Itztlan
(do universo de Aera, o mundo dos Deuses Ventos)
O sol ainda não havia se posto, mas as sombras da cordilheira já há muito cobriam as casas de pedra, e espalhavam-se na face calma do grande lago. Era início do inverno; o vento frio das montanhas agitava as árvores que insistiam em nascer naquelas alturas, e levantava a poeira das ruas de terra da grande cidade. Naquele dia, os habitantes se recolheriam cedo, os artesãos fechariam suas tendas e os pastores de cabras retornariam ainda com o dia claro. Seria a primeira noite de lua nova, e era inverno. Era a noite dos itzcuintlipotzohtin.
Yaotl sentou-se, cansado, em frente à gigantesca pilha de lenha e folhas secas. Passara o dia todo ajudando os servos a levantarem a pira, tronco sobre tronco, e seus braços franzinos ardiam com o exercício. Tinha nome de guerreiro, como o pai, mas não se interessava pela guerra. Sua mente era curiosa como a de um esquilo e sua inteligência aguçada demais para o caminho das armas. Fora obrigado a ajudar os servos a erguer a pira aromática, a fim de exercitar os músculos, e agora era o responsável em acendê-la quando fosse a hora, como muitas outras espalhadas pelas colinas da cidade.
Tepeme era uma das três maiores cidades do Império Itztlan, situado na ilha de mesmo nome. As cidades do império espalhavam-se pela larga cordilheira da ilha, de montanhas de cumes nevados e florestas densas, até os vales do litoral. Era um dos povos mais prósperos do País do Sul, devido ao ouro das montanhas e do comércio com o continente, mas a vida nas cordilheiras tinha um preço. Sob as montanhas não havia apenas ouro.
Era a primeira lua nova do inverno, e os itzcuintlipotzohtin viriam.
Uma brisa soprou por entre os mantos de Yaotl. Ali, sobre o topo de uma das pirâmides de pedra da cidade, os ventos eram mais fortes. Arrependeu-se de não ter trazido um manto extra; abraçou-se com as mãos numa tentativa vã de proteção, mas ele sabia que não, não era o frio que o preocupava.
E o sol se pôs. Quando a primeira fada-vagalume piscou entre a copa das árvores das montanhas mais baixas, os tambores começaram. Espalhados em cada torre da cidade, os escravos bateram com violência, para que o som pudesse ser ouvido por toda a parte, e ecoasse nos vales além.
Um, dois, três.
Era o sinal. Ao terceiro toque, Yaotl ateou fogo à pira de lenha encharcada de óleo. Logo o crepitar de madeira acompanhava o rufar dos tambores, cujo som preenchia toda a cidade, deserta agora, e o fogo cresceu com força.
O cheiro era tão poderoso que fez Yaotl tossir e seus olhos arderem. Além da madeira, a fogueira trazia em seu âmago três sacos da sagrada resina copal, cuja fumaça aromática agora se erguia violenta contra o céu da noite.
Ele afastou-se um pouco mais, mas ainda não deveria abandonar a fogueira. Logo outra e mais outra acenderam nas colinas distantes, como faróis na noite das montanhas. E os tambores não paravam.
O incenso sagrado costumava atrair as pequenas fadas-vagalume, que brincam nas labaredas e desenham na fumaça, mas nenhuma veio para a pira de Yaotl, mantendo-se protegidas sob as sombras das árvores. As estrelas nasceram, mas nenhuma fada se aproximou.
Os tambores continuavam, a ritmos frenéticos agora, e assim continuariam, por toda a noite, até que as odiadas criaturas do inverno tivessem vindo, vindo e partido, sem ousar se aproximar da cidade.
O coração do garoto batia junto com os tambores. Crescera ouvindo as histórias do povo-fera que vivia sob a montanha, que devorava homens e atacava cidades. Desde pequeno aprendera a temer as noites de inverno. Temia as feras hueycamame, que engoliam rebanhos inteiros, e temia a medonha serpente Tlilticoatl, que devorava a pessoa e cuspia em seu espírito. Eram os itzcuintlipotzohtin, porém, o seu pesadelo mais recorrente. As feras das noites sem lua.
