O Último Rei Orco - Parte 1 de 3 (revisão 2)

Nota do Autor: corresponde aos capítulos 1 a 7 da primeira versão, mais uns 50% de textos novos. Neste momento estimo que nesta revisão 2, o texto completo terá um prólogo, 3 capítulos, e um epílogo, e um tamanho de 1,5 a 2x do texto original.

Nos muros de Çatal Hoyuk, guerreiros aguardavam nervosos, seus rostos marrons com expressões cerradas, os dentes escuros pressionados firmes em maxilares tensos, enquanto aguardavam o ataque. Apenas a fé em JUS PATER, aquele que os orcos chamavam de Z-US, o Deus Pai dos primeiros homens, ainda sustentava sua esperança, cercados que estavam por uma força muito superior. Se caíssem, restaria apenas Asikli Hoyuk, a primeira cidade, como último baluarte do homem, e JUS PATER não deixaria isto acontecer. Pelo menos era o que seus sacerdotes diziam, enquanto caminhavam por entre os primeiros homens, para garantir a firmeza de sua convicção.

Ao redor da cidade, os orcos também aguardavam, disciplinados e organizados como nunca antes estiveram, divididos nos dois grandes acampamentos das tribos de In e de El e em pequenos grupos das tribos menores. Eles esperavam pela palavra de seu líder, aquele que unificou todas as tribos e os liderou na guerra vitoriosa contra elfos e humanos: Makel.

Eles aguardavam enquanto Makel buscava uma audiência com os próprios deuses.

"Como impedir que sejam os homens a herdar a Terra?". Era a pergunta que o rei dos orcos se fez quando seu irmão, Shadel, trouxe uma mensagem do além vida. Em sua tenda, cercado por sua família e seus mais fiéis guerreiros, Makel repetiu-a em silêncio uma vez mais. Era a pergunta cuja resposta o rei buscaria de APOL, deus da verdade, na audiência que custou seu olho, sua mão e a esposa que amou.

O rei orco fechou seu olho verdadeiro e abriu o outro olho, o olho que conquistou em combate, se deixando levar pela visão do dragão. Mais que visão, era como cavalgar um dragão de verdade. Como cavalgar o vento. Ele nem viu a taça de Nectar cair no chão, escapando da mão que lhe sobrara, enquanto o vento o arrastava para outro mundo. Os soldados que o cercavam impediram que seu corpo caísse, e o colocaram com cuidado em uma cama feita de pele de carneiros.

A frente do rei orco, em sua visão do dragão, N-BIS, um deus menor, surgiu em meio a uma névoa sem fim, cessando, no mesmo instante, o vento que arrastara o rei até aquele local. A imagem de N-BIS era translúcida e intermitente, aparecendo e desaparecendo a cada instante. "Com dois olhos de dragão, minha visão seria perfeita, mas arrancar meu olho esquerdo já foi um preço alto demais", pensou o rei orco, "melhor enxergar um pouco no mundo dos deuses e um pouco no mundo mortal que ser cego em um deles".

- Um orco, aqui? Veio entregar seu coração como oferenda para N-BIS? - A voz era sibilante, quase um uivo.

- Não vim para fazer oferendas, devorador de corações, vim para obter respostas.

- Respostas? Acaso agora os deuses são servos, e os mortais reinam supremos? Acaso agora cabe a mortais fazer perguntas, e a deuses dar respostas?

- Eu paguei o preço. Minha mão pela vida do dragão. Meu olho pela sua visão. Minha esposa em sacrifício, oferenda ao arqueiro APOL, deus da verdade. Leve-me a ele. Agora!

- Falarias assim com Z-US PAI? Com V-NU ou J-VA? Pensa em mim como um deus menor, não é? Mas também a N-BIS há aqueles que seguem, rei dos orcos. Farias bem em lembrar isto.

O rei orco ficou em silêncio, sem responder, mas também sem abaixar sua cabeça. Seu único olho aberto, o olho do dragão que ele colocou no lugar de seu próprio, fixo no rosto de chacal de N-BIS.

Por fim, N-BIS lhe deu as costas e falou, sem olhar para trás - Siga-me, então, último rei dos orcos. Eu o levarei a APOL.

O rei orco seguiu em silêncio o devorador de corações. O olho direito, seu olho verdadeiro, sempre fechado. Abri-lo por um momento o faria despertar de seu sonho divino.

