Changelling - A Elemental
Dora sentia que alguma coisa não estava bem naquela manhã.
As nuvens cinzentas e pesadas pareciam trazer uma mensagem, além da chuva. Foi até o jardim colher umas folhas de hortelã para fazer um chá, pois não se sentia muito bem, quando um vento estranho balançou selvagemente as folhas do velho sabugueiro. O vento brincou com os cabelos desalinhados de Dora por um instante, e então, tão subitamente quanto apareceu, ele se foi. Ela ergueu-se do canteiro de ervas, com os galhos de hortelã na mão, e neste momento, Julio desceu as escadinhas do alpendre segurando sua maleta. Notando o ar preocupado de sua esposa, ele perguntou-lhe se ela estava bem, e Dora balançou a cabeça concordando. Beijou o marido e ele saiu para o trabalho.
Mal Julio havia saído de casa e a tempestade desabou pesadamente. Dora sentou-se na varanda com sua xícara de chá, observando a chuva, balançando-se em sua cadeira.
Um mês depois ela ficou sabendo que estava grávida. A surpresa foi grande para todos, especialmente para Dora e Julio. Aos 39 anos, ela há muito recebera a notícia de que jamais poderia engravidar. Refez os testes, uma, duas vezes, e a gravidez foi confirmada. Até mesmo seu médico considerou o fato como um verdadeiro milagre. E o mais surpreendente é que quando ela soube que estava grávida, já estava entrando no quarto mês de gestação. Tinha menstruado normalmente durante os três primeiros meses. Não sentia enjôos, tonturas ou dores de cabeça, e nem tinha inchaços ou qualquer sintoma de gravidez. Somente depois de duas semanas de atraso menstrual é que Dora ficou sabendo que esperava um bebê.
Após descobrir, a sua barriga parecia crescer a cada semana. Logo soube que esperava uma menina.
Aurora nasceu no final da primavera, de parto normal. O médico dissera que o bebê não nascera, mas que fora suavemente impelido para fora, como se escorregasse gentilmente. Dora não sentiu nenhuma dor, a não ser um pouco de cólica.
Aurora não chorava à noite, dormindo profundamente até as seis horas da manhã, quando acordava, mamava e depois de ser trocada ficava quietinha, observando os móbiles que se dependuravam do berço em sua direção.
Dora estranhava o fato de Aurora não gostar de ser segurada, a não ser quando estava sendo alimentada. Toda vez que tentava embala-la ou acaricia-la, o bebê contorcia-se e , se ela insistisse, Aurora protestava em altos brados. Eram as únicas ocasiões que as faziam chorar.
Parecia ter uma saúde de ferro, e aos seis meses de idade, era um lindo bebê sorridente, que nunca tinha tido um resfriado sequer. Seus olhos verde-escuros eram muito penetrantes, e algumas pessoas comentavam o quanto Aurora parecia ter atitudes de uma criança mais velha, e não de um simples bebê.
Começou a falar aos dez meses, e com um ano de idade já parecia entender tudo o que lhe diziam e se comunicava perfeitamente. Era o orgulho de seus pais e seus avós.
Era prática e jamais brigava com outras crianças por causa de brinquedos. Quando queria algo que estava com outra criança, apenas estendia a mão, sorria e a outra criança lhe entregava o brinquedo voluntariamente.
Mas um dia, uma de suas colegas de escola , uma menina chamada Márcia, negou-se a dar-lhe uma boneca com a qual brincava.Após insistir educadamente sem obter resultado, Aurora investiu contra Márcia, arrancou a boneca de suas mãos e desmontou-a completamente, separando membros e cabeça do corpo, arrancando os olhos e atirando a boneca no canto da sala com uma fúria silenciosa e uma força nada normal para uma criança tão pequena. Enquanto isso, a pequena Márcia assistia a tudo aos prantos no colo da atônita professora.
Dora e Julio trabalhavam o dia todo, e durante esse tempo, Aurora ficava na escolinha. Tinha sido fácil no início, mas quando fez quatro anos, Aurora disse à mãe que não queria mais ficar com “aquelas crianças bobocas”. Estava cansada de ficar desenhando e cantando musiquinhas estúpidas , e ainda tinha de escutar aquelas menininhas chatas chorando o dia todo. Dora tentou argumentar, dizendo que a escola seria muito boa para ela, que logo aprenderia coisas novas.
