Mil Faces - Capítulo 2
Não passava do meio-dia quando o ônibus parou. Horácio via da janela o calor fazendo o horizonte tremular, se perguntava agora o que o tinha levado a ir àquela cidade. Nunca fora um homem intuitivo, em nenhuma de suas facetas, mas por algum motivo pensava ele que deveria estar ali e ao mesmo tempo se achava um idiota por pensar o mesmo.
Procurou pela bolsa e a colocou nas costas, ao sair sentiu a briza quente bater em sua cabeça raspada há pouco tempo. Ele não sabia, mas Caxias era bem próximo a capital do Piauí e o sono que planejara perpetuar durante a viagem foi por água a baixo. Achou um táxi facilmente.
— Novo na cidade? — O taxista perguntou enquanto ligava o taxímetro e dava um sorriso ao jovem que havia acabado de entrar no seu carro.
— Sim.
— Muito calor, não é? Não é querendo assustar, mas só vai piorar. — Olhou nos olhos do taxista pelo espelho retrovisor e notou as rugas nos olhos do idoso, sessenta, talvez setenta anos. Ele não saberia dizer. Carregava os cabelos curtos e brancos em cima, enquanto na altura da orelha o negro ainda se mantinha, os olhos verdes do senhor aparentavam saber mais do que um dia ele falaria e aquilo fez com que Horácio gostasse dele de cara. — Pra onde vai, amigo? — Ele perguntou desviando o olhar e pegando um óculos escuros que estava no porta-luvas.
— Não sei ainda. Você poderia me dizer um bom lugar para ficar?
— Poderia dizer vários, mas que tipo de lugar estamos falando?
— Uma pousada, hotel, mas algo pequeno. Algo que não chame atenção.
Mesmo por cima dos óculos escuros o rapaz conseguiu notar a desconfiança do taxista, mas essa ficou apenas na face, as palavras do homem foram bem mais acolhedoras.
— Rapaz, posso lhe levar em uma pousada perto do centro da cidade onde fazem o melhor frango cozido do Piauí e região. — Disse ele dando um sorriso.
— Então é para aí que vamos.
O caminho era tranquilo, fora dos vidros cobertos por fumê do táxi uma cidade bonita aparecia a visão de Horácio, não tumultuada quanto as de São Paulo e nem tão calorosas humanamente como as do Rio de Janeiro, apenas uma cidade como devia ser. Ele conseguia enxergar a paz em cada curva e em cada rua. Falava sobre tudo e ao mesmo tempo nada com o taxista, mas gostava do que dizia e da forma como o homem sorria, do jeito que apenas um idoso pode fazer.
Se lembrou de quando ainda não tinha barba perdido nas ruas do Rio de Janeiro, quando tinha de se virar de qualquer jeito para comer, de quando tinha que assaltar para ter pelo menos um pão pela manhã. Foram tempos difíceis, mas tempos de uma outra vida de uma outra pessoa e principalmente de um garoto, não de um homem feito como o que estava sentado naquele táxi agora. Mas olhar para o taxista e não se lembrar do homem que era conhecido apenas como “Avô” nas ruas cariocas era impossível.
Naquela época seu nome era apenas João e a cada dia as coisas ficavam mais difíceis. No começo se manter com o dinheiro que tinha levado de casa era fácil, mas ele foi esgotando e as formas de conseguir também foram. Desesperado havia tentado bater a carteira de um senhor aparentemente inofensivo, porém na hora que tentava executar o golpe foi surpreso por uma forte pancada no estômago. Quando olhou para o homem enquanto abraçava a própria barriga com as duas mãos viu que ele estava sorrindo, deu dois tapas nas costas do garoto e depois o pegou pelo braço.
— Vamos comer alguma coisa, garoto.
A lanchonete ficava na esquina de uma rua pouco movimentada, o velho pediu algumas coxinhas e empadas para o garoto e observou tomando um copo de cerveja enquanto o homem à sua frente matava a fome de dois dias.
— Como é seu nome, filho?
— Pode me chamar de João. — Ele falou olhando sem levantar a cabeça. Comia por desespero, mas o tempo que passara nas ruas tinha deixado-o calejado em relação a confiar nos outros. E aquele homem não parecia ser confiável. — E o seu?
— Pra você eu não tenho nome, sou apenas o avô. Já sei que você sabe bater carteira, pelo menos de gente idiota, mas me diga, garoto, o que mais você sabe fazer?
O garoto ficou olhando para o homem que chamava a si próprio de avô pensando no que poderia responder enquanto o sotaque dele ainda martelava na sua cabeça.
— Nada.
— Aí é que está, um rapaz sincero. Aposto que não tem casa, que não tem mãe e que não sabe se vai comer amanhã.
Eu tenho mãe. Ele pensou. Não, não tenho. Ela morreu quando me tornei Ninguém, e agora sou João. E João não tem mãe.
— Você está certo.
— Tenho muitas coisas para lhe ensinar então, garoto. Se estiver disposto não vai passar fome, vai ter onde dormir e com quem conversar, mas vai ter que trabalhar pra mim. Apenas seja um garoto inteligente e não faça besteira.
A memória foi embora tão rápido quanto a parada do carro, o taxímetro marcava o preço e Horácio tirou o dinheiro rapidamente da bolsa. Quando estava saindo do táxi, o homem segurou a mão dele e lhe passou um cartão.
— Talvez você precise dos meus serviços de novo, meu filho.
— Obrigado.
O táxi saiu devagar, o jovem se virou para a pousada e depois encarou o cartão nas mãos onde estava escrito.
“Manuel, taxista e empacotador.
Sempre a disposição do cliente.”
Em baixo havia o telefone do homem, ele não tinha certeza do que era ser um empacotador, mas sentiu o mesmo que havia sentido quando saiu de Caxias.Talvez pudesse precisar daquele número. Intuição. A maldita intuição.
Caminhou em direção à porta da pousada que se chamava "Cajuína Teresina" pensando se precisava de um taxista ou um empacotador, seja lá o que fosse aquilo.