A CAMA DO SOL
Era mês de julho. Chegava ao fim uma daquelas encantadoras tardes com as quais a natureza costuma brindar a todos os que buscam nossa indescritível ilha do Mosqueiro para descansar.
Estávamos na praia do Chapéu Virado. A maré, em vazante, ia aos poucos descobrindo o lençol de areia fina aumentando a área de lazer das crianças que brincavam à beira d’água.
O marulhar suave das pequenas ondas, que sem qualquer pressa se estendiam na praia, era muito relaxante. A leve brisa, que provocava as ondas, levantava também uma cortina de minúsculos grãos de areia fina que, ultrapassando os limites da praia, teciam desenhos multiformes no asfalto. A mesma brisa fazia esvoaçar os cabelos crianças que brincavam de construir castelos na areia.
Flávia, quase cinco anos, e Marcelo, pouco mais de dois, na inocência própria dessas idades, olhavam extasiados cada detalhe da paisagem. As ondas; as gaivotas que voavam em círculo a espera de uma oportunidade para pescar; as velas dos barcos distantes que, vistas contra o horizonte, davam a impressão de terem saído do seio do mar. Tudo transmitia uma imensa sensação de paz.
Deitado na areia e com a cabeça recostada no colo de minha mulher, ainda que mantivesse os olhos abertos, simplesmente deixava o meu espírito vazio e vadio vagar livremente naquela indescritível imensidão que costumeiramente traga os adultos quando em ócio.
Nada na mente, eu também me deixava envolver pela sensação de tranqüilidade e paz daquele fim de tarde. Aproximava-se o fim das nossas férias do meio do ano. Dentro de poucos dias deveríamos retornar para o nosso agitado cotidiano em Belém : acordar cedo, deixar meninos na escola, ir para o trabalho, dirigir no trânsito lento, etc...
- Olha maninho, a noite vem chegando. Já vai ficar escuro. O sol já vai embora, disse Flávia, e tocando de leve o meu braço para chamar minha atenção, perguntou:
- Papai, pra onde é que o sol vai quando a noite chega?
Surpreendeu-me aquela pergunta que, repentinamente, arrancou-me daquele estágio de pura contemplação. Mantive o silêncio durante os poucos segundos necessários para reorganizar minhas idéias. Depois, procurando ser o mais simples e o mais didático possível, expliquei que a terra era um planeta de forma arredondada que girava constantemente no espaço em torno do sol. Que com esse movimento alternava os seus pontos iluminados surgindo, assim, os dias e as noites. Que, na realidade, o sol jamais desaparecia do céu, mas permanecia na sua rota celeste, sua estrada sideral, iluminando outros pontos do globo, e que, a cada hora, como em um passe de mágica, havia sempre um nascer e um por de sol na terra.
E continuei falando, falando ininterruptamente, falando coisas muito além do limite de compreensão das crianças, como quase sempre fazemos nós, os pais, que aferimos a capacidade de assimilação das crianças pela nossa, e só muito mais tarde, quando nossos filhos se tornam adultos e têm as suas próprias crianças, é que vamos encontrar as palavras certas, as frases apropriadas para conversar com os pequeninos.
É, e sempre foi assim. Só mesmo quando o tempo nos transportar para o futuro, para a idade mágica onde nos transformaremos em avós, é que iremos conquistar a capacidade de compreender os nossos erros. Ai, quotidianamente, assistiremos em estado de quase desespero, com um sentimento de impotência e de culpa, os nossos filhos falarem aos seus, da mesma maneira que aprenderam conosco, perpetuando, dessa forma, o círculo vicioso da anticomunicação pais e filhos.
- Mas papai, disse minha filha, se a terra girasse a gente caía. A gente tinha que andar agarrado em alguma coisa como num carrossel...
Explicar que a imensidão da terra não nos deixava perceber esse movimento me pareceu muito mais complicado. Como iria explicar a força da gravidade a uma criança. Pensei um pouco antes de responder e resolvi mudar de assunto.
Comecei a falar da leveza do vôo das gaivotas brancas que bailavam no ar e descreviam círculos sobre as águas naquela tarde tranqüila. Falei do barulho gostoso das pequenas ondas das águas morenas do Mosqueiro que morriam na areia. Falei dos barcos, das redes, dos peixes, da pescaria, dos pescadores, mas Flávia, obstinada como toda criança, retomou o assunto sobre o sol.
- Papai! Como é o sol? É uma bola de fogo bem grande? Bem grande mesmo, maior do que uma casa? Qual é a cor do sol?
Estava procurando palavras, ordenando as idéias para formular uma resposta adequada, quando ela gritou:
- Olha maninho! Olha pai! Olha lá mãe! O sol está sumindo, já vai mergulhando n’água para dormir. Olha! Olha! Lindo!...
Movi a cabeça em direção ao poente. Longe, por sobre a linha do horizonte onde o céu parecia tocar nas águas da baía, havia os restos tímidos de uma luminosidade moribunda, que matizava o céu de cores diversas, com predominância de tons laranja, acentuando a beleza das nuvens que, em mil formas, emolduravam aquele quadro simplesmente bonito.
Flávia continuava a falar. Com o olhar fixo na paisagem que encantava as crianças e também nos deixava extasiados, sorvia em grandes tragos a poesia daquele fim de tarde quando, não sei porque, tive a nítida impressão de ter ouvido um sonoro “tchiiiiiiiii”, som de uma imensa brasa sendo apagada no seio das águas do mar. Era apenas o sol que cansado tinha ido para a cama.