O vento soprou mais forte, os tambores continuaram sua cadência. As fadas-vagalume não deixavam o abrigo das árvores, e nada restava ao jovem senão esperar. O pai fora incisivo em sua decisão de manda-lo às fogueiras; queria que o filho desenvolvesse não só o físico do guerreiro, mas a coragem de um. Passar a noite das feras como vigia moldar-lhe-ia o espírito, disse ele, mas o suor do garoto só provava o quanto o pai podia estar enganado. Yaotl rezava à Brisa da Graça para que a noite passasse logo, mas o tempo se arrastava, rebelde.
Um uivo vindo do norte eriçou seu cabelo e arregalou seus olhos.
E lá, sobre as colinas descampadas, ele viu.
A luz das estrelas era fraca, mas mesmo assim era possível perceber o gigantesco vulto do animal, recortado contra o azul da noite. Os olhos brilhavam como chamas vermelhas, mesmo àquela distância, e por um segundo o coração do garoto parou.
Mas a criatura não se moveu. O aroma do copal, que impregnava o ar da cidade graças às fogueiras dos servos, graças aos Deuses, iria mantê-lo afastado. O cheiro era sagrado demais para as feras dos subterrâneos, e o ruído dos tambores ensurdeciam sua poderosa audição. Yaotl estava apavorado, mas enquanto durassem as fogueiras e continuassem os tambores, Tepeme estaria a salvo.
Logo outro surgiu ao seu lado, e mais outro, e enfim o vulto de uma matilha inteira se ergueu no descampado.
O garoto engoliu em seco. Os olhos começavam a arder por causa da fumaça, mas nem que o próprio imperador o mandasse ele se afastaria da proteção das chamas. Outra lufada de vento, porém, agitou seus mantos, e uma gota de água tocou-lhe o rosto.
Chuva.
Era esse o motivo porque as fadas-vagalume não saíam do abrigo das árvores, elas sentiram a tempestade! E foi de súbito que uma forte ventania se ergueu, vinda do norte, vergando árvores, erguendo poeira. Yaotl protegeu os olhos, e viu, desesperado, quando uma gigantesca nuvem cobriu as estrelas, derramando os primeiros pingos grossos sobre as fogueiras protetoras. Logo, o barulho de chuva forte encheu o vale.
Não demorou muito e Yaotl estava ensopado. Lutando desesperado contra a torrente, pegava os troncos secos do abrigo próximo e os arremessava ao fogo, alimentando-o para que vencesse a chuva. A tempestade, porém, era tão intensa que competia até com o som dos tambores. Não demorou muito e o silvo da água era tudo o que podia ouvir, mal lhe permitindo que enxergasse metros à frente. Logo os servos surgiram sobre a pirâmide para ajudá-lo, carregando lenha embebida em óleo para alimentar o fogo, mas a água era tanta que rapidamente encharcou a pira, alagou o chão e fez morrer a última centelha.
Desesperado, Yaotl viu, uma a uma, as fogueiras de Tepeme se apagarem. E como numa brincadeira terrível, a chuva enfraqueceu em seguida.
Os servos olhavam-se, perdidos sobre o que fazer. Seria impossível reviver o fogo e a fumaça protetora. Arfando com o esforço, sentindo-se derrotado, Yaotl demorou a perceber o silêncio.
Os tambores haviam parado.
Voltando-se para o descampado, não viu mais os vultos negros sobre a colina. Ouviu um uivo alto, e então o alarme da cidade tocou.
Arregalou os olhos, desesperado, e correu.
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O garoto escorregava nos degraus molhados e quase despencava da escadaria da pirâmide, seguido atrás pelos servos. O peito ardia com o esforço que fizera com a lenha, a respiração queimava porque ficara muito perto da fumaça, mas nada o faria parar. Alcançou o último degrau e ganhou a rua escura, de tochas também apagadas. Os servos tomaram cada um o caminho da casa de seu senhor, e logo o garoto corria sozinho.
O abrigo ficava na parte nordeste da cidade, justamente entre a pirâmide onde estava e a colina onde vira os itzcuintlipotzohtin. Era para lá que deveria ir, em caso de problemas, e os Deuses sabem que ele jamais pensou que teria de ir lá. Errou o caminho meia dúzia de vezes, escorregando na lama da rua, tropeçando nos obstáculos mais idiotas. Cada sombra o apavorava, cada nova esquina o enchia de angústia. Ele podia ouvir o barulho dos guerreiros se organizando, mais além, mas, que a Brisa da Graça os protegesse, eles não seriam páreo para as criaturas. Somente os xamãs de Itztlan poderiam combatê-los, eles sim protegeriam a cidade, mas, eram tão poucos!