A partir daí, ir para a escola tornou-se um suplício diário, pois Aurora recusava vestir-se, ou se escondia , fazendo com que Dora se atrasasse para o trabalho, e quando era deixada na porta da escola, recusava-se a dar a mão à mãe e entrava na escola pisando duro, de cabeça baixa, sem olhar para trás e sem despedir-se de Dora. Passou a ser uma criança ranheta e chorona, coisa que nunca fora antes. Na hora do recreio, recusava-se a brincar com as outras crianças, e ficava o tempo todo sozinha, passeando entre as árvores do pátio e conversando com seus amigos imaginários, que passaram a fazer parte de sua vida. Só mesmo quando estava na “companhia” deles Aurora mostrava-se calma ou sorria.
Foi levada pelos pais à três diferentes psicólogos,e todos chegaram à conclusão de que Aurora era uma criança com inteligência acima da média e Q.I elevado, devendo concluir seus estudos em uma escola para crianças superdotadas.
Aos seis anos de idade foi matriculada na Escola Passos Largos, na quarta série primária.
Desde então Aurora passou a ser uma criança mais calma. Logo desenvolveu especial aptidão para música, especialmente piano e canto, e também literatura e matemática. Tudo o que lhe era ensinado era prontamente assimilado, e quando testada, demonstrava ter uma memória fotográfica que nunca falhava.
Mas, apesar de ter vários dons especiais, Aurora não parecia interessar-se realmente pelo que aprendia. Nunca demonstrava real entusiasmo pelo que fazia, embora fizesse tudo com perfeição, mas uma perfeição automática, sem nenhum sentimento.
Ao mesmo tempo, seus relacionamentos eram todos superficiais, ela parecia apenas tolerar os outros colegas. Tratava-os com gentileza e educação, mas fazendo questão de nunca envolver-se demais ou deixa-los aproximarem-se mais do que ela mesma desejava. Jamais dava festas de aniversário, dizendo sempre que preferia fazer uma viagem, ou comprar roupas caras. Andava sempre impecavelmente vestida, e era muito vaidosa. Quanto à freqüentar festas, raramente o fazia, e quando concordava ( por insistência dos pais), sempre voltava muito cedo para casa.
Aos treze anos era capaz de reproduzir concertos de Chopin e Mozart com perfeição, mas apenas suas mãos percorriam as teclas. As pessoas mais sensíveis notavam que sua alma estava bem longe dali. Logo desistiu de dedicar-se à música. Explicou aos pais que estava entediada.
Formou-se na escola aos quatorze anos, com mérito. Mas era jovem demais para ingressar em uma faculdade , e de qualquer maneira, dizia sempre que para ela, bastava de escolas e professores.
Nas reuniões com os amigos, Dora e Julio eram sempre parabenizados pela linda e inteligente filha que tinham. Eles agradeciam, mas se entreolhavam, pois sabiam que havia algo dentro de Aurora que eles jamais alcançaram ou poderiam alcançar, e que um belo dia, ela iria embora para nunca mais voltar, e eles nada poderiam fazer. Aurora não lhes pertencia. E ela mesma fazia questão de deixar isto bem claro.
Seus quinze anos estavam chegando, e Dora queria dar um baile para comemorar o aniversário da filha. Julio dissera que achava que Aurora jamais concordaria, mas para surpresa de ambos, ela assentiu com a cabeça e até sorriu para eles, coisa que raramente fazia. Era sempre fria, polida e reservada.
Num arroubo de deslumbramento, Dora levantou-se do sofá e começou a discursar sobre um possível modelo de vestido, sapatos, maquiagem, qual o melhor cabeleireiro, etc, enquanto Aurora e Júlio assistiam. Já estava decidindo sobre o melhor serviço de buffet, quando a voz firme e melodiosa de Aurora interrompeu-a: “Mãe, já desenhei o modelo do meu vestido. Eu mesma vou fazer minha maquiagem, eu mesma escolherei os meus sapatos. Mas pode ficar com a comida”.