Ou enlouquecer.

Foi uma longa caminhada em meio ao nada, a névoa ao redor permitindo ao Rei vislumbrar, apenas por alguns instantes, cenários assombrosos, de tempos em tempos. Palácios maiores que uma cidade, precipícios sem fim, estátuas gigantescas de orcos, elfos, homens, e seres que Makel jamais havia vislumbrado.

Por fim, N-BIS parou quando a névoa começou a se dissipar, e Makel, rei dos orcos, se viu perante o deus com quem buscava sua audiência.

O arqueiro APOL, filho de Z-US, era o mais lindo dos deuses, tão alto e belo quanto um orco, um gigante perto dos minúsculos humanos. Ele, mais que ninguém, saberia a resposta a pergunta do rei Makel.

N-BIS se retirou sem nada dizer, enquanto o rei orco aguardava que APOL se dirigisse a ele. Foi um longo tempo de silêncio, até que o deus finalmente levantou os olhos, que contemplavam uma pequena poça de sangue a seus pés, e, ao olhar para o rei, perguntou o que o trazia a morada dos deuses.

- APOL, filho de Z-US, eu, Makel, rei dos orcos, vim para lhe perguntar. Como podemos impedir que os homens se tornem os herdeiros da Terra? Como podemos garantir o futuro de minha raça?

- Vocês não podem. Os homens herdarão a Terra porque esta foi a palavra dita por Z-US, último rei dos orcos. - Ele então se virou para voltar a contemplar a poça a seus pés.

O rei orco sentiu seu coração se apertar. Seus sacrifícios, sua mão, seu olho, a mãe de cinco de seus filhos, todos um preço que não seria pago com tão pouca resposta. Mas era a um deus que ele se dirigia, e não um deus menor como N-BIS, mas um dos filhos de Z-US.

- APOL, deus da luz e do sol, da verdade e da profecia, nós somos criaturas de J-VA, não de Z-US, é verdade, mas nós lutamos e mostramos nosso valor e devoção nos campos de batalha. Ao queimarmos nossos inimigos, fazemos oferenda não apenas a J-VA, mas também a todos os grandes deuses. O que fizemos para ofender a Z-US desta forma, e como podemos nos redimir?

- Aproxime-se, último rei dos orcos. Aproxime-se e olhe para o espelho do tempo.

O rei orco aproximou-se de APOL e olhou ao redor, até perceber que era à poça de sangue no chão que o deus se referia. Ao olhar fixamente para ela, parado ao lado de APOL, ele viu imagens se formarem, uma visão dentro de sua visão, e ouviu uma voz, a voz de um dos três grandes deuses.

- Aqui eu planto a primeira árvore, neste que será o primeiro bosque - um ser de quatro braços falou, enquanto depositava uma semente na Terra. V-NU, o primeiro deus, Makel pensou em silêncio, enquanto observava a cena tão de perto quanto se estivesse ao lado dos deuses.

- E aqui eu faço o primeiro lago - O ser que assim falou, e escavou um buraco no chão, era Z-US, supremo entre os deuses.

- E o que você fará? Qual será sua marca neste novo ciclo que inicia? - V-NU perguntou ao terceiro deus, que mais que qualquer dos outros se assemelhava a um orco, pois era à sua imagem e semelhança que o povo de Makel havia sido criado. O terceiro deus era J-VA.

- Eu não farei nada. Eu não deixarei nenhuma marca, por enquanto.

Os outros deuses não demonstraram emoção, mas Makel soube que eles estavam surpresos. Sua visão dentro de uma visão era composta por mais que sons e imagens. Era como se ela também estivesse acompanhada de conhecimentos que não deveriam estar ao alcance de um orco, e ele soube que a fala de J-VA foi inesperada.

- Vocês foram os primeiros deuses a surgir nesta era - disse V-NU - e em todas as eras os primeiros deuses deixaram sua marca, após eu plantar a primeira árvore - a voz de V-NU se tornou ainda mais firme, de alguma forma carregada de poder, quando ordenou - Deixe sua marca, J-VA.

- E se eu não obedecer? És mais antigo que todos os deuses desta era, V-NU, mas não és mais poderoso que eu. Vais tentar me forçar a obedecer?

Houve silêncio, e então Makel percebeu que a semente plantada por V-NU era agora uma árvore, em meio a um bosque. O buraco escavado por Z-US, um lago. Havia se passado um tempo? Era ainda a mesma cena, ou era uma nova visão, os deuses tendo se reunido novamente? Makel não saberia dizer.

