Amarela (parte 2 de 3)
Durante toda a noite, o menino ouviu as pessoas sonhando. Eram sonhos de fantasia, de imaginação recém descoberta. Sonharam com os animais do circo, com milhares de outros circos, com milhões de leões fugindo para infinitos lugares. Quando o sol nasceu por completo, o ônibus passou pela cidade e o menino estava esperando por ele. Havia um pequeno grupo de pessoas que vieram se despedir. Entre elas estava Dona Tica com o par de olhos mais brilhantes que poderia existir. Uma por uma as pessoas agradeceram ao garoto enquanto o ônibus buzinava e ameaçava partir sem ele. Elas agradeceram, mas não sabiam ao certo porquê se sentiam tão grandes. Sentiam-se diferentes depois daquela noite, os limites de suas vidas haviam desaparecido. Ao descobrir a história do leão, descobriram uma parte de si mesmas e aquilo fez delas maiores do que costumavam ser. "Eu vou contar essa história. É esse mesmo o nome? História?", Dona Tica disse ao garoto. Ele assentiu carinhosamente, disfarçando um sorriso enorme. Então, ele subiu no ônibus. Não ousou olhar da janela. Apenas pegou a caderneta amarela e começou a escrever.
O dono do circo, embalado pelos conselhos insistentes do domador, chamou um caçador para trazer o leão doente de volta. Carregando sua maleta de instrumentos e uma espingarda, o caçador chegou pouco antes do almoço. Ele tinha um bigode farto sobre lábios finos e silenciosos que seguravam permanentemente um charuto. Ele examinou a jaula e, em seguida, conversou com alguns artistas, depois, interrogou alguns animais. Por fim, seguiu as pegadas até o bosque. Ele tinha um ajudante franzino que carregava uma mochila enorme, cheia de provisões, correntes, armadilhas, iscas, panelas, algumas armas e tudo o que poderia ser necessário para capturar um leão doente. O ajudante vinha sempre atrás, tentando acompanhar a trilha do caçador. Eles andaram durante toda a tarde e atravessaram toda o bosque. Vez ou outra o caçador parava e procurava por alguma pista, pensava, e apontava para a direção que deveriam tomar. Caminharam assim até encontrarem uma pequena vila ao redor de um lago e escondida na sombra de uma montanha. Eles trataram logo de descobrir se o leão havia passado por ali. Primeiro procuraram pistas nas ruas, nas calçadas e nos jardins. Depois, perguntaram às pessoas e cada uma delas lhes contou uma história sobre o leão. O caçador ficou intrigado. Todas as aquelas pessoas deveriam estar aterrorizadas, mas, em vez disso, estavam encantadas. As histórias eram sobre um leão poderoso que abandonou sua própria vida para salvar toda a vida de todo um reino. Era um leão magnífico capaz das mais grandiosas proezas e dotado da mais incrível força. Ele derrubou os gigantes da montanha, afugentou a serpente do lago e quebrou as maldições do feiticeiro. As histórias não tinham fim. No instante em que uma terminava, outra começava, como se houvessem amarrado as pontas de infinitos novelos de lã e com esse fio interminável, as histórias do leão foram tecidas. Mesmo estranhando tudo aquilo, o caçador reunião o máximo de informações que pôde e partiu na direção que haviam lhe indicado. No entanto, antes de ele ir, Dona Tica pediu que ele, quando encontrasse o leão, lhe contasse como as coisas na vila do lago estavam diferentes, que o pequeno mundo sob a sombra da montanha era outro.
O ônibus seguiu durante 7 horas pela mesma estrada ladeada por muros altos de pedras empilhadas. Toda a vegetação estava seca e escondida embaixo de um cobertor de poeira avermelhada. Faltava pouco para o calor ficar insuportável e o garoto já havia abandonado a caderneta, contava os minutos para o ônibus parar, seu estômago não estava gostando da viagem. Então, depois de centenas de minutos, o ônibus passou por um grande portão e seguiu pela rua de uma cidade. As casas eram simples, quase todas tinham duas janelas e uma porta entre elas e ficavam coladinhas umas nas outras. O ônibus demorou mais alguns minutos naquele labirinto de janelas até chegar a uma pequena praça com um poço. O garoto foi o único a descer e só o fez porque não suportaria mais nenhum um minuto dentro do ônibus.
O sol estava forte e brilhava com uma intensidade quase anormal. Era o sol do inferno. Então, o garoto decidiu procurar algo para beber, algo gelado. Não precisou andar muito. Naquela mesma praça havia um bar. As portas de faroeste sob uma placa com uma taça, uma xícara e um caneco. O garoto entrou. Havia uma música tocando, aliás, havia um músico tocando delicadamente um violino. As pessoas que estavam no bar pareciam ser a aristocracia da cidade. Em um instante, o garoto percebeu que se tratavam de intelectuais, podia sentir a erudição pairando no ar. Eles usavam fraques e monóculos e bengalas e conversavam sobre os movimentos artísticos que mais lhes agradavam. Mas, não conversavam simplesmente, escolhiam as palavras mais pomposas para dizerem, por exemplo, um trivial "talvez". Movido pela sede e por um pouco de curiosidade, o garoto enfrentou o pedantismo que emanava do bar, e atravessou cuidadosamente a série de mesas, até encontrar o garçom. Pediu um limonada e se esforçou para parecer o mais invisível possível. Por fim, ele encontrou uma mesinha escondida atrás de uma escada, seria o esconderijo perfeito. Ele se sentou sem fazer um só ruído. Então, tirou a caderneta amarela do bolso e, enquanto bebericava a deliciosa limonada, escreveu algumas linhas.
