de errado acontecia nas grandes terras pertencentes aos criadores. Até a chegada de uma fatídica noite quando o filho mais velho teve o súbito impulso de se maravilhar com uma das primeiras criações de seus pais. Seus olhos brilharam com aquela visão tosca e ancestral, algo que qualquer um poderia produzir e replicar após analisar seu pequeno conteúdo por poucos minutos. Pior, ele se divertia, mais do que se divertiu com qualquer uma das incríveis e recentes criações dos seus pais.

Seus pais tinham grandes expectativas de seu primogênito, e ao vê-lo daquele jeito sentiram-se decepcionados. A paciência deles se esgotou, e antes de darem a luz à sua quarta criança eles decidiram deixar aquelas terras nas mãos imundas de seu filho mais velho. Para eles era como se a beleza vista em sua primeira criação fosse um sinal de que seu primeiro filho falhara em seguir seus passos, em ordem de se tornar um criador digno de título e respeito. Sua raiva os fez julgar as outras duas crianças da mesma forma pelo simples fato de, ao perguntar a eles se respeitavam e gostavam do irmão mais velho, responderem que sim.

A partir do dia seguinte o filho mais velho foi obrigado a assumir o posto de governante das terras de seus pais, mesmo conhecendo pouquíssimo de seu conteúdo pela vasta criatividade que eles tinham. Eles foram os melhores mentores na arte de criar, mas agora sua única fonte de conhecimento provinha das terras que herdara. Ele terá que explorá-las e entender os segredos por trás de cada mecanismo inventado pelos pais para um dia se tornar um criador capaz de replicá-las.

No entanto, a raiva de seus pais ainda persistia mesmo após estarem distantes de suas terras. Para castigar as três crianças eles começaram a enviar agentes destrutivos com o objetivo de dar fim a todas as suas criações naquelas terras, odiadas por serem ultrapassadas e ao mesmo tempo adoradas pelos seus habitantes. Como novo governante e protetor, o filho mais velho terá que proteger os habitantes e as antigas criações de seus pais, antes que todo valor histórico seja destruído e substituído pelas novas invenções de seus pais.

Capítulo 1

Era uma vez um casal em uma terra mágica e distante. Eles tinham o dom de criar o que a imaginação lhes permitisse, e com isto eles decidiram construir o lar perfeito para suas criações. Os dois tinham muito em comum, principalmente ao se tratar de sua arrogância e perfeccionismo, qualidades que os tornaram possivelmente os maiores criadores de sua época. Eles começaram do zero em uma terra pertencente a ninguém, onde nada havia além de planícies simples e desinteressantes. Isso logo mudou, pois em poucos anos a influencia deste casal transformou cada parte desta terra em regiões distintas e espetaculares, reunidas no recém criado continente de Snu.

Rodeados de nada além de perfeição, tudo criado pelas suas mãos, finalmente começaram sua família em seu castelo no centro de Snu. Primeiro nasceu um menino, Humoresque, e esta foi sua criação mais amada e paparicada. Para o primeiro filho dos maiores criadores de Snu, lhe foi dado os melhores presentes. Logo, um andar inteiro do castelo foi reservado para abrigar todos os pertences do pequeno bebê de apenas três anos. Ele era muito feliz brincando todos os dias com seus intermináveis brinquedos, mas chegou o momento que a maioria dos bonecos, carrinhos, bichos de pelúcia, trenzinhos e aviõezinhos foram ignorados, já que apenas alguns bonecos eram de seu interesse. Seus pais tentaram, mas nada que eles criassem desviava o amor de seu filho pelos seus bonecos prediletos.

- Ele ainda é novo - disse o pai para a mãe - Um dia ele desapegará destes velhos brinquedos e seguirá nossos passos.

Mesmo assim os dois não suportavam ver seu filho brincar sempre com os mesmos e tediosos bonecos. Então eles tiveram uma ideia que mudaria a atitude de seu filho e saciaria sua cede por inovação. Eles deram luz a uma segunda criança, uma menina chamada Elise. O nascimento de uma irmã roubou completamente a atenção de Humoresque, pois agora teria a chance de brincar com alguém após passar quatro anos sem companhia de ninguém da sua idade. Para ela os pais reservaram um andar inteiro para guardar seus brinquedos novos recém criados. Quando Humoresque saiu de seu andar do castelo, seus pais o barraram na entrada do andar de Elise.

- Não permitiremos que suje o aposento de sua irmãzinha com estes brinquedos velhos - disseram os dois olhando torto para o garoto carregando os bonecos que mais gostava - Se quiser brincar com ela terá que fazer com os brinquedos dela.

Sem opção e com muito desejo de brincar com alguém, assim o fez. Pela primeira vez na vida abandonou seu andar e se mudou para o segundo andar onde poderia brincar com Elise. Os criadores ficaram satisfeitos pelo plano dar certo, mas isso durou pouco tempo. Viram que o mesmo acontecia, desta vez com os brinquedos prediletos de Elise. Mais centenas de brinquedos jogados de lado por poucos exemplares, que nem eram as melhores na opinião dos pais.