- De dentro desta árvore nasce o primeiro elfo. Das outras árvores deste bosque, os outros elfos nascerão. Imortais e com devoção sem igual, eles cantarão a glória dos deuses, e darão poder a V-NU, aquele que viu incontáveis eras - e no que o deus falou, elfos começaram a surgir de cada uma das árvores do bosque.

- A água deste bosque é a água que cria os homens - disse Z-US - que eles se multipliquem em grande número, e que este número seja a marca do poder de Z-US.

E Makel viu os homens saírem, dois de cada vez, homem e mulher, do primeiro lago.

Então J-VA colocou a mão no chão, a beira do lago, e disse - Que do barro surjam os orcos, e que eles sejam sem iguais na arte da guerra. Que eles exterminem elfos, homens e todos que sejam súditos de outros deuses. Que, quando dominarem a Terra, J-VA se torne supremo entre os deuses.

Assim que o primeiro orco surgiu do barro, V-NU olhou na direção de Makel, como se o visse pela primeira vez - O que faz um orco observando os deuses, rei Makel? - Ele fez um gesto, e Makel se viu novamente no salão de audiências de APOL.

A poça de sangue no chão havia secado. Makel se dirigiu ao deus APOL.

- Eu não entendo, J-VA disse que iríamos exterminar os outros povos e reinar supremos. Os elfos já foram derrotados e expulsos para florestas longínquas, e as cidades dos humanos caem uma após a outra, apenas duas ainda restam. Então seremos nós a herdar a terra, diferente do que meu irmão me trouxe como palavra do além-vida?

- Você não viu o que aconteceu depois, pois V-NU percebeu e não julgou apropriada sua presença, Makel, último rei dos orcos. J-VA ousou desrespeitar e desafiar os outros deuses, tentar tomar para si o poder de V-NU, que veio antes de todos. Tentar superar a Z-US, o deus supremo desta era. Mas ele se esqueceu que Z-US recebeu o poder da palavra, o poder de fazer tudo que ele disser se tornar realidade. Foi com a palavra que ele fez o mundo. Quando viu a criação de J-VA, e seu plano de se tornar o mais poderoso, ele riu ante a arrogância de seu deus, e então usou a palavra, e disse a frase que o trouxe aqui, último rei dos orcos.

E Makel ouviu a mesma frase que seu irmão morreu para trazer do além-vida.

- Não importa quantas batalhas sejam vencidas, não importa quantas guerras sejam travadas. Não importa quantas sejam as vitórias dos orcos, serão os homens que herdarão a Terra.

* * *

- Meu rei, você está bem? - A voz de Ab, o segundo mais velho dos filhos do Rei, parecia vir de muito longe, mas foi o suficiente para fazer Makel abrir seu olho direito, totalmente desperto, a mão já buscando instintivamente seu machado de guerra. O olho esquerdo, o olho do dragão, permanecendo fechado.

Em apenas um instante, Makel percebeu que estava em segurança, em seu acampamento. Levou alguns segundos a mais para se lembrar da razão de estar ali, e para onde tinha sido sua jornada. Nestes segundos, também lembrou das respostas do deus APOL, respostas que condenaram seu povo.

- Meu rei? - Ab falou novamente, mas Makel não lhe respondeu. Ele se levantou, o machado em sua mão, e caminhou para fora da tenda, sem olhar se Ab o seguia.

Era noite ainda, mas um brilho vermelho já começava a tomar conta do céu no horizonte, preparando o nascer do sol. Ainda sem olhar para seu filho, Makel falou, sua voz de alguma forma diferente, contendo ainda mais fúria do que Ab estava acostumado a ouvir.

- Chame Seth da tribo de El. Chame Cãn da tribo de In. Chame todos os lideres das tribos menores. Diga para virem agora, ouvir minhas palavras. Quando o sol nascer, atacaremos e destruiremos Çatal Hoyuk.

- Meu rei, não sei se conseguiremos acordar e organizar os soldados a tempo. Não é melhor esperarmos o anoitecer? Estaremos atacando a cidade em plena luz do dia - Ab calou quando o rei se virou, olhando-o de frente pela primeira vez desde que havia despertado. Seu olho esquerdo, o medonho olho do dragão que sempre permanecia fechado, agora aberto e olhando nos olhos de Ab.

