O menino do telhado de caixa de leite
E ele tocou a xícara de chá com uma colher de prata fosca. Mil detalhes adornavam aquele objeto que, aparentemente, não tinha nada de especial. A cama feita, se é que era cama, apoiava livros diversos, de uma literatura superficial e minimalista. Os lustres, ah, os lustres! Eram doces, como marshmallows numa noite de fogueira. Flores pendiam de suas hastes douradas e quase tocavam uma cômoda, que parecia derreter aos olhos da luz forte do sol. Tudo ali compartilhava de uma fiel harmonia. Tudo dançava ao som daquela voz doce e timbrada de Anderson, menino, cujo amor não perdera diante dos acontecimentos tristes, que rodeavam seu Mundo das Maravilhas. Seus olhos não apenas olhavam, mas criavam uma vida. Tudo o que ele enxergava era bonito, colorido, cheio de magias.
Convêm-nos parar a descrição para a mãe de Anderson ter seu espaço. Ela estava esperando há um tempão esta história terminar para poder dar suas alfinetadas. Seus passos, de saltos altos, faziam ranger o assoalho encerado do corredor.
- Dedêêê! Venha comer, meu filho.
- Ligo-te depois, Dalila. – e, como que de um supetão, desligou o telefone com certo receio.
- Que fazes debaixo da cama? – perguntou a mãe, horrorizada.
- Estou a pensar.
- Em quê?
- Na vida. Não simplesmente na vida, mas nela como um todo. Com todas as razões e sentimentos.
- Ele é muito espirituoso... – pensava a mãe.
- Está bem. Eu finjo que entendo e você finge que pensa... – e, de repente – Vamos almoçar, porque vento não alimenta! Por sinal, que faz esta janela escancarada? As cortinas estão a rasgar!
- Cortinas! O que são elas perto dos rasgos aos quais está exposto o meu peito! – ele quase enfartou com a frase proferida com tanta emoção.
- Pois vais parar de ler estes livros. Estão te fazendo louco.
- O mais louco dos seres seria aquele, que não conseguisse perceber...
- ANDERSON!
Num vasto campo cercado por orquídeas, hortênsias e amores-perfeitos, encontrava-se um grande poço. Seu balde ia e voltava. O flamboyant, em seus galhos fortes, como membros, segurava, por meio de duas cordas, um pedaço de madeira que sustentava linda menina, grande amiga de seu grande amigo. Era ela uma invenção de sua cabeça; menina que viera para confundir seus sonhos, atordoar sua mente. Dizia-lhe ele:
- Tu vais ser a personagem do meu livro.
- Estás a brincar, não?
- Não. Só não usarei seu nome, o qual desconheço. Serás Marabel.
Um infinito silêncio tomou o jardim. Até os pássaros, que gorjeavam por ali, pararam para ouvir a reação da tal menina dos olhos azuis reluzentes.
- Mas por que me inventas assim? És tão inteligente e perdes tempo comigo. Burro!
- Achas?
- Ah! Sairei com o Lucas daqui a pouco, então, não me enchas de perguntas tolas. – disse ela, saltitando portão afora.
- Ela não percebe que estamos num palco, Dalila. No palco da vida.
- E o Lucas?
- O Lucas é um desprovido de valores morais.
Pausa.
Sempre que Anderson queria xingar alguém, chamava o tal de “desprovido de valores morais”, só para não tornar depreciativo seu rebuscado vocabulário.
Marabel estudava no terceiro ano do Ensino Médio, nas dependências do Colégio Saberoso, junto a Anderson, Lucas e mais uns trinta alunos. Tinha um metro e sessenta e dois centímetros de altura, cabelos castanhos falsificadamente lisos, pele morena que levava olhos redondos e azuis faiscantes, tais quais os de uma boneca. Seu nariz arrebitado era tomado por profunda rinite, e tinha sorriso grande, como espelhos do que sentia. Namorava Lucas e era, portanto, apaixonada por ser feliz.