Ivan, o hippie
 
Quem nasceu antes da primeira metade do século vinte foi um privilegiado, conseguiu conviver com o final do romantismo, com o advento do modernismo, com a era do rádio além de poder se vangloriar de poder ter sido um vanguardista durante o movimento pop que se iniciava, juntamente com a televisão.

A segunda guerra mundial havia terminado após o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, com a bomba atômica, em agosto de 1945, com mais de duzentos mil mortos. Todos se posicionavam, uns contra, outros a favor da demonstração de força dos americanos, mas certamente a maioria estava feliz com o fim da guerra. era um época em que se aplaudiam os heróis, porque eles existiam e porque eles também eram forjados pela propaganda. Hoje os heróis são anônimos, são os que conseguem sobreviver...
 
No Brasil, era a época dos cabeludos, imitadores de Woodstock e do movimento dos hippies, que cantavam músicas de Roberto Carlos e Rita Lee, enquanto lá fora imperavam os Beatles e os Rolling Stones.
Não existia o terrorismo, essa praga que amedrontou o mundo e que fez com que todos passassem a ser controlados e as fronteiras das nações  se transformassem em cercas inexpugnáveis dividindo os povos... Era uma época em que tudo era muito mais simples e natural.


Foi nesse cenário que conheci o Ivanildo, um rapaz de quinze anos, como eu, e que era um típico representante dos mutantes.
Com o seu corpanzil e um metro e oitenta e oito centímetros de altura, cara de bebezão, sempre com um sorriso nos lábios, tinha os cabelos louros, na altura dos ombros. Embalava-se com as músicas dos Beatles, sempre dançando, cantando e gesticulando, requebrando-se e gingando até quase o chão. Era um vanguardista mas com uma ingenuidade infantil.

Não gostava do seu nome, preferia ser chamado de Ivan e dizia que uma cigana havia lhe dito que em sua última encarnação fora russo e que seu nome era Ivanovich.
O seu pai era um português, dono de uma rede de padarias e queria fazer do filho um doutor e dizia que tudo aquilo era modismo, e fazia todas as vontades do Ivan, que era seu filho único. A mãe, uma espanhola, gostava de cantar e dançar ao ritmo das castanholas e quando o pai fazia uma vontade ao Ivan, ela inventava algo para lhe fazer uma vontade ainda maior.

 
Quando Ivan chegou aos dezesseis anos, ganhou uma lambreta vermelha e toda noite se encontrava com a sua turma, em frente ao Cinema Santa Alice, no Engenho Novo.
Na escola, Ivan já não era o mesmo, suas notas despencaram,um professor dizia que ele estava crescendo como rabo de cavalo... Aparecia de manhã com o olhar de cansado, estava sempre sonolento nas aulas, no banheiro da escola, quando ele saía, ficava o cheiro da maconha. Passou a ser chamado de Ivan, o maconheiro. No final do ano, sem condições de se recuperar, ele foi reprovado.
 
Perto da época do Natal, dona Dolores, sua mãe, me telefonou perguntando se eu sabia do paradeiro do Ivan, que segundo ela, deixara uma carta, dizendo que se juntaria a um grupo hippie e ia correr mundo.

O tempo passou e ninguém sabia nada sobre o Ivan, ele havia trancado matrícula na escola. Quando já estava para completar dois anos do seu sumiço, num belo dia, apareceu novamente o Ivan, magérrimo, cabelos maiores ainda que antes, maltratado como se fosse um mendigo, mas com aquele belo sorriso infantil que nos conquistava.
 
- Fui conhecer o mundo... e ele me ensinou muito! Saímos daqui e fomos pra São Paulo, de lá fomos pra Campo Grande, no Mato Grosso, onde pegamos o trem pantaneiro que nos levou para a Bolívia. Em La Paz fomos convidados a partir e seguimos para Machu Pichu,  no Peru, depois Venezuela e Colômbia. Então, ganhamos as Antilhas e ficamos presos seis meses na Nicarágua. Na prisão de Manágua comíamos somente uma broa feita de milho vermelho,  acompanhado de água. Num dia de feriado nos deram uma comida especial com carne não sei de que, tivemos diarreia durante três dias...
Depois de muito apelar para a embaixada brasileira através de uma mulher bondosa que nos visitava, eles nos libertaram e seguimos para o México. De lá fomos para os Estados Unidos onde pegamos carona num trem cargueiro que nos deixou no norte do Canadá. Queríamos conhecer um paraíso ecológico, numa reserva ambiental, mas chegamos na época errada, era inverno, com vinte e um graus negativos. Depois de andar na neve durante três horas, tendo a impressão de ter andado trezentos quilômetros, encontramos uma cabana de caçadores. Foi lá que nos acomodamos.
 
Cansados e com um frio de doer a alma, fomos para a parte mais interior da cabana, que não tinha porta, tinha um vão aberto. No canto em que nos instalamos, estávamos  abrigados do vento e foi lá que dormimos. Éramos três, ficamos colados uns nos outros para nos aquecermos do frio intenso e como estávamos cansados pela jornada, imediatamente dormimos.
 Quando acordei, olhei pelas frestas da madeira e vi as primeiras luzes da madrugada, senti vontade de urinar e me levantei.
Um ressonar forte chamou minha atenção, pensei ser de um dos meus companheiros, mas quando minha vista se acostumou melhor é que reparei, era um urso pardo que nos fazia companhia... Retornei com cuidado, sem fazer barulho, minhas pernas tremiam, era de medo, acordei os outros dois e cochichei: um urso!
 
Pé ante pé, conseguimos passar sem tocar nele, ainda bem que seu sono era pesado, saímos na friagem e nem sei como conseguimos voltar.
Mas aprendi muito com o mundo...
 
Ivan acabou fazendo a vontade do seu pai e hoje é engenheiro mecânico e diz que da maconha quer ficar longe... Será?