Makel nada falou, mas Ab da tribo de El sentiu, pela primeira vez, verdadeiro medo de seu pai, e se virou para correr e chamar os líderes das tribos dos Orcos.

Não foi menor a surpresa de Seth e Cãn, os outros filhos homens do rei, quando receberam a ordem de atacar Çatal Hoyuk à luz do amanhecer. Seth apenas aceitou em silêncio, sem questionar a vontade de seu rei. Coube a Cãn protestar.

- Atacando à luz do dia, estaremos expostos as flechas dos guerreiros da cidade, nossas perdas serão muito maiores.

Makel não respondeu à crítica de seu filho, ou talvez seja melhor dizer que respondeu à sua maneira quando deu as costas a todos e começou a caminhar em direção a cidade.

- Eu atacarei Çatal Hoyuk agora, com ou sem meu exército a me seguir.

Por um momento, Makel se imaginou aproximando-se sozinho da cidade, talvez exigindo um duelo com seu rei. Mais provavelmente seria morto por flechas antes mesmo de chegar próximo às muralhas. “Melhor assim”, o rei pensou em seu desespero, “encerrar minha vida em combate, enquanto meu povo ainda é forte. Melhor não assistir o fim de minha raça”.

Mas foi apenas um momento que durou este pensamento, pois poucos passos o rei deu antes de se ver cercado pelos guerreiros de seu povo, já armados e cantando suas canções de guerra, Seth e Ab rapidamente se posicionando em cada um dos lados do rei, Cãn um pouco mais atrás.

O rei nada falou durante a caminhada até os muros da cidade, nem demonstrou reação quando as flechas começaram a cair, embora pela primeira vez atacasse uma cidade sem segurar um escudo, o braço arrancado na luta com o dragão. Seth, Ab e um cem número de orcos eram seu escudo, mas mesmo sozinho não faria diferença. Sua raça estava condenada, e Makel estava além do medo.

A marcha de Makel e seus guerreiros se tornou uma corrida assim que chegaram ao alcance das flechas dos defensores da cidade, todo orco querendo a glória de ser o primeiro a escalar os muros, o primeiro a derramar sangue.

Para Makel a sensação era de irrealidade, de estar em um sonho menos real que sua jornada entre os deuses. Seu machado movia-se de um lado para o outro, como se tivesse vida própria, corpos espalhando-se ao seu redor, os portões da cidade arrombados atrás de si.

Por fim, ele só se sentiu despertar de seu sonho de guerra e morte quando ouviu a voz de seu filho, Seth, o machado não mais em sua mão, um minúsculo humano caído a seus pés.

- Onde está Z-US, sacerdote? Por que ele não o salva? Por que ele não detém minha mão? - o rosto humano estava deformado e coberto de sangue, o corpo caído no chão na entrada do templo de Z-US, aquele que os humanos chamavam de JUS PATER.

- Ele não pode mais responder, meu pai. Está morto. - Seth mantinha distância de seu Rei. A batalha havia terminado. Os poucos humanos ainda vivos, mulheres e crianças em sua maioria, já começavam a ser reunidos para serem levados para o acampamento, para servirem de diversão aos soldados. Poucos sobreviveriam para ver a luz do sol novamente. Nenhum soldado humano ainda vivia, mas não era os humanos que os Orcos temiam. Era seu próprio Rei.

- Morto - o Rei repetiu, como se não tivesse entendido. Então olhou sua única mão, coberta pelo sangue. Ele havia espancado vezes sem conta o diminuto sacerdote humano, largando seu machado e usando apenas o punho como arma.

- Foi uma grande vitória meu pai. Apenas Asikli Hoyuk ainda resiste, agora, e quando este último baluarte cair, os humanos terão desaparecido por completo.

- Vitória? Você vê uma vitória aqui, filho? - O Rei Orco olhou a devastação ao redor, as casas em ruína, os corpos pelo chão. - De que adiantam vitórias, se no final serão os humanos a herdar a terra? De que vale ganharmos todas as batalhas se Z-US já nos condenou a desaparecer? - O guerreiro não respondeu, apenas abaixou os olhos. Ele nada entendia sobre a vontade dos deuses, mas sabia que era melhor não discutir com seu pai, não com um pai que a cada dia parecia se aproximar mais da loucura.