Esgueirou-se pela última esquina, e, encontrando um beco, percorreu-o até o fim. Viu-se no início de um pequeno monte que reconheceu como próximo ao abrigo, e iniciou a subida. Porém, ao atingir o vale entre duas colinas, sentiu um aperto no peito, como se a própria morte estivesse do outro lado.
Talvez estivesse.
Desesperado, no mais puro instinto, jogou-se entre os arbustos mais próximos, aterrissando sobre espinhos e lama. Aguardou. Tentou a custo normalizar a respiração e impedir o corpo de tremer, seja por frio ou por medo.
E sobre o topo da colina, ergueu-se um itzcuintlipotzohtli.
Era a primeira vez que via um. A cabeça de cachorro era do tamanho de um homem, com olhos arregalados, vermelhos como o fogo das fogueiras. O pelo era escuro como obsidiana e pontiagudo como agulhas de costura. Lembrava o cão de Yaotl, porém gigantesco, com garras de águias no lugar de patas e uma enorme corcunda deformada às costas, que o deixava do tamanho de uma casa. Cravada na corcunda monstruosa, pontas de flecha e lanças partidas se projetavam para frente, como um desafio ao próximo que tentasse.
Farejou o ar. Talvez tivesse sentido o cheiro do garoto, mas a chuva varrera os aromas. Garra ante garra, o cachorro-demônio avançou um pouco mais colina abaixo, aproximando-se de onde Yaotl estava.
Se não fizesse alguma coisa, seria descoberto. Tremendo, o garoto procurou, devagar, por uma pedra na lama, uma que pudesse fazer barulho mas que coubesse em sua mão. Achou uma, apertou-a e fez força para erguer o braço sem fazer ruído. Usando todo o seu desespero, tentou arremessa-la nas moitas do outro lado.
Deu certo.
O barulho fez o itzcuintlipotzohtli girar sobre si mesmo, desfazer-se em sombras e espinho, como só os demônios poderiam fazer, e a massa de escuridão disforme avançar outra direção. Sem pensar duas vezes, Yaotl ergueu-se e correu, correu como nunca antes correu na vida, usando todas as forças para contornar a colina por entre as árvores. Nem bem deu três passos e pôde ouvir o som da fera se desmanchando e vindo atrás de si. Os arbustos atrapalhavam a corrida, mas atrapalhariam mais o monstro, e por isso o garoto conseguiu ganhar distância, atravessando para o descampando e descendo o monte. Correndo na lama, Yaotl finalmente pôde ver à frente a grade do abrigo, escondida pelas folhagens. Gritou por socorro, gritou para abrirem, mas escorregou numa poça e seu rosto veio ao chão.
Voltou-se desesperado e viu, no topo da colina atrás de si, o amontoado de trevas pontiagudas se erguer e materializar o cachorro-demônio, em posição de ataque, os olhos fumegando, os dentes à mostra.
Um barulho de ferro atrás de si, e então o cheiro de copal.
_ Garoto, não se mexa! – ergueu a voz austera de um homem. Tinha os cabelos negros e olhar severo, vestido em mantos e talas de metal, com o rosto pintado com tinta escura. Nas trevas da noite, parecia sangue. Erguia na mão direita um incensório, de onde vinha o abençoado aroma, e na mão esquerda abraçava uma placa de cerâmica. Na cabeça, um grande cocar verde e vermelho, de penas de quetzal.
Um xamã.
_ Afaste-se, besta da noite! Filha da montanha, criatura das sombras!
A fera rosnava e babava, mas não ousava avançar. Sem alterar a feição, o mago dirigiu-se para Yaotl.
_ Garoto, venha para trás de mim, devagar.
Ele obedeceu, tremendo, e se arrastou até atrás do xamã. A fera tremeu e se contorceu, seu corpo oscilou entre o imaterial e o físico, mas ver a presa ir embora foi demais para a criatura. Avançou.
O mago sorriu.
