Foi o Maior Sururu


 
Fantasias prontas, alegoria tinindo, a bateria afinada.
Só faltava mesmo começar a festa e, nem bem momo surgiu, trouxe com ele a explosão de gente fervendo a avenida. Bonito demais, na passarela todo mundo igual, nem rei, nem plebeu, só alegria e samba no pé. A mulherada tão nua vestida de penas e brilhos, os homens esquecidos de dívidas e futebol. Gente jovem, gente velha, gente pobre e enricada, com e sem boniteza, nem todos bons dançarinos, mas que importância há de haver se o show é justamente esse: todos são parte do todo e o todo é muito mais do que a soma de cada um.
No meio dessa folia, quase ninguém percebeu a sombra que cobriu o dia. Teve até quem gostou, pensando que fosse nuvem.
- Uma chuvinha agora, nem ia cair tão mal!
Mas não era nuvem, não. Ou era, mas não das que chovem, desaguam suas mágoas fresquinhas, trazendo fartura aos campos e alívio aos foliões, em meio ao calor dos festejos.
Era uma grande e gorda massa, escura e pesadona, que se espalhou na avenida, que invadiu as praias, que fez correr às janelas quem não é súdito de momo.
- É o fim do mundo!
- É o apocalipse!
- É praga da minha mulher que descobriu onde eu tô!
O bumbo silenciou, calaram-se os tamburins, ninguém sequer respirava, com medo do que viria.
Do meio da nuvem surgiu um ser fenomenal, se assemelhava à morte, com sua foice e o capuz, e na mão que nada levava, um dedo branco, ossudo, aparecia dos panos, apontando a multidão.
Foi a maior confusão, foi mesmo um Deus nos acuda. Quem pode fugir, fugia, quem não podia ficou, mas pôs-se logo de joelhos pra pedir perdão aos céus.
A criatura desceu como se tivesse asas e pisou muito de leve, no meio da multidão.
Ninguém era capaz de lhe lançar um olhar e se assim o fizesse não lhe enxergaria as faces, ocultas pelo capuz.
Foi quando um velho bêbado, que cochilava por ali, sentiu falta do barulho da maior festa do mundo e resolveu levantar. Olhou o ser sepulcral e com a voz engrolada, gritou ali de onde estava:
- Que fantasia legal!
Os que estavam em volta quase que sem querer resolveram conferir o que o ébrio mostrava e todos olharam pro intruso que para grande surpresa, deixou cair o capuz.
- É o Toni, o Gordo! - gritaram quase em uníssono, aqueles que o conheciam.
A resposta veio na forma de um rugido feroz e num grito gutural, ele fez todos gelarem:
- Nunca mais me chamem Gordo! Aquele tempo passou. Eu era muito feliz, banhudo, sobrava carnes, mas a gente dessas terras, cheia de hipocrisia, me fez acreditar que eu era um monstro dos mais horrendos, com todos os meus pneus e meus queixos sobrepostos.
Um folião mais ousado, retrucou timidamente:
- Mas, Toni! Você era o rei! Por mais de trinta anos, aquele trono foi seu. - e apontou pro novo Momo, que mesmo obeso e bem mole, num salto muito ligeiro, medroso, saiu do trono.
- No carnaval, eu era rei, recebia toda pompa. Mas, mal passavam os festejos e só asco era o que eu via.
O bêbado não resistiu:
- Asco bateu foi agora, vendo essa sua cara ossuda!
Foi o único momento em que ele demonstrou fraqueza, baixou os olhos, o rosto e tornou a vestir o capuz.
E então vociferou:
- Por causa do seu preconceito, gente sem coração, eu cometi mil loucuras. Recorri à medicina, ervas, drogas, academia, mas nada fazia efeito. E de tanto procurar, de tanto experimentar, cheguei até aquele que me tornou o que sou hoje.
- Quem? - o povo queria saber.
- Ele! - Toni respondeu, ainda mais sombriamente.
Tão sombriamente foi, que todo mundo entendeu. Todo mundo, não! De lá, engrolou o bebum:
- Ele quem?
E o povo, então, respondeu:
- O Mercador!
- O... Mercador... de... Almas? - o bêbado ficou são.
- Ele! - Toni respondeu, a voz solene e grave, como se estivesse no fundo de uma caverna.
O Mercador de Almas era um mago ligado às energias maléficas do universo e que havia se associado ao próprio demônio, tornando-se seu melhor negociador de almas, ainda muito mais mesquinho e cruel que seu mestre.