- Eu não posso aceitar isto. Nós vencemos cada batalha. Não vou aceitar que eles herdarão a terra, não me importa a vontade de Z-US. - Um relâmpago caiu do céu no instante que o Rei Makel falou, e o guerreiro se encolheu involuntariamente, ante a blasfêmia de seu pai.

- Quando o último humano morrer, meu pai, não estará nossa vitória completa? Não seremos então os únicos herdeiros da terra? - O Rei olhou para seu filho, o hediondo olho do dragão, que permanecia quase sempre fechado, se abrindo e olhando para ele junto com o olho normal.

- Não se não for a vontade de Z-US. Sua palavra tem poder.

- Então, meu pai, vamos enfrentar nosso destino. Vamos partir para Asikli Hoyuk e acabar logo com isto. E se Z-US decidir por nosso fim, se J-VA permitir que ele nos destrua, que assim seja. Morreremos como orcos devem morrer, morreremos lutando.

- Não!

Seth olhou para seu pai, sem entender.

- Não - O Rei repetiu - Vocês não partirão para lugar algum. Vocês ficarão aqui, aguardando meu retorno, pelo tempo que for preciso.

- Aguardando, meu pai? Mas para onde você vai?

- Eu vou ver J-VA. Eu vou encontrar o deus supremo, e ele irá me dizer como quebrar a palavra de Z-US. E quando eu retornar, com sua resposta, só então, nós iremos conquistar Asikli Hoyuk.

E o último Rei Orco deu as costas a seu terceiro filho masculino, e partiu, para encontrar o deus que criou seu povo.

* * *

O último rei dos orcos contemplava o deserto de pedra a sua frente, o rosto frio escondendo os sentimentos que o corroíam por dentro. A seus pés, seu machado, seu cantil, e todos os mantimentos que carregara consigo. Apenas com as roupas que vestia ele faria a travessia, seguindo as palavras de Ashili dos elfos.

“Eu o vejo no deserto na fronteira do reino dos homens, as ruínas da última cidade que conquistou para além do horizonte, seus filhos aguardando-o, sem saber quão perto deles você está. Sozinho, sem armas nem mantimentos, eu o vejo caminhar, por dias e dias, suas forças se esvaindo, J-VA sempre além de seu alcance. E então, nada mais eu vejo, Makel dos orcos”.

Foram três vezes os dedos de sua mão que o último rei dos orcos viajou, em busca da visão de Ashili dos elfos, após a queda de Çatal Hoyuk. Ashili que ele amou antes de qualquer outra mulher, em uma época em que ele ainda era ingênuo em achar que poderia não se tornar um guerreiro orco. Ashili que o amou antes dele ser Rei.

Mais três mãos que duraram seu retorno, da distante terra para onde sua guerra exilou os elfos, e ele se encontrava novamente próximo de Çatal Hoyuk, a penúltima cidade. Todo este tempo sabendo que os elfos não permitiriam que ele vivesse, se apenas soubessem que o rei dos orcos estava entre eles. Bastaria uma palavra de Ashili, e eles teriam sua vingança contra aquele que os expulsou de suas terras.

Mas Ashili nada falou. Para ela, antes de ser aquele que matou seu irmão e expulsou seu povo, antes de tudo, ele era e sempre seria Mak da tribo de El, o orco com o coração de um elfo, como ela o chamava. E ela sempre o amaria.

Para ele, ela sempre seria sua primeira amiga, quem o acolheu quando ele fugiu de seu próprio povo, e a primeira mulher que ele amou.

Mas os amores dos mortais de nada importam, quando seus deuses fazem a guerra.

E o último rei dos orcos levantou a cabeça, olhou o deserto sem fim, e deu o primeiro passo de sua última jornada.

“E então, nada mais eu vejo, Makel dos orcos”, ela havia dito, quando trouxe para si a visão trazida pelo corvo, “exceto sua morte”.

* * *

- Minha amada Lith, seu sacrifício foi em vão. - Ao entardecer do sétimo dia, caindo de joelhos no chão do deserto de pedra, foi a primeira e a última frase do último rei orco. Suas forças finalmente se esgotando, a esperança há muito perdida.

Lagrimas escorreram das faces do rei. Lágrimas que ele não chorou quando matou o irmão de Ashili em combate, o elfo que era mais irmão que seus irmãos. Lágrimas que não chorou quando atravessou com uma adaga o coração da única mulher entre os orcos que amou, seu sacrifício um dos preços pela audiência com APOL. Lágrimas de água salgada como o mar, pelo lado direito de seu rosto. De seu olho esquerdo, o olho fechado que um dia pertenceu a um dragão, lágrimas de sangue.