E assim foi feito.
Aurora fez questão absoluta de manter seu quarto muito bem trancado para que ninguém visse seu vestido.
Finalmente, no dia do baile, após mais de duas horas de atraso, quando todos os convidados já haviam chegado e a festa acontecia, subitamente, todos os olhares dirigiram-se para o alto da escada. Como se algo os atraísse para lá.
Aurora deixou-se ser admirada por alguns instantes, enquanto percorreu rapidamente os rostos espantados de todos os convidados.
Ela vestia um longo verde-musgo, muito justo na cintura cuja saia se abria em várias camadas esvoaçantes de diferentes tons de verde. Calçava um par de sandálias prateadas, cravejadas de pedras brancas e brilhantes. Seus cabelos estavam mal-presos num coque selvagem que dava-lhe um ar de pura sensualidade e fazia com que ela parecesse bem mais velha. Suas luvas iam até o cotovelo, e a maquiagem muito leve era apenas ressaltada à volta dos olhos, onde ela atreveu-se a usar várias camadas de rímel preto e delineador preto, que emprestavam-lhe um ar de puro mistério.
Silêncio absoluto. Uma valsa começou a tocar, e ela finalmente desceu vagarosamente as escadas. Como num transe, as pessoas formaram uma roda à sua volta enquanto um cavalheiro desconhecido surgiu da multidão e rodopiou com ela uma valsa perfeita. Os dois se olhavam fixamente, como se nada mais existisse.
Quando a música acabou, o cavaleiro afastou-se, segurando apenas a ponta dos dedos de Aurora, fez-lhe uma reverência e, encaminhando-se para a porta do salão, deixou a festa sem olhar para trás.
Julio estava humilhado e enfurecido, pois sabia que a valsa num baile de debutantes era sempre dançada com o pai. Quem era aquele sujeito? Correu atrás dele, mas quando chegou na porta, ele já tinha desaparecido. Ao mesmo tempo, Dora perguntou à filha de quem se tratava, mas Aurora sorriu e disse não saber. Logo, os convidados começaram a dançar e conversar. Tudo voltou ao normal.
Num dos cantos do salão, um jovem observava tudo. Seu nome era Plínio, e era mais um dos fãs que cultivavam um amor platônico por Aurora. Plínio tinha dezessete anos e tinha sido colega de escola de Aurora, mas ela jamais lhe dera atenção ( como jamais dava atenção a quem quer que fosse). Mesmo assim, ao invés de desistir, como os outros, Plínio decidira que faria com que Aurora se apaixonasse por ele. Já notara que ela desprezava tudo e todos que pudessem ser considerados comuns. Para chamar-lhe a atenção teria que fazer algo inusitado. Se a cortejasse demais ou se mostrasse muito submisso, estaria automaticamente descartado.
Precisou arquitetar muitos planos diferentes, que após analisados foram sendo desconsiderados um a um. Mas, naquela noite, Plínio estava muito seguro do que faria.
Observou Aurora cuidadosamente, e quando ela se afastou para tomar ar no jardim, Plínio seguiu-a.
A lua cheia iluminava o caminho entre os arbustos . Aurora caminhava vagarosamente, quase sem fazer ruído, parando de vez em quando para aspirar o ar da noite. A natureza era a única coisa que parecia despertar-lhe alguma emoção. Ela pensava no estranho que dançara com ela, o quanto ele era fascinante. E ele podia toca-la sem que ela se sentisse incomodada, como quando era tocada por outras pessoas.
Súbito, Plínio surge na sua frente, ficando em seu caminho. Aurora pareceu assustada por um momento, mas rapidamente recuperou-se. Tentou desviar-se para o outro lado, mas Plínio bloqueou-a novamente. Quando ela percebeu o que ele pretendia, ainda tentou fugir mais uma vez, mas ele foi mais rápido e abraçou-a, colando sua boca na dela, num beijo sufocante. Ela lutou por alguns segundos, mas em vão. Plínio sentiu-a acalmar-se em seus braços e parar de lutar, e começou a achar que tinha ganho a batalha. Mas apesar de estar muito quieta, Aurora não correspondia ao beijo. Ele abriu os olhos por um momento e deu com os olhos verdes e faiscantes de Aurora presos no dele. A total falta de emoção dentro daqueles olhos fez com que ele se afastasse, assustado.