- Não podemos deixar as coisas assim, mas repetir o plano apenas repetirá o fracasso - disse a mãe para o pai.

- Apenas mais uma vez. Antes que se repita, Humoresque já estará com 12 anos e pronto para seguir nossos passos - disse o pai - Até lá ele não pode viver acorrentado a criações ultrapassadas.

E assim fizeram quando deram luz a uma terceira criança, um menino chamado Presto. Novamente, o playground mudou de andar e os antigos brinquedos foram deixados nos andares inferiores. Elise e Humoresque se mudaram para o terceiro andar, obrigados pelos pais a deixar seus brinquedos prediletos para trás. Durante quatro anos, que passaram num piscar de olhos para as crianças, os dois irmãos e irmã brincaram e criaram laços de fraternidade. Mas finalmente chegou o dia que Humoresque iniciaria sua rotina de estudos e prática na arte de criar supervisionada pelos pais.

Humoresque era promissor, assim como as expectativas dos pais. A ele foi ensinado em três anos o básico, enquanto também lhe foi mostrado todos os arredores do castelo, até onde o horizonte tocava. Nenhum dia se passou sem que ele ficasse surpreso com as criações dos pais, e quando achou ter visto tudo descobriu que além do horizonte do castelo havia muito mais. Ao perguntar aos pais quanto mais poderia haver para se ver de Snu, eles disseram que talvez mais sete horizontes, mas não tinham certeza, nem interesse. Já haviam dito que quando a sua aprendizagem estivesse completa deixariam Snu para trás. Se mudariam para novas terras e começariam do zero, desta vez com Humoresque ao seu lado. Para eles não importava o que haviam criado no passado, mesmo que seu filho quisesse ver tudo.

- Não dê importância, Humoresque. Tudo que precisa saber para criar pode aprender conosco. Agora, há uma importante lição que precisa aprender. Para exercitar e dar liberdade para sua criatividade é necessário que deixe tudo que é velho de lado. Caso contrário, as maravilhosas inovações ficarão presas na sua cabeça.

Antes de continuar com sua aprendizagem, teria que cumprir com as condições de seus pais e se livrar de seus antigos pertences no primeiro andar. Ele pensou que seria uma tarefa fácil, mas ao entrar no seu andar e rever seus antigos brinquedos a saudade cresceu em seu peito. Quase havia se esquecido dos anos que passara lá sozinho, com apenas seus brinquedos para lhe fazer companhia. Principalmente ao ver seus bonecos prediletos. Sentiu pena, não quis se livrar deles e esquecer dos anos felizes que teve graças aos rostos alegres daqueles bonecos. No entanto, era sua obrigação fazer o que seus pais haviam pedido.

Enquanto sua família dormia à noite, Humoresque passou horas transportando os brinquedos do primeiro andar para o subsolo, o que levou horas intermináveis subindo e descendo escadas com os braços cheios. Quando finalmente terminou nem sabia que horas eram, e ao ver todos os seus brinquedos jogados no escuro do subsolo sentiu-se triste. Aquela poderia ser a última vez que veria seus brinquedos, então sem pensar aconchegou-se rodeado de seus brinquedos e dormiu para compensar a noite que passou em claro.

Horas mais tarde um barulho estranho o acordou. Era impossível dizer se era dia ou noite naquele lugar escuro. O som baixo vinha das entranhas ainda não exploradas do subsolo. Com a ajuda de um de seus bonecos que produzia luz própria, Humoresque buscou pela origem do som. Após poucos segundos prestando atenção com seus ouvidos, encontrou um pedestal coberto por uma capa branca. Seja lá o que estivesse debaixo da capa era também o dono do som. Humoresque ficou tomado pelo som que transmitia calma e serenidade, impossível de descrever em palavras ou comparar com qualquer outro som que ouviu em seus quinze anos de vida. Finalmente removeu a capa do pedestal, revelando uma incrível invenção que nunca vira antes. Seu formado, textura, aparência, simplicidade, peso, tamanho e até mesmo o som que produzia, tudo o fascinava sem saber a razão. Mesmo estando tão perto dele, o som ainda era baixo e suave, música para seus ouvidos, assim como o momento que acordou próximo da entrada do subsolo. A única forma que conseguia descrever aquele estranho e antigo objeto era perfeito.

- O que ainda está fazendo aqui, Humoresque?

Seus pais estavam preocupados e decidiram procurá-lo, pois já estava na hora do almoço. Mas quando o viram segurando aquele objeto seus olhos se arregalaram de espanto como se vissem um fantasma. Humoresque lhes contou sobre sua descoberta incrível.