Um orco nunca implora. Um rei orco toma aquilo que deseja, sem nunca se desculpar, nunca se submeter. Mas naquele entardecer, certo que sua raça estava destinada a extinção, vendo que seus sacrifícios seriam em vão - sua mulher, seu olho, sua mão - naquele entardecer, o rei orco implorou.

- J-VA, deus de todos os orcos, eu imploro. Dê-me uma luz, ajude-nos. A palavra de Z-US é a verdade, e em sua palavra não houve espaço para nós. Só vós podeis dar novamente esperança ao seu povo escolhido. Eu imploro.

Uma voz, então, Makel ouviu. Tão silenciosa que se confundia com o barulho do vento. Tão tênue que não saberia dizer se era verdadeira, ou apenas sua imaginação.

- Você arrancou seu olho esquerdo, mas poupou o direito. Tomou a vida de sua mulher, mas não a própria. Bebeu o néctar dos deuses, mas não comeu a ambrosia. Você agora implora por respostas, quando antes aceitou apenas meias verdades pelo seu meio sacrifício.

- J-VA? É você que me fala? Ou minha razão por fim se foi, como meus filhos temiam?

O silêncio. Vento soprando.

- J-VA, se é minha vida que queres, ela é sua. Meus olhos, minha alma. Apenas me dê a resposta que salvará meu povo.

Novamente uma voz que parecia a voz do vento, pouco mais que um sussurro no silêncio.

- No centro do deserto de pedra, há um bosque com uma árvore cujo fruto é ambrosia, o alimento dos deuses. Há um lago cujas águas significam morte e vida. Há aqueles que o aguardam para guiá-lo, e para cobrar seu sacrifício. Ouça o que você irá fazer, último rei dos orcos. Ouça como você irá morrer.

E o último rei orco ouviu como seria sua morte. E então se levantou e partiu.

Foi no amanhecer de um novo dia que Makel chegou ao primeiro bosque, e parou a beira do primeiro lago e aos pés da primeira árvore. Seus galhos estavam secos, e apenas uma fruta era visível, perfeitamente redonda e ao alcance da mão.

- Ela está morrendo, apodrecendo por dentro, desde que Wotan arrancou um de seus galhos.

O rei orco se virou na direção da voz.

- Quem é você? - e ao ver a estranha criatura que parecia um lagarto sem pernas, sobre a rocha, continuou - O que é você?

- Quem eu sou - a voz sibilante lhe respondeu - Apenas um humilde servo de J-VA, e o guardião do primeiro bosque, agora que as Nornir partiram.

- Servo de J-VA? Então você sabe por que estou aqui?

É claro que sei, último rei dos orcos. Você veio pela mesma razão de todos que vieram à árvore de todo o conhecimento, tanto do bem quanto do mal. Você veio em busca de respostas. E veio também para morrer, é claro.

O Rei ficou em silêncio, por alguns segundos, e então falou - Sim, eu também vim para morrer, se esta é a vontade de J-VA.

- Então, aproxime-se da árvore, último rei dos orcos. O corvo o aguarda, para cobrar seu preço, como antes ele cobrou o preço de Wotan, que veio também em busca da verdade. Ele mostrou que estava disposto a pagar o preço. E você?

O Rei Orco se aproximou da árvore e só então viu um corvo, que abriu suas asas e começou a vir em sua direção.

- Eu pagarei todos os preços que houver para pagar.

- Então, deixe-me ajudá-lo a cumprir seu destino. - E a criatura deslizou da pedra para o chão, e do chão para o pé de Makel, se enroscando e subindo pelo seu corpo, até sua boca quase encostar no ouvido direito do Rei.

- Deixe que o corvo arranque o olho que lhe resta sem medo, orco, que eu serei seus olhos.

Sem se mover, Makel aguardou impassível, até que o corvo, em um rápido movimento, arrancou seu olho direito. Cego, o barulho das asas do corvo indicando que ele voava para longe, ele avançou dois passos e puxou o fruto da árvore, cada movimento seguindo a voz em seu ouvido.