O caçador investia toda sua força na busca pelo leão. Ele era o melhor caçador de toda a região e aquele leão doente não seria capaz de enganá-lo, não mesmo. Aquilo era impossível. No entanto, mesmo com tantos anos de experiência, ele nunca ouvira coisas tão incríveis sobre um animal de circo. Tudo o que o domador lhe contara, todas as histórias que ouvira dos animais e dos outros artistas, não coincidiam com o que as pessoas da vila lhe disseram. Ele procurava um leão decadente e aquelas história eram sobre um herói. Mesmo o ajudante, que havia sido treinado para falar o menos possível e para não interferir no trabalho do caçador, mostrava-se hesitante quando, de alguma forma, lembravam-se daquelas histórias. O caçador podia enxergar em seus olhos algo como: "nós vamos mesmo capturar o herói daquelas pessoas?"
"O que o senhor tanto escreve?" Um homem segurando uma bengala de cabo prateado perguntou. "Só uma história... para passar o tempo". "O senhor é um escritor de histórias?!", o homem praticamente gritou com os olhos esbugalhados. Num instante, estavam todos de pé e ao redor da mesa do garoto. "Não há nada que amemos mais do que histórias!", todos suspiraram como se aquela fosse a maior e mais deliciosa verdade do mundo. "O prefeito precisa conhecer o senhor imediatamente". Então, organizou-se uma comitiva para levar o assustado garoto ao encontro do prefeito. "Estamos sedentos para ouvir uma história, já faz muito tempo desde a visita do último escritor." O garoto não estava entendendo exatamente o motivo de tudo aquilo, mas parecia que ele era alguém importante, pelo menos, naquela cidade. Todos estavam interessados nas histórias do garoto e a cada informação que ele revelava, eles faziam mais e mais perguntas. Quando ele mencionou que eram sobre um leão, houve um exclamação geral de apreensão. Depois, veio a enxurrada de perguntas. Enquanto isso, caminhavam pela cidade, rumando para a parte mais alta. Mais e mais pessoas se juntavam à comitiva, quando chegaram à mansão do prefeito, no fim de uma rua tortuosa de pedras brancas, já havia uma pequena multidão. O garoto foi empurrado para dentro de um hall brilhante, ladeado por colunas de mármore amarelado. A porta se fechou atrás dele e, por um instante, ele pôde ouvir o brilho impecável do assoalho que parecia sussurrar-lhe o caminho. Ele cruzou o salão acompanhado de seu próprio reflexo. O salão parecia estar cheio com tudo o que ele era. Pela primeira vez, soube o que havia de verdadeiro dentro de si mesmo. No centro havia uma enorme abóboda de vidro que filtrava gota a gota a luz do sol. Ele se permitiu ficar por um instante sob a luminosidade. Era tão brilhante que não conseguiu abrir os olhos e mesmo o escuro de suas pálpebras irradiava luz. Ele caminhou envolto pelo escuro luminoso e encontrou uma porta com uma maçaneta no centro.
