Outra Metamorfose

A situação desoladora em que minha família se encontrava era, sem dúvida, um martírio e provocava-me incontroláveis acessos de fúria por saber que era eu o responsável. Perguntava-me a cada segundo a razão de tudo aquilo. Sempre fui um filho e irmão dedicado, orgulhava-me de conseguir sustentar minha família por trabalhar tão arduamente todos os dias, naquela profissão de caixeiro viajante. Se ao menos eu pudesse dizer a eles o quanto sofria e temia por tal situação agravar-se.

Eu perambulava fracamente pelo quarto, sentindo o cansaço apoderar-se de mim. Meus olhos foram fechando-se até eu cair totalmente no inconsciente.

Ao acordar, a primeira coisa que vi foi a luz do amanhecer brotar pela janela. Respirei profundamente e pude perceber que a atmosfera, de alguma forma, havia mudado. Estava mais leve. Como se eu finalmente tivesse saído do pesadelo terrível e aquele fosse apenas mais um dia normal. Estiquei-me e logo percebi que não podia estar mais enganado. Eu ainda estava preso no corpo grotesco de inseto, apesar de sentir-me relativamente bem em comparação aos dias anteriores.

Mas, então, se ainda estava do mesmo jeito, o que fez mudar a sensação de aprisionamento em que me encontrava? A resposta não demorou a aparecer, e quando o fez meu contentamento foi tão grande que pensei estar dormindo ainda, pois tal fato só seria possível em sonhos.

Minha mãe, que até então só aparecera uma vez em meu quarto, espreitava na soleira da porta, esta que estava mais aberta que de costume. Deixava transparecer o receio em se aproximar, mas tampouco demonstrava repulsa, ou então a escondia muito bem.

“Gregor, meu filho...” sussurrou ela, os olhos marejados. Percebi que me observava já há algum tempo, o que sem dúvida tinha despertado em mim o bem estar com o qual acordei. Sua presença tinha esse surpreendente efeito. “Eu sei que é você, no fundo eu sei. Minha cabeça insiste em negar isso...” Sua voz foi enfraquecendo, seguida de uma pausa. Parecia estar em conflito consigo mesma, enquanto meneava levemente a cabeça. Porém, quando pareceu tomar fôlego novamente, continuou: “Mas não é a voz do coração que, afinal, deve prevalecer?”

Eu a ouvia com atenção, porém estava um pouco atordoado. Era como se aquilo fosse uma alucinação prestes a acabar e que, quando isso acontecesse, eu me depararia com o rosto de minha mãe contorcido de pavor. A imagem ia e vinha na minha cabeça, contrastando com as palavras doces que entravam pelos meus ouvidos.

“Será que você consegue me entender?” continuou ela. “Não vamos te abandonar, Gregor. Essa atitude não haverá de ser tomada enquanto eu souber que você é o meu filho. Não importa mais a dor em que nos mergulhamos, se você se for, ela ainda existirá. Portanto, devemos deixá-la.”

Permaneci imóvel diante de tal revelação, ainda custando a assimilar o que tudo aquilo queria dizer. Minha família, então, me aceitaria? Eu, que já há muito me considerava uma aberração, não conseguia acreditar. E havia um motivo para o meu receio. Eu sabia perfeitamente da impossibilidade de conviver com eles – experimentei aquele gosto amargo durante meses.

No entanto, eu sentia uma euforia no fundo do meu peito, como quando você está na expectativa para uma queima de fogos de artifício. A contagem regressiva chega ao fim e, nesse exato momento, seus olhos são direcionados para o céu e então você vê. Cores e mais cores. Não importa o barulho que eles fazem. Você só consegue admirá-los. Mas o triste é que em poucos segundos eles acabam, e o céu fica vazio, assim como seu peito.

Era a mesma coisa. Eu estava feliz com o que minha mãe acabara de me dizer, mas ao mesmo tempo sabia que não iria durar. Entretanto, apesar da carcaça, minha alma ainda era humana e terrivelmente masoquista. Eu não queria morrer, mesmo que isso me custasse mais dias sofridos na terra. Idiotice? Como se a nossa vida não fosse repleta delas. Eu gostaria apenas de sentir um pouco mais da felicidade daquele momento, prolongá-la por um tempo que valesse pelo sofrimento pelo qual passei. Seria uma troca justa, penso eu. E então, eu partiria assim que os fogos acabassem, assim que o vazio do meu peito me dominasse.

Luiza Venturini
Enviado por Luiza Venturini em 22/09/2012
Reeditado em 05/06/2015
Código do texto: T3895563
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