Arremessando o incensório de lado, ele descobriu a mão, que possuía pintada uma runa de poder, e tocou a lama do chão.
A água ondulou e tremeu por toda a colina, e quando a fera tocou as garras no solo, a própria lama dançou e se ergueu no ar, fazendo-a tropeçar miseravelmente e vir ao chão com impacto. Súbito, o mago ergueu a placa de cerâmica à frente da cabeça. Entalhada em sua face, inúmeros glifos em alto-relevo, sobre os quais figurava, majestosa, uma grande runa de poder.
_ Rompendo o selo que tranca o portão, eu convoco, pela ponte entre os mundos e pelo arco de prata, o primeiro de todos. Yahui!
Dizendo isso, o mago apertou e partiu a placa em duas. O som ecoou como que ampliado, e acompanhando o gesto, a runa brilhou em pedaços fosforescentes, como um enxame de fadas-vagalume, e então o ar à frente do xamã também trincou, trincou e abriu, e da fresta entre os mundos surgiu uma garra monstruosa, e logo outra, e então, da ferida na realidade surgiu um ser majestoso, tão grande quanto o itzcuintlipotzohtli. A luz da runa partida mostrava o novo ser: cabeça de serpente e garras de lagarto, e uma carapaça massiva às costas, como as da tartaruga. Quando a criatura deixou completamente a fenda, a luz brilhou forte e se extinguiu, mas a escuridão não veio por completo. Pois a carapaça mágica emitia, ela mesma, uma suave luz azul, que iluminava toda a clareira onde estavam, iluminava os mantos do xamã e o rosto em êxtase de Yaotl.
Ele estava maravilhado, pois nunca antes presenciara uma invocação, o ritual supremo dos xamãs de Itztlan para proteger suas cidades. Esqueceu-se do medo e do cansaço, esqueceu-se que estava na margem do campo de batalha, da dor nos braços e da falta de ar. A criatura era magnífica, a luz que emitia trazia paz e ao mesmo tempo vigor, e as escamas de sua pele pareciam ter suportado tempos imemoriais.
_ Yahui, besta sagrada dos vales de Itztlan – recitou o xamã – proteja essa cidade que clama por proteção.
A gigantesca serpente-tartaruga moveu a cabeça devagar e se voltou para o cachorro-demônio. O itzcuintlipotzohtli, até então caído, ergueu-se num salto, rosnou com ódio e armou o ataque.
Saltou.
Garra de águia contra garra de dragão. Por mais criaturas e guerras que vieram depois, a luta daquela noite sem lua jamais deixou os sonhos e a lembrança de Yaotl. O cachorro-demônio era rápido e seus espinhos de sombra mortais, mas a pele áspera do yahui sequer sentia seus golpes. A serpente-tartaruga era poderosa, e foram apenas cinco, Yaotl contou, cinco golpes para vencer aquela batalha.
E isso tudo foi há uma década atrás.
Os sete hueycamame abriram suas gigantescas bocas e rugiram, ameaçando avançar. Yaotl, prostrado entre as feras e os muros da cidade, levantou os braços acima da cabeça, erguendo uma tábua de obsidiana gravada com numerosos glifos e uma runa de poder. Usava mantos azuis e placas de metal, trazia o rosto pintado com tinta escura, e à cabeça, um cocar. Como um xamã de Itztlan. E então, com uma voz que ecoou pelos vales de Tepeme, gritou:
_ Rompendo o selo que barra o caminho, eu convoco, por entre os pilares dos sonhos e pelo portão de espelho, a serpente emplumada. Quetzalcoatl!
Um grito de águia ergueu-se do céu quando Yaotl partiu a placa em duas, e nas alturas das nuvens surgiu a sombra da lendária serpente emplumada. Os olhos do xamã brilharam com a lembrança daquela noite sem lua. Os ventos da morte sopraram muito próximos daquela vez, mas se a chuva não tivesse apagado as fogueiras, Yaotl nunca teria presenciado o duelo, e assim não teria descoberto seu verdadeiro sonho, nem conhecido o xamã, agora seu mestre em magia. Os ventos da fortuna sopram sempre ao lado dos ventos da desgraça.
Outro grito de águia ecoou quando o quetzalcoatl desceu das nuvens. Yaotl sorriu.
Tepeme estaria a salvo mais uma vez.