O Executor

O encontro, primeira vez, não passou de um cruzar por ruas que, aparentemente, ambos frequentavam, sem conhecimento um do outro. Nada, neste primeiro encontro, deixou transparecer a tarefa de cão farejador e presa astuta a qual os dois estavam empenhados. (Bem claro fique que nenhum sabia, ainda, que iriam viver e realizar trama tão bem urdida.)

O algoz (tinha esse nome estabelecido há muito tempo) viera para este lado da cidade movido por diversos interesses: cultivar a terra, arrumar um emprego, cuidar da saúde, ou simplesmente viver...

A presa (também esta denominação era dada há muito tempo) vivia há anos neste lado da cidade, era conhecida (bem mais que o algoz), tinha comércio, vendia de tudo um pouco para a população. O rumo de sua vida era conhecido: pai, mãe, irmãos, parentes, todos na mesma cidade, cumpria um destino pré-estabelecido. Nunca um sobressalto maior em sua vida (que se podia pensar inodora, incolor, insípida), nunca um arroubo, uma aventura, um desassossego, um desvio no caminho, uma corcova de camelo, uma dor maior que a de dente, logo aliviada quando dentista arranca. Se lhe perguntassem o que era rotina, não conhecia a palavra, mas tinha-a de cor: nascer, crescer, murchar, morrer, cumpridora das linhas traçadas na mão, sem questionar.

Cenário armado, sol nascendo leste e se pondo oeste, desde sempre, algoz e presa viviam sob o mesmo céu, sob o mesmo mando dos conceitos já eternos.

Todo dia saíam no mesmo horário cada um cumpridor do seu dever, sem atinar com a missão de presa e predador a que estavam destinados. Nenhum sinal perceptível, nem gesto mais denunciador se via, quando se encontravam, um no meio do caminho do outro.

Um dia a presa notou o algoz: um arrepio fez com que mudasse de calçada, cruzasse os dedos em figa, fizesse sinal da cruz (disfarçadamente). Quem era esse que causou o alvoroço no dia tão bem estabelecido, perguntou a presa a si mesma e, depois, a alguns amigos. Pouco soube do outro. Resolveu esquecer o arrepio, o desassossego, e cumprir a cota diária de vida.

O encontro também foi percebido pelo algoz, algo como um inseto que incomoda com seu zumbido, um vislumbre, um sobrepor de imagens. Quem seria esse, perguntou, sem resposta.

Nos dias seguintes, um ritual se estabeleceu, sem que ambos percebessem: mesmo horário, mesmo arrepio, mesmo inseto, e o que antes era desconhecido, agora era esperado.

O tempo passava as horas que se transformavam em dias que se transformavam em meses que se transformavam em anos que se transformavam... Nem presa nem algoz nem sol nem lua rompiam o acordo tácito de ir vivendo, sob o mesmo céu, sob o mesmo destino inexorável que, mesmo sendo desconhecido, acaba por unir linhas paralelas. Mais velhos, presa e algoz cumpriam o ritual sem saber; ousavam, agora, um sutil cumprimento, um olhar e um aceno, mera convenção perante o povo que não entendia o porquê do desgostar dos dois, já que não se conheciam.

No dia do casamento da presa, no meio da alegria e dos convidados, a presença do algoz: atalaia, do outro lado da rua, observava (fingindo ler jornais na banca) o movimento e o ritual. Foi assim que passou a se aproximar mais da presa, um dia na feira, outro no banco, outro, ainda, na hora da fé... Nem disfarçava mais, aparecia agora por inteiro e o arrepio, o zumbido de inseto, ficavam mais fortes.

Os filhos da presa nasceram e para cada parto o algoz se postava do outro lado da rua, como que esperando... Filhos crescidos, tinham no algoz um quase parente, velando nas esquinas quando saíam, de tocaia próximo a casa quando voltavam. A presa, acostumada à presença anônima, mas constante, se agitava já sem muito sobressalto, era mais um hábito para cumprir o ritual.

Quase sem avisar, a idade avançada chegara; presa e algoz exibiam marcas profundas da vida que caminhava para o que ambos sabiam, sem nunca terem se falado. O algoz já vivia na casa da presa, um parente distante que se tornara próximo demais, explicitamente andando pela casa, descaradamente ocupando espaço e tempo. Às vezes trocavam uma palavra ou outra: “Está chegando a hora?”, queria saber a presa. Pouco o algoz adiantava: “Também gostaria de saber”, respondia.

Um dia, quando estavam à mesa lanchando, a presa sentiu a mão do algoz sobre a sua e soube, por breve instante, antes de tombar para o lado, que era o Anjo da Morte.

Geni Alves dos Santos

Geni Alves dos Santos
Enviado por Geni Alves dos Santos em 02/01/2013
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