Então, ela lentamente, disse-lhe: “eu quero que você morra”. Depois, afastou-se correndo, de volta para o salão. Plínio voltou para a festa e procurou por ela para desculpar-se, mas ela ignorou-o por completo. Ele então saiu e foi para casa, onde bebeu uma garrafa inteira de conhaque.
Na manhã seguinte, quando acordou, sentia-se muito mal. Sete dias depois, Plínio faleceu, sem nunca mais dizer nenhuma palavra ou voltar a abrir os olhos novamente. Simplesmente entrou em coma profundo, perdendo os sinais vitais aos poucos, sem que os médicos tivessem tido tempo de fazer alguma coisa.
Quando Aurora soube da morte de Plínio, recolheu-se em seu quarto. Dora e Julio acharam que ela estava sofrendo por causa de Plínio, o que na verdade até lhes dava algum alívio, porque poderia ser considerado sinal de alguma emoção naquele coração frio de Aurora.
Mas ela não estava sofrendo. Apenas se perguntava se tinha sido realmente ela quem tinha feito aquilo. Deitou-se na cama de braços abertos, e riu, riu muito, sentindo um estranho poder crescendo dentro dela.
Mas logo pareceu perceber a extensão do que ela supostamente tinha feito. E o riso apagou-se de seu rosto.
Dora estava levando as compras pelo estacionamento do supermercado até o carro. Tinha pressa, pois estava atrasada para o jantar.
Estava procurando as chaves do carro dentro da bolsa, quando percebeu que estava sendo observada. Ergueu a cabeça e viu , a alguns metros, a forma de um homem desenhada no crepúsculo pelas luzes que vinham do supermercado atrás dele. Não conseguiu, logo de início, ver seu rosto.
Quando ela se acostumou à claridade, viu que o homem era o mesmo que tinha dançado com sua filha na festa. Ele começou a caminhar vagarosamente em sua direção. Tomada pelo pânico, achando que se tratava de algum maníaco, Dora enfiou a chave na fechadura, entrou correndo no carro e deu partida. Saiu cantando pneus e quase atropelou o homem. Quando chegou em casa, percebeu que tinha deixado as compras no supermercado. Mas estava assustada demais para voltar.
O que ele queria? Será que estariam sendo perseguidos por algum maníaco?
Quando Julio chegou em casa, logo depois dela, antes que ela pudesse dizer-lhe qualquer coisa ele apareceu na porta da cozinha carregado de pacotes do supermercado, reclamando que ela tinha esquecido de levar as compras para dentro de casa. Dora, perplexa, perguntou onde ele tinha encontrado os pacotes, e Julio disse que estavam na porta de casa.
Em pânico, Dora contou a Julio o que tinha acontecido no estacionamento do supermercado. Julio ouvia tudo com atenção. Achava que deveriam chamar a polícia, caso vissem o tal homem novamente.
Quando Aurora chegou de sua caminhada, perguntaram-lhe novamente sobre o homem e ela afirmou que jamais o tinha visto antes da festa, ou depois. Apenas dançara com ele por pensar tratar-se de algum amigo de Julio, ou achou que fosse algum bailarino ou ator contratado pelo buffet. Aconselharam-na a ficar bem longe dele, caso o visse novamente.
Naquela noite Dora teve muitos pesadelos. Corria por ruas desertas e escuras, sendo perseguida pelo tal homem. Quando pensava que ele tinha desaparecido, ele reaparecia em sua frente, dizendo que precisavam conversar.
Em seu quarto, Aurora passou a noite pensando no estranho. Podia sentir seus braços à volta dela, a sensação de segurança que ele lhe transmitira. Sabia que, fosse quem fosse, ele jamais lhe faria mal. Desejou ardentemente encontrar-se com ele novamente.