- Deixe isso aí! - disse o pai quase gritando - Esta é nossa primeira criação, por isso deixe onde está!

- Sua primeira criação? Por que nunca me mostraram?

- Por que o passado fica no passado - disse a mãe - Que vergonha, eu achei que essa porcaria nem existia mais.

Os dois tomaram o objeto de suas mãos e estavam determinados a destruí-lo. Mas Humoresque reclamou:

- Mas eu gosto dele! Me ensinem como criaram!

Seus pais ficaram horrorizados ao ouvir as suas palavras. Após três anos ensinando e mostrando suas melhores criações, tudo isso para seu filho preferir a mais odiada e ancestral de seus trabalhos. No pico de sua raiva os dois ordenaram que Humoresque saísse do subsolo, que sua presença lá era proibida e jamais deveria retornar. Após ele se retirar reprimido e com o coração apertado, os pais ficaram lá raivosos refletindo no que haviam feito de errado durante o crescimento de seu primogênito.

- Não acredito que todos os nossos esforços tenham sido em vão! O que fizemos de errado? - perguntou a mãe.

- Nada. Fizemos nosso trabalho com nada além de perfeição - respondeu o pai - A única justificativa para isso é o fracasso por parte dele.

- Eu achei que você tinha destruído essa coisa. Para que guardou?

- Para me lembrar de como fizemos progresso desde que eramos jovens. Mas pense bem, pois se não fosse por isto nós teríamos descoberto a verdadeira face de Humoresque tarde demais. Ele não merece ser nosso herdeiro.

- E agora?! Ele já passou tempo demais com Elise e Presto! Sua má influencia já deve ter contaminado as mentes dos dois.

Estavam completamente decepcionados e decididos em abandonar sua casa. Não restava nada de valor para eles naquele castelo, nem nos arredores, nem em toda Snu. Já haviam passado tempo demais trabalhando para criar somente a perfeição, e acreditavam que se continuassem lá estariam cometendo o mesmo erro de seu filho. A hora havia chegado para deixar tudo para trás e começar novamente do zero. Os dois se dirigiram para a entrada principal do castelo e apenas aguardavam pelas gigantescas portas se abrirem com o complexo mecanismo por trás delas. O som dos portões se abrindo chamou a atenção de Elise e Presto que desceram correndo do terceiro andar. Seus pais olharam para trás e viram sua filha Elise com onze anos e Presto com sete.

- Onde está Humoresque?

- Ele não vai com vocês?

A pergunta dos dois deixou os pais na dúvida se não poderiam resgatá-los da má influência de Humoresque. Numa única tentativa se valeria a pena trazê-los consigo, perguntaram:

- O que vocês acham de seu irmão mais velho?

Foi uma pergunta estranha para os dois. Nunca haviam pensado sobre o que achavam uns dos outros. Elise respondeu primeiro:

- Sinto saudades dele brincando conosco, assim como sinto falta de minhas bonecas.

Os pais estalaram a língua indignados. A única coisa que os impedia de sair imediatamente era a espera da resposta de Presto. Ele ainda era muito jovem, nunca experienciara o sentimento de saudade como Elise e Humoresque. Por isso sua resposta foi mais simples.

- Eu gosto dele, ele é legal.

Não restava absolutamente nada que prendesse os grandes criadores às suas terras. De um dia para o outro eles sumiram e não foram vistos por ninguém. A noticia se espalhou rápido e os habitantes próximos do castelo ficaram alarmados. Ninguém sabia como seria a vida nas terras de Snu sem a supervisão dos grandes criadores. Nem ao menos sabiam se o primogênito estaria pronto com apenas quinze anos para ocupar o posto de Grande Criador. Sem os pais por perto não haveria ninguém apto a completar a aprendizagem de Humoresque na arte de criar, e ele sabia disto muito bem a ponto de sentir-se atormentado.

Havia decepcionado seus pais, eles provavelmente nunca mais retornariam. Tudo porque deu mais valor para uma antiguidade do que ela merecia na opinião deles. Estava perdido na dúvida se errara ou se deveria ser sincero com seus sentimentos, por mais antigo que seja a criação diante de seus olhos. Para ajudar a esclarecer seu dilema, Humoresque decidiu desobedecer seus pais e entrar no subsolo, mesmo após ter sido proibido de entrar. Lá ele acreditava descobrir a resposta para suas perguntas. Mais uma vez visitaria seus primeiros brinquedos e analisaria como seu coração se sente de verdade diante do passado. Somente assim saberia o que vale mais, o novo, ou o velho. Mas o que encontrou lá despedaçou seu coração por completo. Mal sabia ele que seus pais deixaram um último presente para ele lá, o pior de todos. Realmente a mais aterrorizante, detestável, repugnante e nojenta de todas as criações.

Lwades
Enviado por Lwades em 25/01/2013
Reeditado em 18/02/2013
Código do texto: T4104881
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