Mil Faces - Capítulo 7

O som parecia não se extinguir. Ele não gostava de atirar. Não gostava do som que a arma fazia, mas de alguma forma ver o sangue causava um estado de torpor na sua cabeça que ele não conseguia entender. Primeiro havia sido Marcos, depois o homem que lhe ameaçara com a arma na cabeça e depois o outro que parecia transbordar sangue. Perguntava-se se a sua natureza era realmente humana enquanto mantinha uma expressão vazia vendo o sangue do homem jorrar pela boca enquanto tentava respirar.

Quase não reparara na presença de Manuel até ele falar. Não fora difícil juntar as peças então. De alguma forma ele sabia que tudo ficaria limpo logo, logo.

Já na porta percebeu que ainda portava a arma nas mãos. Só quando a guardou na cintura sentiu o desespero da situação em que se encontrava. Nem tudo fazia sentido ainda, mas as peças começavam a se encaixar. Passou a mão sobre a cabeça raspada e sentiu o suor frio que escorria pelo couro cabeludo. A vontade que sentia de bater na garota era mais que o normal, ele tinha esperanças de poder se manter naquele lugar. Tirando o calor tudo conspirava para que ele pudesse finalmente chamar aquele lugar de casa. Mas estava tudo estragado. Na sua mente se existisse algum Deus ele estaria agora sorrindo da situação de Horácio.

Olhou para o chão e só então percebeu o sangue que parecia já estar impregnado nos seus sapatos. Mais uma preocupação. Olhou pra trás e pela porta entreaberta conseguia ver a ruiva ainda de joelhos no chão. Não sabia dizer se ela estava chorando ou não. Talvez fosse a primeira vez que ela via um homem morrendo. Por um momento sentiu pena da garota, por mais que algo dentro dele dissesse que a culpa do homem ter morrido era totalmente dela. Mas isso não era algo que se devesse dizer a uma mulher.

Lembrou-se da primeira vez que matou alguém. Quantos anos ele tinha era algo difícil de lembrar. Era pra ser um serviço simples. Entrar, pegar o dinheiro e sair. A parte mais difícil era entrar, mas não para ele. Todos os garotos tinham inveja de Horácio, que na época atendia por João, e era conhecido por ser o preferido do Avô. Ele dormia no melhor quarto, comia primeiro que os outros e vez ou outra saía sozinho com o velho só pra jogar conversa fora.

A noite já estava bem adiantada, talvez uma ou duas da manhã. Eram apenas João e outros dois garotos. A casa ficava um pouco afastada da zona urbana do Rio, mas todo cuidado era pouco. A informação é que não teria ninguém por lá, mas mesmo assim o Avô insistira que ele levasse uma 9mm, mas para todos os efeitos ele não carregava arma alguma, isso poderia afetar os nervos dos companheiros.

A casa era grande, possuía cerca elétrica e um muro com aproximadamente cinco metros de altura, não seria difícil escalar, mas João gostava de facilitar as coisas. O sistema eletrônico funcionava de forma que ao tocar o interfone e a entrada fosse autorizada você só precisava apertar um botão e o portão se abria, mas isso só se o botão interno também fosse apertado. Era um esquema simples. Talvez eles tivessem filhos e não quisessem correr riscos, pois o sistema poderia ser desativado facilmente por controle remoto e o botão que ficava dentro da casa ficaria inativo com um simples comando.

Alguns pais faziam esse tipo de coisas ao ter filhas mulheres, alguma espécie de superproteção que João não entendia e que sabia não funcionar. Ninguém consegue prender uma mulher apaixonada.

Não demorou muito tempo para que o sistema estivesse hackeado. João deu um sorriso aos companheiros e entraram na casa como se fosse a sua própria. Tomaram cuidado procurando por cachorros, mas não havia nenhum. O cadeado que mantinha o portão da casa fechado fora quebrado rapidamente e eles já estavam vasculhando-a. João encontrou um relógio que gostou, uma carteira com certa quantia em dinheiro. A casa era bonita, tudo na casa parecia ser mantido em perfeita ordem, arquitetura moderna, tudo branco demais, móveis importados, televisões que ele nem mesmo havia visto em lojas ainda.

Os outros estavam procurando pelo dinheiro que o avô havia dito estar lá quando ouviu um chamado vindo dos cômodos que ficavam no fundo da casa e apressou o passo.

— Ei, João. Olha isso, cara! – O garoto mais velho do trio falava quase gritando, mostrando uma bolsa de viagem aberta contendo muitos dólares. João nunca tinha visto tanto dinheiro na vida, mas não se deixou impressionar. – Cara, isso é muito dinheiro!

- Fala baixo, esqueceu que a gente não está em casa? – Ele disse baixinho, mas com um tom de reprovação que fez o garoto fazer uma carranca no mesmo instante. Como era mesmo o nome dele? Lucas? Ou era Leonardo?

O outro garoto ficava apenas ali observando, esperando ordens, ele não era o tipo rebelde. João já o conhecia. Era uma vítima das consequências, ele não gostava de estar ali, mas nem por isso se tornava um peso nas costas dos outros. Seu nome era Pedro, esse ele não esqueceria.

— João, aqui tem muito dinheiro, cara. Dinheiro demais pra gente levar pro Avô e ele sumir com ele. – Ele disse abrindo mais a bolsa como se isso fosse mudar a opinião de João. – A gente pode viver bem pra sempre. Pra onde você tem vontade de ir? Eu sei que você quer ir pra casa, cara!

Casa.

As pessoas gostavam de falar sobre casa com ele, ele não sabia se mostrava aquilo na expressão, mas todos pareciam saber que ele não havia se encontrado. Ponderou por um tempo sobre o que o garoto estava dizendo. Mas ele tinha uma casa. O prédio onde eles moravam não era o melhor do mundo, mas não lhes faltavam nada. Eles não apanhavam mais depois que começaram a trabalhar de verdade para o Avô, eles tinham aprendido coisas que nunca aprenderiam sozinhos e acima de tudo tinham um dever para com o homem que lhes abrigara.

— Nós vamos voltar e dar o dinheiro ao velho. Ele dá o serviço e a gente faz. Esqueceu como funcionam as coisas?

— Você está falando isso por que é o queridinho dele, ele não está nem ai pra gente, João. Vamos, cara! Vamos fugir dessa porra!

— Não, Lucas! – Ele disse tentando tomar a bolsa das mãos do garoto, mas ele tirou com força, fechando o zíper e colocando-a nas costas.

— Você vai, Pedro? – Ele perguntou olhando o garoto, ele ficou em silêncio por um segundo antes de fazer que não com a cabeça. – Então eu vou vazar, caras. Podem falar a verdade pra ele, não vou ficar nessa merda pra sempre.

Pedro saiu na frente dele andando de costas enquanto Lucas avançava falando para que ele saísse do meio e que não poderia evitar que ele fosse embora.

João ponderou por um momento. Nessa hora eles já estavam à porta. As mãos tremiam ao portar a arma. Um tiro. Ele sempre odiou aquele barulho. Quando o corpo de Lucas caiu para o lado ele viu o sangue espalhado no rosto de Pedro. O garoto o limpou com as mãos e ficou ali sem dizer nada.

João procurou pelo celular no bolso da calça.

As mesmas palavras que ele havia dito àquele dia se repetiam agora quando Horácio ligara ao homem que lhe oferecera o serviço à poucos dias atrás.

— Ei, temos um pequeno problema aqui.

Gama Kaio
Enviado por Gama Kaio em 18/10/2012
Reeditado em 18/10/2012
Código do texto: T3939713
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