Foi então que teve um sonho. Ele aparecera, e disse que viria busca-la em breve. Também disse-lhe para ter muito cuidado com aquilo que desejava a si própria ou às outras pessoas, até que ela aprendesse a controlar seu poder. Aurora perguntou a que poder ele se referia, mas ele não respondeu, e ela acordou.
Na manhã seguinte, resolveu testar esse poder, ver até onde ele ia. Mas como?
Da janela de seu quarto, observava uma mendiga que tentava achar comida em uma lata de lixo. Não por piedade, apenas por curiosidade, desejou que a tal mulher encontrasse uma carteira cheia de dinheiro. Continuou observando, fixando seu pensamento no que desejava que acontecesse, e atônita, viu quando a mulher enfiou novamente a mão no latão de lixo e saiu segurando uma carteira. A mendiga olhou para os lados, abriu a carteira e retirou dela várias notas, que enfiou no bolso rapidamente, jogando novamente a carteira no lixo e se afastando.
Aurora vestiu-se rapidamente e resolveu ir até a casa de Juliana, uma ex-colega de escola que tentara ser sua amiga várias vezes. Até saíram juntas algumas vezes, conversava com ela mais do que com os demais e tinha a impressão de que Juliana era, realmente, menos estúpida que os outros, mas Juliana começou a sufoca-la com conversas sobre namorados que para Aurora não faziam nenhum sentido. Mas agora precisava de uma cobaia.
Não tocou a campainha. Ficou semi-escondida atrás de uma árvore, e quando viu que Juliana saía de casa, começou a andar na calçada na direção contrária, provocando um “encontro casual”. Elas se cumprimentaram ( sem beijos ou abraços, pois Juliana já notara que Aurora não apreciava esse tipo de coisa) e conversaram banalidades por alguns minutos. Logo Aurora perguntou à Juliana como estavam seus namoros, e ela , tornando-se triste, disse que acabara de terminar o namoro com um rapaz pelo qual ainda estava muito apaixonada.
Aurora perguntou-lhe se ela gostaria que ele voltasse para ela, mas Juliana afirmou que ele nem pensava mais nela e que fingia que não a via quando os dois se cruzavam. Aurora afirmou que eles voltariam a namorar e que ele se apaixonaria tão fortemente por ela que a pediria em casamento. A moça riu tristemente. Disse que isso seria impossível, além do mais, eram jovens demais para se casarem. Depois, despediram-se, com a promessa de Juliana de avisar Aurora caso isso acontecesse.
Naquela mesma noite, uma Juliana perplexa, ao telefone, conta a Aurora que tinha sido procurada novamente por seu ex-namorado, que dizia-se louco por ela.
Bem, o que aconteceu depois disso é que , meses depois de juras de amor sem fim, frases melosas e beijos apaixonados, Juliana viu-se cheia do tal rapaz. Não agüentava mais nem ouvir sua voz, e terminou o namoro com ele, que passou a persegui-la todos os dias. Ela teve que avisar à polícia, pois ele começou a aborda-la insistentemente até mesmo durante a noite, ligando para sua casa de madrugada. Após ser advertido pela polícia para deixar Juliana em paz, o pobre rapaz, doente de amor, suicidou-se tomando veneno.
Ao saber desta parte da estória, Aurora lembrou-se do conselho que lhe fora dado durante o sonho.
Numa manhã fria e chuvosa, logo depois de Julio sair para o trabalho, Dora estava em casa sozinha ( Aurora tinha ido fazer uma viagem à Itália, presente que pedira em comemoração ao seu Décimo sexto aniversário) quando a campainha tocou. Mal pode acreditar quando abriu a porta e viu novamente o tal estranho diante de si.
Ele não tinha uma aparência ameaçadora, pelo contrário, aparentava quarenta anos de idade, muito bem vestido, bonito, aliás, muito bonito, e educado. Pediu para entrar, e ela serviu-lhe uma xícara de chá. Pelo menos agora ela saberia o que ele queria deles e de sua filha. De repente, Dora lembrou-se que estava enrolada em seu roupão velho, calçava chinelos e tinha os cabelos presos em um rabo de cavalo sem graça. Sentiu-se envergonhada por sua horrível aparência diante de alguém tão distinto.
