Mil Faces - Capítulo 9 e 10

Contrariando a declaração do texto anterior vou soltar dois capítulos que escrevi! Espero que curtam.

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CAPÍTULO 9

Essa talvez não fosse a ideia de uma pessoa normal para uma madrugada de sábado, mas ele precisava pensar. Ou tudo que ele precisava era não pensar em nada.

O copo estava pela metade, a garrafa estava ao seu lado, também pela metade. Ele se perguntava que horas eram. Virou a cabeça bruscamente à procura de um relógio e sentiu pela primeira vez com intensidade o álcool no corpo. A visão ficara embaçada por alguns instantes e a cabeça pesou mais que o normal. Que horas eram? Três da manhã?

O relógio apontava meia-noite. Nem tudo na vida é justo.

Soltou um barulho estridente, aquilo que chamava de riso. Poucas coisas o faziam sorrir, vodca era uma delas. Olhou para o copo mais uma vez e para a mão que segurava-o. Pensou nos dias que se passaram, pensou em como entrara em um beco sem saída e principalmente pensara nela. Os olhos desnorteados foram mais lentos que o pensamento e só depois enxergou-a ali ao seu lado com a cabeça sobre o balcão e os cabelos vermelhos escondendo todas as feições. O copo ao lado dela estava cheio. Bebeu-o de uma só vez.

Um brinde aos mortos. Tantos mortos.

Brindar aos mortos ou aos vivos é como ter uma arma apontada na cabeça ou apontar uma. Não há diferenças, de qualquer forma alguém irá morrer.

Ele aprendera aquilo da pior forma possível, mas de algum jeito ainda estava vivo e aquilo sim merecia um brinde. Talvez houvesse algum propósito. Meu propósito é esse copo. Pensou encarando o líquido e bebendo-o como se fosse cada gota de sangue que ele já havia derramado, não só as suas. A garganta ardia como uma ferida exposta, talvez ele precisasse dormir. A cabeça pesou novamente e tudo que ele ouviu antes de apagar foi um barulho oco de algo batendo contra madeira.

A cabeça doía e os tapas que estava recebendo na nuca não melhoram em nada. Grunhiu uma reclamação e os tapas cessaram. Os olhos pesados se abriram devagar atingidos pela claridade angustiante, tentou levantar, mas a gravidade parecia estar determinada naquele dia e ele caiu no chão como um saco de batatas. Mãos o ajudaram a levantar.

Eram as mãos dela.

— Você se machucou.

Ela disse sentando-o e amarrando o cabelo no topo da cabeça, para só então levar as mãos ao ferimento. Quando ela tocou no lugar ferido ele percebeu o que era o barulho que ouviu antes de apagar. Ela trouxe uma blusa qualquer e a molhou com o restante do líquido que estava na garrafa. O ferimento estava limpo e ardia como nunca.

— Hoje nós vamos ver um amigo. Você deveria parecer um pouco mais... — A palavra ficou no ar sem que a frase fosse completada. Às vezes ela fazia isso.

O lugar onde estavam não era como um lugar onde você deseje passar as férias, na verdade uma pessoa normal nunca iria querer ir ali. Um casebre largado no meio do nada com umas cadeiras largadas e um balcão caindo aos pedaços, talvez houvesse sido um bar há algum tempo atrás. O lugar fedia à dejetos humanos e a animais mortos e se procurassem bem era bem provável que encontrassem um dos dois espalhados no chão do local.

Ela o arrastou para fora da casa e caminharam por alguns metros. — Ouvi um barulho de água corrente quando acordei de madrugada. — A mata atrás do casebre se estendia cerca de uns cem metros até que a água fosse realmente vista. A água era limpa e se concentrava em uma área bem grande para depois correr por um canal estreito e natural. Era algo tão bom de se ver quanto um raio de esperança entrando num quarto obscurecido pelo medo.

Sentou-se numa pedra próxima à beira do que parecia ser um riacho, abaixou a cabeça segurando-a com as duas mãos enquanto sentia os efeitos da ressaca. Pareceu que durou uma eternidade, mas o tempo costumava pregar peças nele. Quando levantou a cabeça procurou pela ruiva, mas tudo que encontrou foram suas roupas espalhadas ali perto. Olhou para a água quando a viu emergindo esbanjando um sorriso como o de quem não tem alguém caçando a sua cabeça, ele queria saber como ela fazia para esquecer, ou pelo menos como fingia. Os seios estavam à mostra e ele não conseguia desviar os olhos. Ela parecia não se importar.

— Você não vai entrar?!

Ela gritou tampando os seios com um braço e agitando o outro como para que chamá-lo.

Tirou a camisa e depois a calça e saltou para dentro d’água. Abriu os olhos e viu as bolhas de ar flutuando para a superfície enquanto também emergia.

Passou as mãos pela cabeça raspada, não tão raspada quanto antes. A sensação era boa, mas algo o mantinha tenso, talvez fosse por pensar que havia alguém apenas esperando a hora certa para matá-lo.

— Você nunca sorri?

Ela perguntou se distanciando um pouco a ponto da água cobrir os seus seios.

— Às vezes.

— Você deve ter um sorriso bonito.

— Por que diz isso?

— Minha mãe sempre me disse que as melhores coisas da vida não podem ser dadas, sabe... de mão-beijada.

Mãe.

— Ou talvez eu só não saiba mais sorrir.

Não pareceram ter sido as palavras certas a ser ditas. Toda a expressão terna que a garota portava na face sumiu rapidamente.

— É bom não demorarmos muito. Vamos ter que voltar para Teresina.

