Mil Faces - Capítulo 4
O carro corria em alta velocidade. Olhou para o velocímetro que marcava 100 km/h, em seguida olhou para o homem que estava ao seu lado, o mesmo esbanjava um sorriso de canto de rosto enquanto os olhos se mantinham atentos à avenida. Horácio ficou tentado a pedir que parasse e andasse mais devagar, mas não foi preciso.
O outro veículo passou raspando o para-choque do carro em que os dois se encontravam no momento em que passavam um cruzamento. Marcos soltou um grunhido e depois diminuiu a velocidade.
— Quase hein, cara. — Ele disse dando um tapa no ombro de Horácio. — Mas o Marcos aqui não vai deixar o seu novo amigo morrer.
Ouvir o nome dele ainda era doloroso. Marcos costumava ser o nome do homem que havia sumido de casa quando ele ainda era uma criança e seu nome ainda era Mário. Foco, foco. Seu nome é Horácio e esse é o Marcos, filho da dona da pousada. Ele pensou.
— Você me assustou,... Marcos.
— Qual o problema, cara? — O olhar de canto dele também o incomodava, não tinha ido completamente com a cara do sujeito que o arrastava para onde quer que estivessem indo. — Olha só essa ponte aqui separa o Centro da Zona Leste. Hoje é sexta, cara. Vamos nos divertir!
Horácio inclinou o rosto para fora do carro vendo o rio que passava em baixo da ponte que atravessavam. Ele já havia estudado aquilo em Geografia, dois rios cortavam Teresina...
— Rio Parnaíba?
— Não, esse é o outro. Esse aqui é o Rio Poti. Ele está meio seco, mas no começo do ano ele pode encher de novo. Depende das chuvas.
Chuvas pareciam ser raras ali, muito raras.
— Estamos longe?
— Não, já estamos chegando... Só mais essa curva... E essa... E pronto!
Desceram do carro em frente a uma boate com um nome que parecia estar em espanhol e que Horácio nunca conseguiria pronunciar corretamente. Olhou em volta e na porta haviam diversas mulheres com vestidos muito curtos e com copos de plástico na mão, cabelos bem lisos, bolsas em um dos braços e sorrindo umas para as outras também vários caras vestidos com camisas pólo, calças apertadas e sapatos bico fino. Parecia que todos estavam indo à uma apresentação de dança onde deveriam estar com a mesma roupa.
O que diabos eu estou fazendo aqui? Ele se perguntou, mas antes que pudesse responder Marcos o arrastou para dentro da boate. Enquanto caminhavam, Marcos falava coisas no ouvido de Horácio, mas não entendia nem metade do que ele dizia. Tudo que queria era dar o fora dali. Assim como do lado de fora, lá dentro todos pareciam estar ensaiados para fazer a mesma coisa.
Tomou alguns copos de uísque, jogou papo fora com uma loira que se apresentou para ele dizendo-se chamar Jéssica, mas não conseguiu nada de produtivo da conversa. A não ser vontade de mandá-la ir embora. Procurou Marcos, mas era difícil encontra-lo ali. Olhava para o relógio de cinco em cinco minutos.
As pessoas muito perto umas das outras, a música eletrônica alta demais, o calor que emanava de cada um que estava ali, o cheiro de suor misturado com perfume. Tudo aquilo já o estava deixando louco. Apressou-se em sair, tombando em um ou outro e deixando cair o copo de um homem que dançava perto da saída. Notou o olhar dele procurando quem havia derramado a sua bebida, mas nesse momento Horácio já estava fora de vista.
Respirou profundamente o ar da madrugada. Ainda havia algumas pessoas ali fora. Atravessou a rua e se sentou na calçada oposta ao lugar. Parecia que aquela era a parte rica da cidade, só passavam carros importados e nenhum modelo popular em frente à boate. Era o tipo de lugar que ele não costumava frequentar. Pensava em toda aquela gente como as pessoas que não eram necessárias na sociedade, ele costumava tirar daquelas pessoas, só que ao invés de dar aos pobres como o herói faria, ele gastava tudo para tentar esquecer o passado.
O som abafado que vinha da boate não incomodava tanto do lado de fora e não o impediu de ouvir os passos que cruzavam a rua em sua direção. Uma garota com os cabelos vermelhos vinha em sua direção cambaleando enquanto segurava os sapatos em uma das mãos e a bolsa presa na outra, usava um vestido da cor dos cabelos, era atraente e fez com que Horácio esquecesse dos devaneios por um momento. Quando ela chegou mais perto ele pensou em sair dali, mas não o fez.
Sentou-se ao lado de Horácio com as pernas abertas, segurando o rosto com as duas mãos enquanto os cotovelos se apoiavam nas pernas.
— A vida é uma merda.
Ele não sabia o que responder, a vida era realmente uma merda, ou pelo menos tinha sido até agora para ele. Porém um fio de esperança ainda existia no coração do homem sentado ali, ele esperava que pudesse tomar as rédeas da vida um dia, mas não queria desapontar a garota.
— É verdade.
Ela olhou pra cima com os olhos negros cheios d’água, encarando-o com um olhar de incompreensão.
— Quem é você? Por que falou comigo?
Ao redor do negro nos olhos dela um vermelho enorme estava destacado onde deveria ser branco. Ele não precisaria ser um especialista para saber que ela estava drogada. Ele já ia respondê-la quando a mesma vomitou no chão. Tomou cuidado para que não acertasse os seus tênis e deu um sorriso à garota.
— Abaixa a cabeça e coloca pra fora que vai melhorar.
— Nada vai melhorar — Ela disse, passando as costas da mão sobre a boca. — Você não sabe de nada.
— Sei que você está muito mal. Está sozinha?
Ela gesticulou que sim com a cabeça no exato momento Marcos irrompia da boate abrindo os braços e gritando o nome de Horácio.
— É melhor eu ir.
Ela tentou se levantar, mas caiu com o rosto no chão. Horácio a ergueu com as duas mãos e a segurou num abraço forte contra o seu corpo, pegou seu rosto com uma das mãos para que olhasse nos olhos dele e disse:
— Qual o seu nome?
— Meu nome... Meu nome é Rafaela.
Olhando nos olhos dela sentiu pela primeira vez que alguém se parecia com ele. Talvez fosse só a expressão perdida nos olhos, ou a forma como ela disse seu nome, mas ele havia sentido.
— Você vai vir comigo, Rafaela.
— Não... É perigoso.
Não houvera mais tempo de ela dizer nada antes que desmaiasse em um sono profundo, colocou-a no carro e Marcos não apresentou nenhuma queixa ao fato de ela ir com eles para a pousada.
— Eu dirijo. Você está muito bêbado. — Marcos também não reclamou daquilo.
Não entendeu o que ela queria dizer com ser perigoso levá-la, mas os poucos princípios morais que ele ainda tinha diziam que não deveria deixá-la solta sozinha na cidade, o problema é que ele não conseguia ver por trás da boa ação. A mulher vestia e ao mesmo tempo parecia ser o próprio vermelho.
Vermelho sangue.