Mil Faces - Capítulo 3
Era uma sexta-feira e da varanda da pousada Horácio conseguia ver os estudantes andando em rumo às suas casas. O taxista, que agora sabia se chamar Manuel não havia lhe dito que por ali existiam diversas escolas particulares, uma ou outra vez o homem via de cima rostos que lembravam suas outras vidas e por mais que fosse doloroso era um exercício que reforçava sua nova identidade. Naquele momento ele era Horácio e apenas Horácio. Formado em Tecnologia da Computação por uma faculdade qualquer de Santa Catarina que ele nem lembrava o nome, mas estava tudo organizado em sua mala. Identidade, diploma, perfil profissional, carteira de motorista.
O Relógio marcava meio-dia e quarenta de cinco minutos. Estava na hora. Pegou o telefone.
— Como é seu nome hoje? — A voz grossa e familiar falou do outro lado da linha.
— Meu nome sempre foi Horácio.
— Você está ficando cada vez pior com isso, amigo.
Do outro lado da linha a voz soltava uma gargalhada sonora que sempre o deixara com o coração apertado sem motivo algum.
— Você já sabe onde eu estou?
— Não, só um minuto... — Houve o barulho de um plug do outro lado da linha e depois um som de teclas sendo apertadas rapidamente. — Cara, o que você está fazendo nesse fim de mundo?
— Apenas estou aqui. Como vão as coisas? Algo novo?
— Tem coisa grande, bem grande. E você deu sorte, você está bem perto do cheiro do queijo. Já ouviu falar das plantações de soja que existem ao sul do Piauí?
— Estou ouvindo agora...
— Então você vai querer saber o que a gente vai fazer. Como você foi parar aí, cara? Isso não faz sentido, o que te levou a ir?
— Apenas vim. Você sabe. Rodoviárias, passagens. Toda essa burocracia.
Intuição era a resposta correta, mas aquilo feriria tanto o seu ego quanto o ego do homem com quem falava.
Não demorou pra que ele explicasse tudo que ele deveria saber. O esquema todo envolvia muita gente, plantações, muito dinheiro, satélites, tecnologia de ponta, políticos. Talvez fosse grande demais para ele, ou talvez ele só quisesse fugir daquela vida, por que a resposta que o homem ouviu foi um não suave que causou um silêncio que incomodou Horácio por um tempo.
— Pense bem, amigo. Não se ouve uma proposta dessas todos os dias. Ainda vai demorar pra que tudo comece, posso esperar uma ligação. Quem sabe assim você possa voltar pra casa.
— Não tenho casa.
Horácio desligou o telefone.
Ouviu um grito chamando para o almoço e desceu as escadas da pousada até chegar à cozinha. A dona do estabelecimento era uma mulher gorda, mas que carregava um rosto bonito. Ele nunca perguntara, mas sabia que a situação dela derivava de alguma decepção. Ela não tinha marido, talvez fosse isso.
— A comida está pronta, meu bem. Hoje é porco assado.
Ele poderia reclamar do calor que fazia na cidade, mas nunca reclamaria da comida que era servida ali. Ficava grato a Manuel por tê-lo levado até aquele lugar todas as vezes que ia fazer uma refeição.
Além dele havia uma garota do interior que morava ali a cerca de um ano por conta dos estudos. Não devia ter mais de Dezesseis e sempre lhe dava um sorriso quando o via, tinha cabelos negros na altura do pescoço cortados de uma forma que enchiam os olhos de Horácio, seus olhos eram verdes como as folhas de uma árvore na primavera. Um senhor de idade que ele nunca vira até agora também almoçava ali naquele dia junto com uma mulher que parecia ser sua filha.
Enquanto Horácio comia, Maria, a dona da pousada, trouxe um refrigerante bem gelado. Não havia demorado pra perceber que apesar de se dizer que a bebida típica da cidade era a Cajuína a maioria das pessoas preferia tomar refrigerante das grandes corporações ao invés da sua própria bebida. Ela serviu um copo e se sentou ao lado de Horácio.
— Meu bem, eu sei que não é daqui e não quero abusar da sua gentileza. Porém, hoje meu filho vai chegar de viagem e como você sabe ainda estamos em outubro e quem não está estudando, está trabalhando. Ele gosta muito de sair, mas todos os amigos estão fora, seria muito gentil se pudesse sair com ele hoje à noite. Não se preocupe com dinheiro...
— Tudo bem. — Ele disse, interrompendo-a. Apesar de ser calado a maior parte do tempo precisava se distrair um pouco e aquela parecia ser a oportunidade perfeita.
— Quando ele chegar eu lhe aviso. O nome dele é Marcos.
O nome ecoou em sua cabeça como o que havia escutado sete anos atrás.