- Um ser inferior pode, uma vez, beber o Néctar dos deuses, ou comer a fruta ambrosia, o alimento dos imortais, mas jamais fazer as duas coisas. Para alguém que já bebeu o Néctar, comer a Ambrosia é desafiar os deuses e cortejar a loucura - A voz da criatura, incessante em seu ouvido.

Makel comeu o fruto, cego, a dor onde era seu olho apenas aumentando. Ele não se atrevia a abrir o outro olho, o olho do dragão, certo que o que restava de sua sanidade iria se esvair se ele visse o bosque com o olho do dragão.

E então, o último rei orco de um passo, e depois outro, em direção ao lago, cada passo guiado pela voz em seu ouvido.

O encostar no lago foi um choque, os pés começando a queimar, como se ele estivesse entrando em um lago de fogo. Mas Makel continuou, um passo após o outro, até todo seu corpo parecer arder.

Por fim, com um novo passo para frente, ele não pode mais respirar, a água chegando a altura de sua boca. Mas Makel não hesitou, trancando a respiração apenas por um instante. A criatura em seu pescoço se desvencilhando e partindo para trás. A água preenchendo seus pulmões, seu corpo todo ardendo como se em chamas.

E ainda assim, o último rei orco ainda deu um passo, e um novo passo, enquanto seus pulmões se enchiam de água.

E ele então pensou, em silêncio, na única pergunta que ainda lhe importava: Como impedir que fossem os homens a herdar a Terra?

E morreu.

* * *

- Junte-se a nós ou saia do caminho.

Seth permaneceu imóvel, a ponta da espada encostando no chão, as pernas ligeiramente abertas, os olhos fixos em seu irmão mais velho. Ao seu lado, seu irmão do meio, Ab, de braços cruzados, apoiava-o simplesmente por estar ali. Atrás de Cãn, todos de sua tribo aguardavam.

- O rei disse para esperarmos, Cãn. Ele disse para esperarmos o tempo que fosse necessário, que ele voltaria para nos liderar no ataque a Asikli Hoyuk. Sua palavra é a lei para todas as tribos, inclusive a tribo de El. Inclusive a tribo de In.

- Um rei Louco? Um rei que arrancou o próprio olho? Que matou sua própria mulher? A tribo de In não segue um rei destes.

- Makel uniu todas as tribos, e todas juraram segui-lo enquanto vivesse. As tribos de In e El, mais que todas as outras, pois não foi destas tribos que ele desposou as mulheres e gerou a nós, seus filhos e filhas? Não foram as tribos de In e El que fizeram o juramento de sangue, o juramento de serem amaldiçoadas se um dia abandonassem seu rei? Não trazemos todos a marca de Makel?

- Makel está morto

- Como ousa - Ab gritou e teria atacado ali mesmo seu irmão mais velho, a mão quase puxando a espada, mas a voz de Seth o deteve. - Pare!

Seth então olhou para o mais velho dos filhos do rei Makel, sua espada ainda encostando a ponta no chão, os braços ainda aparentemente relaxados.

- O rei ordenou que esperássemos seu retorno. E nós esperaremos. Ele está vivo e ele retornará.

- Makel está morto - Cãn repetiu pela segunda vez.

- A tribo de In já enterrou vivo o seu Rei? Esta é toda a fé que vocês têm? - Seth olhou com desprezo para os seguidores de Cãn - A tribo de El esperará por todos os dedos da mão de cada um de seus guerreiros, e ainda assim acreditará em seu retorno. O inverno virá, trazendo neve e fome, e quando o verão retornar, ainda encontrará a tribo de El esperando seu Rei. E ele virá!

- Makel está morto - Cãn repetiu pela terceira vez.

- Como ousa dizer isto. Como ousa abandonar seu pai?

- Esta noite, Seth El, filho de Mak El, esta noite eu sonhei com nosso pai. Eu sonhei que ele deixou um corvo arrancar seu olho, o olho que lhe restava. Sonhei que ele comeu ambrosia. E sonhei que ele mergulhou no primeiro lago. Eu sonhei e em meu sonho, Makel morreu.

- Um falso sonho.

- Quando acordei, um corvo estava a meus pés. E todos sabem que os corvos trazem os sonhos verdadeiros.

- Este trouxe um sonho falso.

- Ele não trouxe apenas um sonho - E Cãn puxou um objeto de dentro de suas roupas, e jogou aos pés de Seth.

Quando percebeu o que era, Seth se abaixou e segurou o objeto em sua mão. A espada, esquecida, caindo na relva. Era um olho, e Seth soube instintivamente que era o olho que restara a seu pai. E soube também que o Rei estava morto.

