A memorável história de Ártilus, o impedidor de suicídios
Há muito, muito tempo, quando os céus e as terras e os mares se revolviam num emaranhado caótico e voluptuoso com as demais existências que ainda não existiam, numa partícula una, um Sonhador teve o seu sonho mais perturbador e então o Universo tomou forma, pois se alimentava de sonhos.
Ártilus não estava entre as criaturas primeiro sonhadas, pois sua vida só passou a fazer sentido quando os pequenos habitantes de um planeta igualmente pequeno decidiram que poderiam ser filósofos e, sendo assim, sentiam-se na posição de poder decidir entre continuarem a viver ou causarem a própria morte, por acharem que a vida naquele planeta pequeno não valia a pena... e também por vários outros motivos nada filosóficos, como constatou o próprio Ártilus depois de alguns anos de serviço.
Ártilus possuía um ventre saliente e pêlos como os de um ursinho de pelúcia. Sua aparência, portanto, não era nada imponente. Sempre achara que sua imagem não contribuía para ajudar-lhe em sua tarefa. E era uma tarefa complicadíssima! Apesar dos olhinhos brilhantes e do rabinho de pom-pom, Ártilus foi sonhado para ser uma criatura muito séria e que deveria evitar que seres humanos cometessem suicídio. E ele era bom nisso e as estatísticas estavam a seu favor: três em cada quatorze potenciais suicidas se deixavam convencer pelos seus argumentos.
É bem verdade que Ártilus não era onipresente, mas ele podia viajar em feixes de luz e de radiação cósmica que emanavam do seio do Universo. E um belo dia, na hora do almoço, seu bip tocou avisando que havia um certo senhorzinho muito simpático que estava desistindo de tudo nessa vida, inclusive dela própria. E lá foi Ártilus pegar carona num feixe de luz perpendicular à quina direita da varanda de sua humilde cabana com três andares.
Lá chegando encontrou o homem sentado num viaduto muito tumultuado, desses cheios de carros ignorantes indo e vindo. Os carros não davam a mínima para o senhorzinho curvado que olhava para a pista lá embaixo com as mãos apoiadas na mureta.
- Oi, disse Ártilus.
Com um susto devastador que fez com que o pobre homem quase caísse viaduto abaixo (o que seria uma grande ironia) o homem olhou embasbacado para aquela simpática criatura de pelinhos azuis.
- Quem é você? - Perguntou o senhorzinho, que tinha por nome Arquimedes.
- Sou Ártilus e minha existência só faz sentido por sua causa, por este fatídico dia em que posso vir ao seu auxílio.
- Sinto desapontar-lhe, caro senhor Ártilus, mas não sinto-me necessitado de qualquer auxílio, além do mais, minha mente não concebe a idéia de conversar com um ser que parece ter saído de um desenho infantil.
- Ah, acontece... Ártilus pareceu desapontado por ter sempre que repetir a mesma ladainha. As pessoas sempre estavam surpresas demais com o desconhecido e desperdiçavam a chance de conversar uma boa prosa filosófica sobre assuntos tão contundentes, como a morte, por exemplo. - Você vai mesmo pôr fim à própria vida, não é?
- Não sei. Estou indeciso.
- E qual o grande motivo?
- Ah, você sabe... quando a gente se põe a esquadrinhar as maravilhas do Universo, da vida, da sabedoria... essas coisas... - seu olhar estava vago - a gente se sente mal por possuir uma duração tão curta em todo esse percurso. E daí a gente ri do pó que espantamos da manga de nossas camisas, mas quão diferentes somos do pó? Um erro milimétrico de cálculo e o tempo nos veria com a mesma indiferença. Eu vivi, amei, odiei, apliquei-me aos estudos e agora estou aqui bastante entediado com a curta duração de minha vida.
Ártilus então ficou maravilhado com as palavras daquele homem. Ele não sabia, mas tinha encontrado um dos verdadeiros sentidos e aquilo deixava Ártilus muito feliz. Então, assumindo um tom sério que, na realidade o tornava muito engraçado por sua aparência tão fofa, falou a Arquimedes.
- Você pode morrer em paz. O meu objetivo é impedir que as pessoas vão embora dessa vida sem compreender por que chegaram nela. Foi um prazer estar em sua presença em seus últimos momentos.
Ouvindo essas palavras, Arquimedes alertou-se para o fato de que havia maravilhado uma mente transcendental. "Puxa, então minha vida não é tão insignificante assim! Eu pude compreender a razão de... de tudo! A razão de tudo!" E assim, antes que pudesse dizer qualquer coisa, Ártilus, o fofo, se desmanchou no ar, bem na sua frente. Surpreso com aquilo tudo e cheio de si por ser uma criatura ímpar, gritou achando que ainda poderia ser ouvido por Ártilus:
- Mudei de idéia, senhor Ártilus! Mudei de idéia!
Ártilus, em algum ponto do universo em sua cabana de três andares ouviu os ecos distantes das palavras de Arquimedes e se gabou de sua perspicácia. O pobre homem havia sido ludibriado pelo esperto Ártilus. "Ele agora quer viver! Só bastou dar-lhe um elogio interior! Seres engraçados!"
Ártilus sabia: deixe um sábio confuso e ele estará aos seus pés se achar que você tem a resposta.
O sábio agora era tolo feliz e Ártilus jamais cessou sua jornada até que os ventos uivaram uma última vez. Mas isso já faz muito, muito tempo...