O tal homem pediu a Dora que relaxasse e prestasse muita atenção, pois tinha uma estória para contar que parecia incrível demais para ser verdade, mas que era real. Ele colocou a xícara sobre a mesinha, recostou-se no sofá e começou. Mas antes pediu-lhe que não o interrompesse, deixando perguntas para depois.
Disse que vinha de muito longe, um lugar que ela não conhecia. Seu nome não era importante, pois ela jamais conseguiria pronunciá-lo. Mas estava de volta para resgatar Aurora.
“Lembra-se da viagem que fez a Stonehenge logo depois de saber de sua doença, Dora? E da promessa que fez quando chegou lá?” A mente de Dora parecia encoberta por uma nuvem. Lembrou-se de quando descobriu que tinha leucemia, aos vinte e dois anos de idade. Lembrou-se do medo e da impotência que sentiu diante de sua doença, da viagem que fez para realizar um velho sonho ao descobrir que teria apenas poucos meses de vida , e da manhã cinzenta, em Stonehenge, quando lembrou-se de histórias que tinham sido contadas pelas pessoas locais sobre fadas e seres elementais, lendas... em seu desepêro, Dora havia formulado uma prece, dirigida aos espíritos que habitavam aquelas pedras. Prometera dar seu primeiro filho às fadas, caso elas a curassem de seu mal.
Realmente, ao voltar da viagem, os novos exames revelaram que ela estava curada. Mas, ao mesmo tempo, que jamais poderia ter filhos.
Dora voltou ao presente, lentamente. Engraçado, ela nunca mais tinha se lembrado daquilo, até agora. Foi quando o homem disse: “ Você não tinha se lembrado, e nem poderia, a não ser em circunstâncias especiais. Porque isso lhe aconteceu em uma outra vida”. O choque das palavras dele a atingiram em cheio. Ele estava certo, aquilo fazia parte de uma outra vida. E ela viu a si mesma com um rosto diferente, trajes antigos... e seu nome não era Dora. Mas não conseguia lembrar-se claramente...
“Não importa. Vim reclamar sua promessa. Aurora não é totalmente humana, não pertence a vocês”. Ele percebeu a relutância de Dora em concordar que Aurora fosse levada. Acrescentou: “ Deixar um ser elemental vivendo no mundo dos humanos é desastroso sempre. Temos energias diferentes, vibramos num campo magnético diferente. O que para vocês é considerado criminoso ou anti-ético não tem o mesmo significado para nós. Nossos padrões de moral são diferentes. Vivemos em um mundo diferente. Você não se lembra de que, quando bebê, Aurora não gostava de ser tocada? E que mesmo nos dias de hoje ela nunca teve namorados? Quando tocados por humanos, nós absorvemos energias nocivas a nossa espécie, da mesma forma que transmitimos energias nocivas aos humanos se permanecermos com eles durante muito tempo. Se Aurora não vier comigo, ela poderá causar danos irreparáveis ao mundo de vocês. Já causou duas mortes. E se for forçada a permanecer aqui por mais tempo do que lhe for permitido ela morrerá”. Dora queria falar, mas não podia sequer mover-se. O homem levantou-se e caminhou até a porta, mas antes de sair, ele voltou-se e disse: “ Quando ela voltar de sua viagem, eu estarei aqui para leva-la. E não se iluda; Aurora não ama vocês. Ela não é capaz de sentir nada pela espécie humana. Há milhares de anos atrás, vocês usaram nossos poderes em seu próprio benefício egoísta, para depois nos condenarem ao esquecimento, dizimarem-nos em fogueiras, destruindo nossa religião. Isso jamais poderá ser esquecido, tornou-se algo que já nasce na alma de cada ser elemental. Ela vai querer vir comigo. Ela odeia este mundo”.
Logo depois que o estranho saiu, Dora conseguiu mover-se novamente. Mas sentia-se cansada, como se ele lhe tivesse exaurido as forças.