Um movimento, Seth então mais sentiu do que viu, e soube que era a espada de Cãn, descendo em sua direção. Soube também que não conseguiria se desviar a tempo da mesma.

Alguém se jogou sobre ele, derrubando-o e ficando no caminho da lâmina, e Seth ouviu o grito de Ab, um grito interrompido subitamente.

Quando Seth se levantou, um golpe o atingiu na cabeça, e a escuridão dominou seu mundo.

Abriu os olhos para um mar de dor e sangue, e sentiu que um tempo havia se passado. Orcos da tribo de El o acudiam. Ele os empurrou e se levantou, apenas para ver, quando se afastaram, o corpo de seu irmão, Ab El, o pescoço quase arrancado, o rosto em um sorriso desfigurado, caído sobre uma poça de sangue.

À distância, Cãn e sua tribo caminhavam em direção ao horizonte. Ainda tonto, Seth pegou sua espada no chão, pronto para persegui-los.

Foi quando a voz de um morto o deteve.

* * *

A voz de J-VA, aquele que um dia foi o último rei dos orcos, aproximou-se de seus filhos, do que vivia e do que estava morto.

- Deixe Cãn partir. Mais nenhum sangue de In ou de El será derramado esta noite.

Seth foi o primeiro a se ajoelhar ante o milagre a sua frente, seguido em instantes por todos os Orcos, enquanto olhavam, admirados, para seu rei.

- Meu pai, como é possível? Seus olhos, sua mão? Cãn disse que o viu morrer em seu sonho - A visão era assombrosa. O rei parado, os orcos ajoelhados a seu redor. Sua mão esquerda tão perfeita quanto a direita, seus olhos intactos.

- Cãn disse a verdade! Makel, último rei dos orcos, está morto. Eu sou a voz de J-VA. Eu fiz a última viagem, a viagem da qual não há retorno, e retornei.

- Mas Cãn matou Ab, meu pai, e agora mesmo desaparece de nossa vista, à distância. Deixe-me trazê-lo para seu julgamento.

- Não. Ele deve partir. Ele e a tribo de In. Eu vi as visões que apenas os mortos vêem, eu soube verdades que não pertencem ao mundo dos vivos. Cãn e sua tribo devem partir, Seth, esta é a vontade de J-VA. Sete mortes J-VA trará para aquele que matar Cãn ou qualquer um de sua tribo, e nós não queremos esta maldição para nós.

- Então a morte trouxe de volta meu pai e levou meu irmão. Ab deu sua vida por mim, mas daria dez vezes por você, meu pai.

Aquele que foi o último rei dos orcos não respondeu. Ele se ajoelhou ao lado do corpo de seu filho morto, sua mão direita puxando um cantil amarrado em sua cintura, para em seguida derramar água cristalina no rosto ensangüentado.

- Esta é a água do primeiro lago. Ela lhe dá um novo nome, lhe dá uma nova vida.

- Você agora tem o poder de despertar os mortos, meu pai? - Seth perguntou. Aquele que um dia foi Makel olhou para o corpo a seu lado, como se esperasse para saber como responderia a pergunta.

A voz de J-VA então se levantou - Se fosse para Ab viver novamente, ele se levantaria e nos seguiria. Ao que parece ele não nos acompanhará para Asikli Hoyuk.

-Asikli Hoyuk? Então a última batalha irá começar.

- Ouça-me, Seth. Ouçam-me todos, pois minhas palavras são as palavras de J-VA. Iremos a Asikli Hoyuk, exterminar os humanos de uma vez por todas. Nenhum homem deve sobreviver, e nenhuma mulher que possa trazer um homem em sua barriga. Então, matem agora todos os rapazes, e também todas as mulheres que já alguma vez se tenham deitado com um homem; as restantes deixem-nas em vida e podem levá-las convosco, pois elas não poderão gerar filhos homens. Estas foram as palavras de J-VA, que agora repito a meu povo.

E assim, a voz de J-VA, que um dia foi o rei orco, partiu, com seu exercito, para o último bastião do homem.

Só muito depois, quando já era noite novamente, Ab El despertou de sua morte, confuso, e partiu também, sem rumo e sem saber por que vivia.

Ele não voltaria a encontrar seu pai.

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Ashur
Enviado por Ashur em 13/01/2013
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