Depois dela, havia um salão ligeiramente menor e dezenas de empregados serviam um almoço suntuoso para umas cem pessoas.. Isso! "Quase cem", o menino contou instintivamente. No lado oposto, sentado como um rei diante de uma távola redonda, estava um homem ranzinza. Seus bigodes contornavam seu lábio superior e as pontas se enrolavam, cada uma feito o looping de uma montanha-russa. O menino se aproximou timidamente, contornando a mesa e se esquivando dos empregados. Ninguém o notou, nem mesmo quando quase tropeçou em um dos empregados que carregava uma enorme bandeja, certamente um leitão assado. O empregado apenas rebolou para endireitar a bandeja e sem desviar os olhos da mesa, seguiu em frente e serviu os convidados do incrivelmente delicioso leitão crocante. Então, o menino colocou-se perto do que, provavelmente, deveria ser o prefeito bigodudo. Naquele momento, uma mulher magra de nariz gigantesco que estava saboreando uma coxa de avestruz do lado oposto da mesa, percebeu o menino e certamente soube de quem se tratava. Ela limpou os lábios na manga da blusa e cochichou algo no ouvido do gorducho que estava sentado ao seu lado e, por sua vez, o gorducho segredou algo no ouvido do orelhudo ao seu lado e, por sua vez, o orelhudo falou algo no ouvido do careca que estava ao seu lado e assim o que a mulher magra e nariguda percebera sobre o menino percorreu toda a mesa até uma mulher dentuça e vesga cochichar aquilo no ouvido do prefeito. Então, ele abriu um enorme sorriso para o menino que já estava incomodado com tudo aquilo. "Então, é sobre um leão?", o prefeito perguntou enquanto fez um sinal para que os empregados super eficientes trouxessem uma cadeira para o menino e lhe preparassem um lugar à direita do prefeito. Foi um almoço saboroso. Entre mordidas, mastigadas e bebericadas, o menino contava detalhes da história. Quando ele abria a boca pra falar, todos se calavam instantaneamente e com extrema atenção ouviam o que lhes era dito. Por fim, deram-se por vencidos e admitiram que estavam satisfeitos. O menino ainda conseguiu comer um pudim de cereja e também se entregou. Permaneceram na mesa, conversando por mais algum tempo até que o prefeito lembrou-se de seu pronunciamento. Cordialmente, convidou o menino a acompanhá-lo. "Então, jovem rapaz, qual será o destino de nosso leão?", o prefeito perguntou enquanto seguiam rumo à sacada do pronunciamento. O menino piscou e remexeu algo em sua cabeça, mas a verdade era que nem mesmo ele sabia responder àquela pergunta, no entanto, ele certamente saberia algum dia. Subiram uma escada quase interminável que se dividia em vários lances de dez degraus. Nas paredes de cada um dos patamares, havia quadros exibindo páginas de livros. Em cada uma havia um trecho destacado. Eram os trechos preferidos do prefeito. Subiram, mesmo já derrotados pelo almoço, puderam chegar a uma meia-porta de ferro. O prefeito trazia a chave no bolso de seu colete, destrancou-a e, por ela, o menino pôde ver o céu. Saíram e da sacada podiam ver toda a cidade e sob eles havia uma multidão.
O prefeito se aproximou do parapeito e olhou para a multidão. As pessoas gritaram, saudando-o. "Hoje não vou falar, porque trouxe alguém para falar em meu lugar." Então, ele fez com que o garoto se aproximasse. Antes de todas aquelas pessoas olharem pra ele, sua boca já havia secado e suas pernas mal podiam mantê-lo de pé. Ele se agarrava à caderneta amarela. Olhou para as pessoas e pôde ver cada um dos rostos que esperavam. Esperavam por algo que amenizasse suas vidas, algo que lhes trouxesse paz e os confortasse de suas rotinas quase sem sentido. Enfim, ele abriu a caderneta e sem nem mesmo olhar pra ela, contou sobre o leão.
O leão fugido seguiu por uma terra desolado que dormia sob um cobertor de pó vermelho, feito cinzas do sol. Percorreu um labirinto de paredes altíssimas construídas com pedrinhas minúsculas. O calor pingava do céu feito lava e até mesmo respirar era difícil. Mas, o leão não desistiu, sabia aonde queria chegar, à liberdade. Então, depois de percorrer centenas de corredores truncados, o leão avistou um portão e atrás dele uma cidade que se agarrava a uma colina. As ruas estavam desertas. Todos se mantinham em casa com medo do sol, do calor, do inferno. O leão percorreu as ruas em busca de alguém, de alguma alma que pudesse lhe explicar o que estava acontecendo. No entanto, não havia ninguém. O leão teve sede e fome e não havia nada além do calor. Como que por acaso, ele encontrou uma casa no fim de uma rua estreita e quase perdida. Era uma casa grande, certamente, a casa do rei. A porta estava aberta. Cuidadosamente, o leão entrou. Havia um salão gigantesco com o piso lustroso e imponentes pilares. Ele seguiu em direção à porta do outro lado. Havia um ruído estranho, algo como um fogo corroendo a cidade. Movido por uma febre iminente o leão percorreu mais e mais salões desertos que culminavam em uma escada, uma escada que levava até o sol. Ele, entregue aos delírios de sua vontade insuportável, subiu cada um dos degraus. Quanto mais subia, mais o calor aumentava. Tudo parecia vermelho e desfocado, o leão mal conseguia subir e subir e subir. A escada terminou na soleira de uma porta de ferro fervente e além dela havia uma sacada. O leão saiu e sentiu seus pelos em chamas e sua pele fritando. Era o sol, ele estava diante do sol.
O menino fechou os olhos por um momento e vieram os aplausos emocionados. Então, envergonhado, o menino desceu da sacada e havia uma multidão lhe esperando. Todos haviam continuado lá, esperavam para vê-lo. Abriram caminho para que ele pudesse passar. Ele pôde ver os olhos brilhantes das pessoas, pôde ver a satisfação e alegria por terem ouvido aquelas poucas palavras. O caminho levava até o ônibus que já estava esperando. O menino se despediu do prefeito, abanou a mão para a multidão e embarcou. Da janela, viu as pessoas lamentarem sua partida e naquele momento desejou ficar. Sempre pertencer a um lugar em que fosse desejado e querido, em que fosse aceito pelo que é de verdade, não apenas por obrigação, por coincidência ou destino. Ele sentiu que teria sido feliz, se não tivesse partido, que aquelas pessoas nunca se cansariam de suas histórias, que elas nunca se esqueceriam dele.