Contou tudo a Julio à noite, num estado à beira da histeria. O pobre homem pensava que sua mulher estava enlouquecendo. Mas Dora tanto chorou e suplicou-lhe que estava dizendo a verdade que ele acabou concordando em vender a casa onde moravam e mudar para um outro lugar, distante dali. Teriam que fazer tudo em vinte dias, pois então Aurora estaria em casa novamente. Na verdade, Julio estava mesmo pensando em morar no campo depois de sua aposentadoria, que aconteceria em breve. Caso a mudança não significasse nenhuma melhora para sua mulher, ele a levaria a um médico.
Conseguiram vender a casa rapidamente, pois era um imóvel muito bem-localizado. Escreveram para a filha comunicando-lhe seu novo endereço.
Quando Aurora abriu a carta e leu as novas notícias, algo dentro dela endureceu. Sabia que aquela mudança, de alguma forma, tinha alguma coisa a ver com ela, e não era de seu agrado.
Quando o dia de seu retorno chegou, Julio foi busca-la no aeroporto. Ela recebeu-o com a frieza habitual, encolhendo-se toda nos braços dele, como se o abraço do pai a ferisse. Ele contou-lhe que sua mãe não estava muito bem, por isso decidira vender a casa e mudar para o campo. Era uma linda casa, bem próxima a uma floresta, com riachos e muitas árvores. Notou alguma satisfação no rosto da filha ao mencionar a floresta. Animais e plantas eram as únicas coisas que Aurora parecia realmente apreciar.
Quando Aurora chegou, foi efusivamente abraçada e beijada por Dora, e encolheu-se toda, sentindo tanta repugnância por aquela mulher histérica que
Acabou tendo que afasta-la energicamente. Aliás, parecia-lhe que a cada dia, nos últimos meses, sua aversão pelas outras pessoas aumentava cada vez mais. Tinha medo do que aconteceria quando ela chegasse a um nível insuportável.
Aurora parecia passar cada vez mais tempo na floresta. Apenas ia em casa para dormir e fazer suas refeições. Estava ficando cada vez mais pálida e emagrecia a olhos vistos. Seus pais a tudo assistiam, sem saber o que a fazia tão infeliz.
Quando sugeriram que ela os acompanhasse a um consultório médico, a simples lembrança de mãos tocando-a e examinando seu corpo causaram-lhe arrepios. Disse-lhes que estava bem, e que estava emagrecendo porque estava fazendo dieta e caminhando mais.
Mas Aurora tornava-se cada vez mais nervosa e agressiva, tanto verbal quanto fisicamente. Tinha esmurrado um garoto no meio da rua diante de Dora, apenas porque ele disse a ela que a achava bonita. E foi muito difícil controla-la, pois ela parecia ter uma força desproporcional à sua aparência frágil.
Sempre tinha sido vaidosa e preocupada com a aparência pessoal, mas ultimamente tomava poucos banhos e só vestia jeans velhos e camisetas de malha, às vezes sujas e desbotadas. Seus cabelos, antes tão sedosos, eram apenas fios rebeldes espalhados aleatoriamente em volta de um rosto macilento e sem vida. Mesmo assim, sua beleza continuava inalterada, era incrível.
Quando Aurora esbofeteou uma menininha que acidentalmente pisou em seu pé no supermercado,Julio decidiu leva-la a um psiquiatra, a quem ela imediatamente tentou agredir, precisando ser contida por dois enfermeiros. O médico disse que ela deveria ser internada em uma clínica de repouso para descobrirem o motivo de sua histeria.
Enquanto isso Dora também ficava cada vez mais doente, fraca, e mentalmente perturbada. Às vezes entrava em casa correndo, trancando portas e janelas, dizendo a Julio que tinha visto as fadas no jardim e que elas tinham vindo para pega-la... queriam saber onde Aurora estava. Tudo isso fazia com que Julio envelhecesse cada vez mais rapidamente.
Um dia, Dora estava sentada no jardim com Julio, quando apontou para uma árvore próxima e, agarrando o braço do marido, gritou: ‘são elas novamente!” Julio seguiu seu olhar e, incrédulo, pode ver uma sombra furtiva esconder-se rapidamente atrás da árvore. Pensou tratar-se de algum esquilo ou outro animal, mas ao levantar-se para olhar atrás da árvore, deu com um ser de aparência inexplicável, cujos olhos verdes e maldosos fitaram os seus antes dele voltar-lhe as costas e desaparecer na floresta.