— As coisas não funcionam assim. Tudo que me disse é que vamos ver seu amigo, mas tudo que sei sobre seus amigos é que eles não são confiáveis.

Ela sorriu de canto.

— Esse é confiável, querido.

Parecia que os dois estavam jogando o mesmo jogo, um contra o outro. As coisas não deveriam ser assim.

CAPÍTULO 10

Quando voltaram para o casebre havia um carro parado em frente à porta. Horácio tinha uma ideia sobre o dono do carro, mas mesmo assim abriu a porta devagar olhando para os restos do balcão de madeira. Sentado sobre o banco estava o homem de cabelos brancos.

— Já estava começando a pensar onde diabos vocês estavam.

Ele sorriu daquela forma que parecia ser doentia e ao mesmo tempo confiante, como o sorriso de um homem que sabe o que faz.

— Estávamos apenas tomando um banho. - Horácio olhou para o copo na mão do velho, estava pela metade e o litro de vodca estava vazio. Quanto tempo eles haviam ficado no riacho? Olhou por cima do ombro e lá estava a ruiva com um olhar estranho, como se estivesse com medo. Esse era um sentimento difícil para Horácio, às vezes os fantasmas do passado o atormentavam, mas não o amedrontavam.

— Ótimo lugar esse que eu te arranjei ein, garoto? Cheiroso, confortável e ainda deixei você sozinho com essa gostosa ai. - Disse ele apontando o dedo indicador enquanto os outros ainda seguravam o copo. — Mas a questão é a seguinte. Você sabe que o que eu faço não é de graça.

— Doze horas o dinheiro vai estar na sua conta. Vou querer o carro que está lá fora também. Pago o preço que for.

— Você não é um bom negociador, rapaz. Mas quem sou eu pra discutir?

Pegou mais um de seus cartões e atrás escreveu as informações sobre a conta num titular que não se chamava Manuel e nem parecia existir. Mas quem era ele para julgar alguém?

— Vamos, vou te dar uma carona.

O velho sorriu, se levantou e jogou as chaves do carro para Horácio que agarrou-as no ar. Passou por ele e no alcance de Marina pegou um punhado de suas mechas vermelhas e cheirou-as, só para depois soltar uma risada com o gesto de repulsa que ela demonstrou ao toque do velho. Quando ele saiu pela porta ela correu e abraçou Horácio como se tivesse acabado de ter sofrido uma tentativa de estupro, o pegou de surpresa e por alguns momentos não soube o que fazer com as mãos até que afagou os cabelos dela levemente pouco antes dela se afastar dele abruptamente e dizer com uma voz tão mansa que ele não acreditaria que fosse capaz sair de seus lábios.

— Você sabe que esse homem é perigoso. Não como do jeito que você é, sabe? De um jeito diferente. Não deixe ele chegar perto de mim de novo.

— Vai tudo ficar bem, você vai ver.

— Você promete?

— Não.

Ele queria ter dito sim, mas não conseguiu. Esperava que ela fosse odiá-lo por isso, porém ela abraçou-o mais forte e algo dentro dele acreditou que ela o compreendia, pelo menos isso ela poderia compreender. Uma porta aberta.

— Vamos. — Ela disse voltando a si e procurando todas as coisas que ela tinha ali que se resumiam a algumas roupas. Ele havia convencido-a a jogar o celular fora e trocar por um dos dele. As coisas dos dois estavam ajeitadas antes que se passassem cinco minutos e lá fora o velho estava a esperar com o rosto impaciente. Não lhe deram nenhuma palavra. Horácio dirigiria o Chev que parecia estar em ótimas condições enquanto Marina ia ao seu lado e Manuel ia atrás.

O velho guiava-o no caminho até Teresina, eles estavam na cidade vizinha, separada pelo rio Parnaíba que não pertencia ao Piauí, mas sim ao Maranhão o que parecia dificultar pelo menos um pouco a chance de serem pegos. Cerca de trinta minutos de viajem e eles estavam deixando o Maranhão. Durante todo o trajeto o homem ficara com os óculos escuros fazendo perguntas sobre o que havia acontecido na pensão, mas de uma forma discreta. Talvez por não querer assustar Marina ou apenas por curiosidade, mas o instinto de Horácio mandava mentir ao homem e a simpatia e a semelhança que ele tinha com o avô o mandava despejar toda a verdade, portanto tudo que Manuel tinha eram meias-verdades.

Ao atravessar a ponte Manuel saltou para o carro com o celular em mãos e assim que Horácio acelerou ele gritou:

— Meio-Dia, garoto! Meio-dia!

Pelo espelho retrovisor Horácio viu o homem se desfazer no horizonte às suas costas.

— E então? Pra onde vamos agora?

Ele sorriu para Marina desviando o olhar da avenida por um instante.

— Siga direto.

Por cinco minutos eles continuaram na mesma avenida até um ponto que haviam poucos carros, provavelmente por que fossem dez da manhã e as pessoas de bem da cidade estivessem todas trabalhando. Alguns metros à frente e o sinal piscava amarelo, uma vez, duas vezes. Não ia dar tempo. Parou no sinal vermelho. Do seu lado esquerdo o cruzamento, do direito nada mais que a margem do rio que haviam atravessado há pouco. Distraído olhando pro sinal não notou o carro negro que vinha atrás dele, mais rápido que o permitido e ainda mais rápido que o normal. Tentou pisar no acelerador, mas não havia tempo.

Gama Kaio
Enviado por Gama Kaio em 19/12/2012
Código do texto: T4044166
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