O rei louco
O rei e sua comitiva atravessavam o reino rumando para as geladas terras do oeste em busca do famoso curandeiro. Aquele que poderia salvar a rainha do fim terrível que a esperava após meses de febre ardente em cima de uma cama. O problema era o inverno que se intensificava, e o caminho era de encontro com este inimigo gelado que o rei precisava combater. Depois de várias guerras de espada em punho na fronte de suas tropas, nenhum inimigo tinha penetrado a alma do rei como este inverno o fazia. Mas o que seria do rei sem sua rainha? O risco do pior existia, mas ele estava disposto a qualquer coisa na tentativa de salvar sua amada. Talvez nunca outro rei nas histórias tenha amado tanto uma rainha como este. A comitiva foi escolhida a dedo, o príncipe ficara no comando dos afazeres reais. A possibilidade de guerra nas vizinhanças não permitia que o rei levasse consigo toda a guarda que caberia a um rei em uma jornada tão complicada. E havia pequenos vilarejos tão hostis quanto os inimigos. Dentro do próprio reino, não pela cobiça que os vizinhos empunhavam, mas pela própria segurança cega de um animal indefeso. Estes vilarejos nas terras geladas talvez nem soubessem que estavam em um reino, falavam uma língua estranha, com sons que nem um pouco lembravam palavras. E eram desconfiados. Se guiavam pelo olfato aguçado. Se moviam na escuridão como se o sol estivesse a pino. E como se defender de quem não se quer atacar? Este era o pensamento deste rei. Nunca vira estes seus governados, mas escutara histórias, muitas histórias de quem não quereria nunca mais em sua vida se deparar com estes seres. E onde eles estariam? Onde estaria este povoado nômade que se movimenta silenciosamente ao menor sinal de perigo ao redor? Não havia como saber. Mas a rainha estava morrendo. E o tempo era um aliado do inimigo gelado que pesava cada vez mais na jornada da comitiva. A comitiva avançava, o rei com três guardiões portando 5 cavalos. Com a pouca bagagem que levavam, um cavalo poderia caminhar em descanso todo o tempo. E na volta poderia carregar a cura para a amada rainha. Mas o caminho ainda era o de ida. E era gelado. Em um dia de uma claridade ofuscante, a neve caia fina tornando o abrir dos olhos muito mais árduo que o usual naquela manhã. E onde estavam os cavalos? A neve se adensava e nenhum sinal dos animais. Foi uma manhã inteira de busca pelos animais e nenhum sinal se apresentou. O rei se lembrava das histórias ouvidas na sua infância. Todos na comitiva tinham ouvido alguma história sobre cavalos desaparecidos sem rastro algum. E nestas histórias sempre haviam seres hostis!
A parte mais íngreme do caminho estava às costas, a planície que se apresentava à frente era um caminho curto e não muito árduo até a cabana do curandeiro. Após uma manhã de buscas e uma refeição rápida a comitiva seguiu seu caminho sobre a neve. Três dias de caminhada se passaram e mais um restava até a cabana tão vislumbrada. Era um dia sem sol, as nuvens fechavam qualquer visão do céu, mas a neve não vinha pela primeira vez em semanas. E o dia era tênue, um descanso aos olhos. E quieto, pássaros muito ao longe podiam ser ouvidos de tempos em tempos. E estavam muito longe. As folhagens desta região, acostumadas ao inverno, emanavam um cheiro agradável, o rei respirava esperança nesta paisagem esverdeada. O primeiro homem da guarda vinha alguns metros à frente, seguido do rei com um guarda às suas costas e outro mais distante atrás. Assim fora toda a caminhada da comitiva. O primeiro guarda parou. Ele parecia cheirar o ambiente a sua volta e antes que o rei pronunciasse qualquer interrogação, a retaguarda da comitiva fora atacada. Sempre a retaguarda. Era assim nas histórias. E como eles eram bons com as espadas nestas histórias. Mas este ser não era mais. O guardião escolhido pelo rei para a retaguarda perdera a visão quando menino, mas não perdera a devoção nem a força de vontade em realizar o sonho de fazer parte da guarda real. Como seu falecido pai, que morrera no mesmo incidente que tirou sua visão. Um ataque silencioso pelas suas costas fora desferido, e pela primeira vez em sua vida, aquele guardião teve a chance de honrar o lugar que lhe foi atribuído ao lado do rei. Lembrando-se de seu pai, ele defendeu o ataque que lhe veio pela retaguarda com uma ofensiva rápida aos três hostis que surgiram da neve. O silencio dominava o ambiente. O mundo parecia vazio à volta da comitiva, mas não estava e eles sabiam muito bem disso. Flechas vieram ao centro da comitiva, mas a esta altura o grande escudo do guardião central já cobria a si e ao seu defendido. Seus olhos eram como os de uma lince, ele poderia defender sua majestade de qualquer objeto voador que chegasse até ali. E, por fim, a ofensiva real, o líder da comitiva já não estava em seu posto usual nas caminhadas, a fronte da comitiva não precisaria ser defendida, as histórias contavam isso. As histórias, estas sim, o grande inimigo dos hostis. Com um rei esperto que compôs uma comitiva que só não rendeu risos à população pelo respeito que todos tinham à sua inteligência, mas rendeu rumores que diziam que ele estava enlouquecendo com a doença da amada, o rei está ficando louco! Uma comitiva composta por um cego, um jovem carpinteiro que caminhava sozinho pela muralha do reino, todos os dias, olhando ao longe, procurando algo que ninguém sabia dizer o que era. Sua amada da infância, diziam uns. Mas o fato é que ele nunca levou jeito algum para erguer uma espada, quanto mais uma da guarda real. E por fim, um caçador, com o faro de um cão de caça, podia saber quem se aproximava antes de enxergá-lo. Era tido como ladrão por alguns, e era de uma furtividade que poucos ladrões podiam contar. E corria, como corria! Neste momento ele corria em volta do cerco que se formara contra a comitiva, desarmou alguns arqueiros, derrubou alguns que espiavam escondidos, corria, fazia barulho e pegava de surpresa os que outrora vislumbravam um ataque certeiro. Foi o suficiente para dispersar aqueles seres que mais pareciam animais. Como se assustam coelhos em um terreno foi feito com aqueles. E a estratégia do rei louco funcionara. Sem um conflito de espadas, com três baixas inevitáveis ao reino, a comitiva pode seguir viagem. E o sol se abria a frente deles, forte, reconfortante, dava segurança aos passos firmes da comitiva, estava baixo, no horizonte à sua frente, e no meio de toda aquela luz amarelada, surgia, ao longe, a silhueta de uma pequena cabana, o rei sorriu para si mesmo...