Dora gritava: “vê? Eu não estou louca!” Mas tudo o que Julio conseguia pensar é que ele também estava enlouquecendo.
NA clínica, Aurora era mantida sedada a maior parte do tempo. Quando seus pais vinham visita-la, encontravam-na geralmente encolhida em algum canto do quarto, abraçada aos joelhos, olhar perdido no nada. Nem notava a presença deles.
Dias depois, o homem reapareceu. Dora e Julio estavam jantando, quando ele simplesmente abriu a porta da frente e entrou. Novamente, Dora sentiu que seus movimentos estavam ficando cada vez mais difíceis, e também percebeu que Julio passava pela mesma coisa. O estranho puxou uma cadeira , de modo que seu rosto pudesse ser visto por Julio e Dora ao mesmo tempo, e disse: “Tirem ela de lá. Ela está morrendo. Eu não posso ir até lá, não conseguiria manipular aquelas energias psíquicas ruins. Ela só o consegue porque foi gerada por um humano, mas se ela ficar naquele lugar por mais tempo, ela vai morrer. Tirem Aurora de lá! Vocês humanos vivem pregando o altruísmo e a força do amor, mas não conseguem fazer nada a favor de alguém a quem vocês dizem que amam? O amor que vocês tem por ela não é maior que sua covardia e seu egoísmo? Tirem Aurora de lá e deixem-na na clareira perto do lago amanhã à noite. Espero que não seja tarde demais.”
Quando ele se foi, Dora e Julio se abraçaram, e decidiram fazer o que seria melhor para Aurora. No dia seguinte, foram até a clínica e disseram que queriam levar Dora para casa.
O médico olhou para eles, incrédulo, dizendo que não poderia libera-la. Ela era agressiva e perigosa. Julio segurou-o pelo colarinho e disse: “ela é nossa filha e queremos tira-la daqui agora!” Intimidado, o médico pediu-lhes que o acompanhasse. Explicou que Aurora estava sob o efeito de sedativos, e que quando o efeito passasse, não poderia responsabilizar-se pelo que ela faria. Nem eles o poderiam. Julio pegou a filha nos braços e apesar dos protestos do médico, levou-a para fora, seguido por Dora. Ao colocarem-na no banco do carro, perceberam que os cabelos de Aurora estavam ficando brancos.
Entardecia, e fazia muito frio. Julio dirigiu o carro pela trilha na floresta, até chegarem ao lago . Lá, ele abriu a porta e carregou Aurora nos braços, colocando-a deitada no chão, junto à margem.
Voltou ao carro e sentou-se ao lado de Dora, que parecia mortificada de tristeza. Ficaram esperando para ver o que aconteceria. Após algum tempo, viram Aurora se mover. Ela abriu os olhos, sentou-se e levou à mão à testa, como se sentisse dor. Ao ver o carro, seu olhar fixou-se neles, e ela murmurou: “mãe? Pai?” Dora e Julio perceberam que ela o fizera com uma doçura que nunca tivera antes ao referir-se a eles. Mas então perceberam que não era a eles que ela se referia.
Por detrás do carro, surgiu um casal. Eles nunca conseguiram ver seus rostos, mas viram quando Aurora levantou-se e correu para eles, abraçando-os e sendo abraçada por eles com alegria. Era como se ela estivesse voltando finalmente para casa.
Os três entraram na floresta abraçados. Aurora não olhou para trás.
Dora e Julio envelheceram precocemente, mas ainda viveram muitos anos no chalé ao lado da floresta. Na pequena cidade, eram considerados um casal de velhos que enlouquecera depois que a filha os abandonara. Todos os consideravam meio-lunáticos, principalmente quando começavam a contar histórias sobre a filha que os visitava certas noites, cantando e dançando em seu jardim sob a luz do luar com as outras fadas.
Em noites de lua cheia, tornou-se hábito para algumas pessoas ficar escondidas na floresta, próximas à casa dos velhos, e algumas delas juram ter visto uma linda moça de cabelos brancos dançando no jardim.