Mil Faces - Capítulo 6
As sacolas balançavam em suas mãos. Roupas, perfumes, acessórios. Tudo que o homem careca havia comprado para ela estava em suas mãos agora. À tarde havia sido tensa, ela olhava no fundo dos olhos dele e não sabia como mentir. Ela nunca havia sido boa em mentir. Os sorrisos constrangidos, as vezes em que ela se desviava do olhar acusador que ele sempre parecia carregar no semblante, até mesmo como se sentia obrigada a ter sempre as mãos no rosto para esconder uma ou outra feição que pudesse mostrar que ela era uma farsa. Sem contar a beleza dele, mas ela procurava não pensar nisto.
Eles ainda não haviam entrado na casa quando todos esses pensamentos assolaram a sua mente. Lá dentro não havia muito tempo para pensar. A ruiva já sabia que nada daquilo resultaria em algo bom, mas por algum motivo levava consigo um pouco de esperança que estivesse segura com o homem que se chamava de Horácio e com os estranhos daquele lugar. Quando abriram a porta e o silêncio se estabeleceu nos ouvidos deles ela já sabia que algo havia acontecido. Não, não, não! A mente dela gritava com ela, mas a boca se mantinha fechada.
Sentiu o toque dele mandando-a ficar parada e logo se esgueirou na parede que ficava entre a sala e a cozinha, escondendo-se do que quer que estivesse ali.
De onde estava precisava se esgueirar até o canto da parede para visualizar o que estava acontecendo. Dali viu a mancha de sangue na porta e também viu Horácio caminhar para de trás do balcão se escondendo de algo ou apenas observando o que havia ocorrido ali. Nesse momento ela também ouviu barulho de coisas sendo jogadas, móveis sendo arrastados, mas tudo aquilo no andar de cima. E as escadas estavam bem à sua frente. Pensou em gritar, mas levou a mão até a própria boca evitando que aquilo acontecesse. Quando se preparava para correr até onde o homem que não sabia ser o seu salvador ou algoz notou que alguém já havia chegado até ele.
E agora? Era o pensamento que martelava em sua cabeça sem parar em nenhum momento. Viu Horácio se levantar, viu a arma do homem pressionar a cabeça raspada do outro.
Ela pensava principalmente no que aconteceria se o careca fosse morto, se ela teria de voltar para casa, se tudo iria de ser como antigamente, mas o que mais assolava sua mente era o que seu pai faria. Ele mataria a própria filha. Ela suava frio, levantou a mão para aparar o suor e enxergou o perfume que havia obrigado o homem a comprar. Um perfume tão bom... Afastou o pensamento da cabeça. Como conseguia pensar em um perfume quando a única pessoa que lhe ajudara nos últimos tempos estava com uma arma apontada para a sua cabeça? Se ele morresse ali ele nem saberia o seu nome verdadeiro.
Olhou mais uma vez para o perfume que havia comprado. Havia sido caro e era importado, mas o que era mais importante: Um perfume ou uma vida? Retirou-o da sacola e caminhou em passos silenciosos na direção do homem que apontava a arma na cabeça de Horácio a ponto de ouvi-lo dizer “Rápido”.
E foi rápido.
O vidro explodiu na cabeça do homem antes que ele pensasse em disparar a arma, e mais rápido ainda foi à forma como Horácio girou e atirou nele, que até um momento atrás lhe apontava a arma na cabeça.
A bala fez um buraco perfeito entre os olhos dele. Agora ela via com perfeição. Cerca de cinquenta anos, o topo da cabeça era careca, os olhos azuis, barba por fazer. Já estava acima do peso, mas tinha os braços fortes. Deveria ter alguns filhos...
O pensamento cessou com o chacoalhar que recebeu no braço. Ela devia estar viajando, pois só após ser tocada por Horácio percebeu que suas mãos estavam cheias de sangue. O frasco havia explodido em suas mãos e onde os fragmentos haviam cortado o álcool havia penetrado. A dor parecia entrar na carne a medida que o líquido contido no vidro se misturava ao sangue. Era um cheiro estranho, nostalgiante. Sentia-se como na primeira vez que vira um homem morrer. Toda vez era como a primeira vez.
— Tem mais um lá em cima. – Ela disse ainda com os olhos fixos no ferimento. Os passos de Horácio se direcionaram para a escada.
Retirou o olhar das mãos a ponto de ver o segundo homem vir descendo correndo por conta do tiro que havia escutado. Todos deveriam estar mortos. Ela pensou a ponto de ver Horácio com uma perícia que não ela não imaginava que ele possuía atirar de forma certeira na perna esquerda do outro quando ele ainda estava no topo da escada. O resto era trabalho para a física.
Não se precisava ter um conhecimento médico para saber que ele tinha quebrado um braço e uma perna, pois os dois ossos estavam à mostra naquele exato momento. A arma estava longe demais. Levou a mão à boca mais uma vez, não para evitar um grito, sim para evitar que todo o almoço fosse embora sem pedir permissão.
Uma perna baleada, dois membros quebrados, talvez uma costela, mas ele continuava vivo. E Horácio estava com um pé sobe o seu tórax. O Homem gritava de dor, esperneava. Era uma sensação terrível. Ela caiu nos joelhos pedindo para que ele parasse com aquilo. Toda a resposta que conseguiu foi uma arma apontada para sua cabeça e o grito de Silêncio vindo de Horácio. Talvez ele não fosse tão inofensivo assim.
— Por que você quer essa garota? – Ele perguntou – O que ela tem de especial? – Não houve uma resposta além dos gritos, então ele apenas levantou o pé e pisou com uma força tremenda sobre a costela do homem. O som de osso quebrando não era algo bom de ouvir. Os gritos eram piores.
— Ela... ela... Campos Marques... segurança... – Ele parou novamente sentindo uma dor imensa. Ele falaria toda a verdade e se não falasse talvez ela fosse obrigada a falar. Talvez Horácio a devolvesse ao pai esperando alguma recompensa, ou talvez ele só a matasse. – Por favor... é só trabalho. – Parecia que ficava cada vez mais difícil falar.
— Todos estamos trabalhando, amigo. E eu estou ficando sem balas.
Parecia que ele não queria mais ouvir respostas e nem gastar balas. Ele sabia o que fazia, pelo menos era o que parecia. O chute seguinte havia sido um pouco mais acima, onde ficam os pulmões. Ela ouviu o barulho de osso rachando mais uma vez, mas dessa vez não foi apenas esse barulho. Um barulho baixo, mas audível de algo sendo rasgado. O pulmão havia sido perfurado.
Ver o homem afogando-se no próprio sangue fora sem dúvidas a pior coisa que ela havia visto aquele dia e a fez pensar se deveria ou não ter quebrado o perfume na cabeça do primeiro assassino.
Passaram-se alguns minutos de silêncio antes que a porta da pousada fosse aberta e o coração dela saltasse pela boca, mas era só o taxista que havia levado e trazido os dois do shopping. Viu-o tirando os óculos escuros do rosto e guardando-os no bolso da camisa. Ela estava errada quando pensou que ver o homem morrendo fora a pior coisa. Pois o sorriso que o taxista deu era de longe mais perturbador que a visão do sangue jorrando da boca do outro.
— Parece que temos uma faxina a ser feita aqui, amigo.
Ele disse atenuando o sorriso.
Horácio abaixou a arma e saiu em direção a porta.