Um telefonema de Deus
A noite foi mal consumida. Queixei-me, repudiei a mim mesmo. Calhaus aguçados feriam-me os olhos quando os tentava fechar. Estavam pesados. A minha natureza pérfida, involuntária, emporcalhada por afinidades electivas, estava desprovida de qualquer verdade. Tempo, espaço, causalidade, porque me detenho em pensar o mundo em tais aparências? Queria respostas! Respostas que me eram proibidas, que me transcendiam, que eu jamais aceitaria. Mas era a minha vontade, por mais que a satisfação consequente fosse dolorosa, queria-a para mim, para abraçá-la com as unhas cheias de nervos, impetuoso, com um impulso cego. Queria respostas, respostas para racionalizar as minhas dúvidas, dados quantitativos que pudessem humilhar a minha angústia, derrota-la, subjugar a minha infelicidade múltipla. Questões!
Os meus olhos estavam abertos, doentios, envidraçados com a habitual muleta, encaixados perfeitamente no nariz, sem no entanto enxergar um palmo à minha frente. O telefone tocou. Um número estranho, talvez, poderia ser de qualquer canto do mundo, mas a quantidade de algarismos era mesmo absurda! Atendi com a vontade de um se-vontade, com um falar mesquinho, precisamente rico de tormento.
– Pedro, filho, não sofrais!
A minha reacção não foi inédita nem disciplinada.
– Com quem falo?
– Procurastes por mim…
– Ah!
– Tendes perguntas cujas respostas não conhecereis, filho!
– Senhor?!
– Sim, Pedro!
– É mesmo o senhor? O Senhor…?!
– Quem mais poderia ser, filho?
– Qualquer um, Senhor, menos Vós!
– As estações substituem-se, Pedro. Não mudais vós?
O medo encurralou-me. Cresceu em mim a vontade de confusão. “Seria mesmo Ele, o Senhor Deus? O Rei dos Reis? O Comandante das tropas celestiais? O Juiz Supremo?” Encheu-se a minha alma de imoralidade. Oh!, porque duvidava eu?
– Continuais sendo homem de pouca fé, Pedro!
– Porquê, Senhor, porque vós levastes-nos?
Ele calou-Se. Senti-Lhe a respiração vibrante, a calma que se desencalmava, o bafo cheio de vida saindo pelo aparelho. Não me arrependi, qu´Ele me respondesse, se tivesse coragem. Precisava! Suportaria qualquer castigo: ceguidão, que me tirasse a voz, que recaísse sobre mim a sua ira iluminada.
– A morte, Senhor, de maneira nenhuma a morte é a salvação.
Ele não me respondeu. Pensei até que a linha tivesse caído, pois nenhuma operadora é perfeita. Mas o seu respirar mantivera-se, denso, helénico, cheio de vontade de ouvir as minhas blasfémias. Lembrei-me então de qu´Ele odiava a dúvida, que Lhe fazia sofrer; lembrei-me de Jó, das sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois e quinhentas jumentas. Não, não Senhor, eu não tolero Jó, eu conhecia os meus amigos e tinha-lhes um enorme apreço. Poderiam eles terem sido que nem Sísifo, capazes de enganar a morte!?
– Não vos atrevais, Pedro, filho de Kumbukilah… Eles foram-se porque assim estava escrito! Esse é o valor do Destino! A morte é inata, é um fenómeno único como o nascimento. Assim como não se sabe a personalidade da pessoa que nasce, assim a morte também é, uma não-vontade de continuar a vida.
– Mas, Senhor, é tão triste deixar de existir! É muito triste não estar! Como pudestes fazer o ser humano com tais defeitos? É essa a dignidade do ser humano, deixar de existir, de estar? Partir antes dos pais e das mães, deixar interpenetrações que não serão mais alimentadas?
– Toda a vida tem um ciclo!
– Recuso-me, Senhor! Recuso-me de calçar essa Luva de Maya. Os nomes deles, Senhor, não mais sairão da minha boca; os seus nomes, reclusados na minha mente, fermentarão como vida, como inteligência, como espírito; e beberei deles como álcool proibido para a inebriação da minha experiência humana.
– Considerai vós a morte, um fim?
– O que mais poderia ser, Senhor? O que mais poderia ser?
Ouvi um ruído e a linha caiu. As minhas acelerações cardíacas descompassaram-se. Sublime, só sublime… As mãos tremiam-me, gemiam qualquer coisa que não era redenção. Eu acabara de pecar, pecado desmedido, daqueles irremediáveis. Mas estava contente, até então eu somente ouvira comentários sobre Deus, hoje falara com ele, ouvira o seu verbo através do meu “Nokia”; e ainda assim continuava pouco impressionado. Impressionava-me mais o descaminho daqueles dois corpos, duas almas que não voltarei a sentir, a ouvir; que não tiveram tempo, tempo suficiente para se viciarem na vida.
Continuo sem muitas respostas. Enfastio-me de pesares. Descarrego através dos olhos embaçados a esperança culposa que sempre suportei. Boa travessia – apetece-me dizer –, mas não existiria objectivação nenhuma no meu adeus.
R.I.P. C.N. & A.R. (23-11-2012 23:37:15)