Das mãos frias de um mero fantasma

O fantasma estava sentado na poltrona, em frente ao fogo crepitante da lareira. Um livro antigo repousava em suas mãos pálidas. Havia sido cuidadosamente retirado de uma das prateleiras da ampla biblioteca, porém agora ele tinha vontade de atirá-lo às chamas. Mantinha os lábios cerrados e as sobrancelhas franzidas enquanto seus olhos percorriam as linhas ligeiramente apagadas pelo tempo. Os dedos enrijeciam na medida em que avançava. Sentia a raiva debater-se dentro do peito, logo cederia ao impulso de observar aquelas páginas contorcerem-se pelo fogo; suas palavras malditas sendo queimadas e apagadas para toda a eternidade. Mas nada mataria a tormenta do fantasma por tê-las lido, e também nada impediria a promessa carregada por elas de se concretizar.

Em um gesto enfurecido, Rômulo fechou o livro, finalmente satisfazendo seu desejo e atirando-o ao fogo. As chamas o engoliam, e ele ficou admirando a cena enquanto processava todas as informações. O nó na garganta reprimiu um grito. Não era de seu feitio entregar-se às emoções daquela maneira, tinha aprendido, ao longo do tempo, a preservar a seriedade e cultivar a frieza. Mas sentia todas aquelas características esvaírem-se com uma facilidade assustadora. Nem nos instantes que antecederam sua morte sentira tanto medo.

O mundo ao qual passara a pertencer era uma mentira, bem como suas concepções. Como podia ter sido tão cego? Estava imerso em sua solidão a esse ponto? Os fantasmas não eram apenas seres sobrenaturais, estupidamente tratados como fictícios pelos humanos. Eram monstros que espalhavam a desgraça e o caos pelo mundo terreno. Guerras, massacres, catástrofes. Havia a mão deles naquilo tudo. Mas ele nunca percebera. Condenou-se a viver vagando pelas redondezas sinistras e úmidas daquele mundo coberto por uma camada inalterável de tons cinzentos. Mantinha-se isolado, longe dos outros iguais a ele. Também havia um buraco no peito de cada um daqueles fantasmas. Todos estavam presos a uma dor profunda, assim como Rômulo. Mas agora ele via o quanto era diferente deles. Jamais teria coragem de descontar sua mágoa naqueles que nada tinham a ver com ela. Era uma criatura triste, não malévola.

Porém, aquele era um lugar maldito habitado por demônios. Com o tempo, sucumbiria à maldade exercida por eles, se deixaria levar pelo ódio de uma semi-vida cruel e sem sentido. Faria parte do exército e destruiria vidas inocentes.

Rômulo engoliu em seco e um gosto amargo, talvez imaginário, formou-se na boca. Era possível, não era? Mudar o próprio destino? Senão, que outra escolha teria? As coisas iriam piorar. Implacável, a crueldade avançaria e seria difícil contê-la. Os fantasmas retornariam ao planeta que uma vez lhes pertencera, mas, dessa vez, não seria temporariamente. A maldição se iniciaria, conforme lera.

De repente, a imagem de Anita lhe veio à cabeça. Seus cabelos negros e fartos emoldurando o rosto gentil, acariciado pelo calor do sol que fazia naquele último dia em que se encontraram. Seu sorriso era doce e combinava com o olhar faiscante da mais genuína alegria.

Era assim que Rômulo sempre se lembraria dela. De como ela podia ser feliz, mesmo que por dentro as cicatrizes do passado ainda doessem. Elas doíam menos quando estavam juntos. O destino podia dar as cartas, era verdade, mas tudo dependia de quem as jogava depois. E ele, decidiu, jogaria do jeito certo. Salvaria a vida de Anita.

Luiza Venturini
Enviado por Luiza Venturini em 22/09/2012
Reeditado em 05/06/2015
Código do texto: T3895756
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