Toni, prosseguiu:
- Não é à toa que ele é o escolhido do senhor maior das trevas. Enrodilhou-me nefasto, em seus enredos e manhas e, não só me comprou a alma, como pagou com esta desgraça: continuar emagrecendo, vinte e dois quilos por mês, até sumir, até secar.
- Oooooooh! - respondeu a multidão.
- Acontece, meus amigos, que eu não vou sofrer sozinho. Se me envolvi com o mago foi por causa de vocês e, aproveitando um descuido dele, consegui roubar-lhe a Perfídia!
Começou um burburinho.
E o bêbado, sempre ele, quis saber:
- E o que é a Perfídia?
A multidão esperou a resposta, já que ninguém de lá sabia.
- Perfídia - disse Toni - é isto!
E tirou do manto um objeto que todos reconheceram:
- Um pandeiro!
- Não! Isto é a Perfídia! - respondeu Toni, com sua voz colossal.
- Pois, me parece um pandeiro. - disse um.
- Nem sabia que o Mercador era chegado num pagode. - disse outro.
- Parem! - gritou Toni. - Isto não é um pandeiro! É a Perfídia e vocês irão entender agora mesmo do que se trata.
E deu uma batucada que ressoou por todo lado, enquanto o ex-gordo Toni soltava uma tremenda gargalhada.
- Qual a graça? - as pessoas perguntavam.
- Vocês, gente hipócrita e superficial, agora irão entender o mal que o seu preconceito me fez. - disse Toni. - Todos vocês, sem exceção, irão se transformar, justamente, naquilo que mais desprezam.
E assim foi, assim se deu. Quem era machista, se transformou em mulher, quem era rico, virou pobre; lindo, ficou horrendo; esbelto, engordou; e quem era pobre, feio ou gordo, fez foi piorar mais, porque pior ainda que o preconceito é o auto-preconceito.
Foi o maior sururu.
Ninguém se aceitava, alguns cometeram suicídio, o carnaval acabou. Nenhuma alma se animava a dar sequer um tapinha no velho couro do tambor.
E Toni, rindo, prosseguia num baticum desenfreado, espalhando aos quatro cantos sua cruel maldição. Até que passou num beco, onde as crianças estavam, na maior folia do mundo, no bloco mirim folião.
No meio delas, feliz, rodava em tule rosada, a pequena Maribel, filha única muito amada, do ex-gordo, ex-momo, ex-bom: Toni, o mau!
Ao ver a sua pequena, ao alcance do pandeiro, Toni desesperou-se. Correu até ela, abaixou-se e nem respondeu ao sorriso. Depressa, lhe perguntou:
- O que você mais odeia neste mundo?
E ela, com voz doce e meiga, alheia a todo o rancor, toda a mágoa concentrada, em torno de seu velho pai, respondeu sem hesitar:
- A nada, lindo papai! Sou criança ainda, lembra? Para mim, tudo é normal, tudo é lindo, tudo é novo.
O alívio com a resposta da menina tão serena, não lhe permitiu sossego. Pois assim que ela falou, desapareceu no ar, do mesmo modo que as outras crianças que ainda balaçavam, ao som de uma antiga marchinha de carnaval.
Em meio ao seu desespero, ele logo entendeu. Se a cada um cabia aquilo que mais odiava, e as crianças, em sua inocência, nada podiam odiar, então era mesmo esperado, que nada elas virassem e foi isso o que ocorreu, todos sumiram de vez.
Toni cumpriu sua missão, sem saber a missão que tinha. Quando ofereceu ao mago sua alma enegrecida por anos de menosprezo, não houve nenhum interesse, por parte do Mercador. Para que pagaria o que fosse, por algo que já era seu? Mas viu a oportunidade de espalhar a miséria no meio daquela gente, no meio de toda a festa, espalhar a maldição. Deixou a Perfídia ao alcance, daquele coração vingativo, já sabendo o destino que a ela ele daria.
Sem Maribel, cheio de culpa, Toni seguiu seus dias, definhando, enlouquecido, até finalmente morrer.
O lado bom dessa história é que as gentes dali tiveram que conviver com a dor de ser tudo aquilo que mais odiavam no mundo. Com o tempo, foram aprendendo, e se aceitando melhor e, no carnaval seguinte, gordos, feios, pobres, aleijados e toda uma muito longa cadeia de rejeitados, fizeram a maior festança, como nunca vista igual.





Texto escrito para o Desafio Literário da Câmara dos Deputados
Contos de Fadas da Dinamarca - Etapa 3 - Opção 3