Do Mar, Do Céu e Da Terra

As ondas quebravam em suas costas quando ele despertou, deitado de bruços na praia. O vento soprava um silencio profundo, profundo como o oceano que ele sabia estar atrás dele, murmurando memórias esquecidas.

Rastejou.

De olhos fechados, rastejou com os cotovelos e joelhos na areia molhada de água salgada, até que cansou-se.

Lentamente, virou-se de costas para o chão, ofegante, tendo a visão cegada pelo Sol.

O Sol nascera há pouco, mas já havia muita luz.

Fechou os olhos novamente.

Respirou fundo, ainda sem coragem de cavar na superfície da mente em busca de respostas sobre por que estava ali. Sentia-se vivo, de certa forma, como se recém-nascido, e não queria estragar o momento com lembranças provavelmente não tão alegres.

As ondas quebravam, o vento soprava jogando areia que se prendia em todo seu corpo molhado. Respirava fundo e relaxava, sem a menor ideia do que se passava em sua volta, além da certeza do mar, do céu e da terra.

Sua consciência movia-se lentamente, como numa corrente fraca e turva, ficando mais nítida e ganhando força muito lentamente.

Sentou-se, baixou a cabeça, ainda sem coragem de abrir os olhos e ver o que havia em volta. Nenhuma lembrança concreta. Sua mente era como uma bacia d'água. Sem cor, sem cheiro, mas ainda assim, havia algo ali.

Respirou fundo e pôs-se de pé. Esticou os braços, as pernas, ainda sem abrir os olhos. Em sua imaginação, não havia montes em sua volta, só uma extensão plana de terra quase infinita, o céu, de fato infinito, o mar, incalculável, e o vento preenchendo o vazio que havia entre estes, enquanto parecia ampliar o vazio que havia dentro dele.

Começou a caminhar, ainda de olhos fechados, na direção da terra. O terreno arenoso logo deu lugar a um tapete de vegetação rasteira. Uma inclinação no solo indicou que o relevo do lugar não era bem como ele imaginara.

Caminhou por décadas, anos, milênios, segundos. Embora soubesse que era o mesmo dia (pelo Sol). Era como se houvesse espaços de tempo dentro de outros espaços; era o mesmo dia, mas não era.

Suas pernas o levavam, ele as seguia.

Decidiu abrir os olhos, mas, desta vez, devagar. Quando finalmente abriu-os completamente, avistou amplas terras verdes, que subiam e desciam em vários montes. Ele estava em cima de um dos montes que formavam um círculo em torno de um lago que refletia como um perfeito espelho, apenas uma fina ondulação passava por sua superfície. Alguma coisa em seu coração o dizia para descer a colina e dar um olhada no lago. Antes, porém, avistou uma árvore. Uma grande árvore fazia-o companhia no topo da colina – que era uma clareira, como a cabeça raspada de um monge. A árvore estava carregada de frutos de aspecto desejável. Desejou apanhar um e comê-lo, tinha fome. Mas algo em sua mente lhe dizia que não deveria fazer isso, talvez a árvore, ou mesmo a terra, pertencesse a outra pessoa.

Desceu em direção ao lago para ver-se. Não lembrava-se de como era sua aparência.

Aproximou-se da beirada e contemplou a superfície do lago; era como contemplar o céu. Ajoelhou-se e curvou-se para ver seu rosto no reflexo.

Embaçado.

O lago refletia seu rosto completamente embaçado, não obstante as nuvens e o céu azul que o emolduravam eram perfeitamente nítidos.

Levantou-se e foi explorar as demais colinas.

Após anos, meses, dias, segundos, de exploração, descobriu que as colinas eram todas muito parecidas entre si. Todas tinham clareiras e uma árvore no meio, cada uma dava um tipo de fruto diferente. E havia muitos bosques repletos de árvores que não davam frutos mas poderiam fornecer lenha, e animais que poderiam servir de caça.

Maravilhou-se, cada fruto era melhor que o outro, e a terra era bela como um sonho.

Mas era uma ilha, uma ilha peculiar (como quase tudo ali), pois não era totalmente cercada de água. Havia o oceano na margem do qual ele acordara, ao Leste, e outro oceano no lado oposto, ao Oeste. Se ele caminhasse para o Norte ou para o Sul, porém, acabava invariavelmente voltando para o mesmo lugar: as colinas e o lago no centro.

Após fazer essas descobertas e meditar por um tempo, disse:

“Eis o meu lugar, não lembro de quem fui, nem de onde vim, também não sei onde estou, mas aqui irei morar. Maravilhoso ele é.”

Aprendeu a fazer ferramentas de madeira e construiu uma casa próximo ao lago.

Comia dos frutos das árvores, sempre saborosos, caçava, caminhava pela orla, e presenciava auroras e ocasos que eram verdadeiros espetáculos.

“Estou no paraíso! Não preciso de mais nada! Minha alma está feliz!” - Disse.

Os dias passaram-se sem que ele sentisse falta de companhia, pois não lembrava de ninguém, e ocupava-se o dia inteiro construindo ferramentas, caçando e pescando, maravilhando-se com cada descoberta que fazia do lugar – e da vida, também, uma vez que não lembrava de nada dela.

A cada dia ele dava uma olhada no lago, e, para sua surpresa, a cada dia seu reflexo ficava mais nítido.

Com o passar dos anos, meses, dias, segundos, ele descobriu suas feições, a cor de seus olhos, cabelos, e maravilhou-se grandemente com isso. Passou a inventar palavras, até arriscar algumas melodias, para exprimir a graciosa vida para qual despertara.

Porém, o mesmo não aconteceu com a sua memória. Continuava sem lembrar-se de nada antes do dia em que “surgira” nas margens do mar do leste.

Após muitos e muitos anos, dias, meses, os dias tornaram-se todos iguais. Espere, não, não tão iguais. Se fossem exatamente iguais, haveria contentamento e satisfação, coisas que migraram com o passar do tempo. As frutas eram as mesmas, os animais também. O Sol nascia num ponto e morria no outro, mas quando isso acontecia ele se perguntava o que havia além, o que havia após o mar do oeste. Que terras haveriam lá? Do leste ele viera, ao que tudo indicava, mas e no oeste?

- Construirei um barco e velejarei para longe, conquistarei mais uma terra e serei senhor de dois paraísos.

Por muito tempo ocupou-se na construção do barco, que levou realmente bastante tempo, pois ele nunca havia construído um (ou não lembrava), mas tempo era um artigo que ele tinha de sobra, então, por tentativa-e-erro, seu barco ficou pronto.

Muito tempo, também, passou-se após a construção do barco.

Tinha longos debates consigo mesmo a respeito daquela loucura que ele estava prestes a cometer.

- Não seja tolo, o que desejas? Teus sonhos irão acabar com tua vida e tudo que conquistastes! Tens tudo o que precisas bem aqui. O clima é agradável, tens uma bela casa, boas frutas, caça abundante, belas paisagens e praias. Por que te lançarias no mar? Onde tudo é incerto, onde a morte espreita!

- Eu preciso... - Respondia-se, mas os argumentos do seu primeiro Eu eram bastante convincentes, e o convenceram a ficar.

Os dias vinham e ele procurava ocupar-se ao máximo, ou entreter-se, para que aqueles pensamentos “insanos” não aparecessem. Entretanto, todo seu esforço só ia até o pôr-do-sol, que era quando ele não suportava mais segurar a porta, e deixava os ventos da mudança invadirem seu ser. O sol poente o chamava – o que havia lá? Outras terras, frutas, animais? Gente? Haveria gente como ele? Outros lagos? Outras cores, sabores?

Sua vida perdeu completamente o sentido. Tudo era uma igualdade sem graça, todos os dias. E mesmo ele tendo tudo em abundância, sentia-se triste todo o tempo em que não tinha sua mente ocupada em alguma atividade. Quando sua mente estava em repouso, porém, buscava – como a sede busca a água, como o recém-nascido busca o leite materno – a novidade, e a novidade estava lá no oeste, esperando por ele, esperando que ele tivesse coragem, e uma nova terra estava lá de braços abertos à sua espera.

- A morte! - gritou – a morte é o que está a minha espera! Criatura miserável que sou! Como posso desejar algo além? Para que serve sonhos? Não tenho tudo o que alguém precisa bem aqui? As frutas são doces, minha casa é bela, trabalho das minhas mãos, a caça é abundante, tenho um lago onde contemplo minha face e a vejo nutrida e jovem, sempre jovem! O que mais preciso? Deveria lançar-me nas águas, perigosas, sem saber se vou realmente chegar a algum lugar?

E assim passou-se anos, dias, horas, meses, segundos, e tudo, tudo era igual (e sem graça).

Tudo exceto seu reflexo. Começou a notar sinais de idade, trincheiras em sua face, neve nos cabelos; e os seus olhos já não tinham o mesmo brilho que chegava a competir com o reflexo das estrelas a noite, nos seus primeiros dias ali.

- Deus meu! Sempre fugi da morte, mantive-me aqui, seguro, sem almejar nada além, sem arriscar-me, mas vejo que a morte me alcançou ainda assim. Que farei? Meus dias têm sido tristes, mas mesmo assim os suportei, pra minha segurança, proteção... para minha vida! Por minha vida eu permaneci aqui, mesmo que os últimos anos, dias, horas, meses, segundos, tenham sido vazios como uma árvore oca...

- Que farei?! - Gritou, olhando para o lago.

Não houve resposta audível, mas em seu coração ele a ouviu. Sempre soubera na verdade, mas sempre deixou que sua mente o enganasse pelo desejo do conforto, o comodismo da segurança de sua ilha.

Só lhe restava uma coisa a fazer, antes que a morte o alcançasse de fato, e levasse um homem triste, seco de emoção.

Foi até o barco que construíra há muitos e muitos anos, dias, meses, horas e segundos, já todo empoeirado, e lançou-se com ele ao mar do oeste.

Deixou a casa, os montes, o lago, as frutas, as árvores, os animais, tudo para trás, não levou sequer água.

Mas quando a ilha tornou-se apenas um ponto no horizonte leste, atrás, já havia menos rugas em sua face, e havia algo que há muito não aparecia ali: um sorriso.

E quando as primeiras estrelas daquele dia surgiram sobre as insondáveis águas do mar, encontraram, num barco sobre as águas, duas estrelas mais brilhantes do que elas.