Meu Corvo
Levantei-me sem pressa, sentindo a melancolia tomar cada parte do meu corpo e fui arrastando-me até a janela. A janela. O barulho nela continuava e, no fundo, me deixava um pouco ansioso. Mas só um pouco. Eu sabia que através dela não veria nada além da noite e da árvore tortuosa em meu quintal que, devido ao intenso inverno, estava sem uma única folha. E mesmo sabendo disso, mesmo que eu me achasse um estúpido por ter esperanças ao imaginar que fosse minha Leonor a bater, a ansiedade continuava lá, bem no fundo de minha alma, escondida.
Puxei um pouco as cortinas e finalmente abri a janela. Enquanto o vento glacial me atingia, senti meus braços se arrepiarem. O frio explicaria esse fato tão comum, mas daquela vez não podia.
Eu sabia o que era.
Era ela.
Pálida, fraca e bem a minha frente. Seus olhos claros e expressivos eram a única coisa que permanecia igual, o resto era opaco e transmitia desespero. “Meu amor” sussurrei “Que saudade...”. Desejei tocar-lhe a face e conduzi minha mão até ela, lentamente. Mas, antes que eu pudesse fazê-lo, fui interrompido de forma bruta. Sua mão agarrou meu pulso firmemente, apesar da aparência fraca de seu corpo. A gelidez de seus dedos me fez tremer e encarei-a, assustado. Seus trêmulos lábios abriram-se um centímetro e deles escapou um pedido: “Me salve” falou ela, tão baixo que tive a impressão de que tivesse sido o vento a zunir. “Me salve” repetiu, mantendo a mão firme sob meu pulso e seus olhos penetrantes implorando-me socorro.
Eu queria lhe dizer tanta coisa, perguntar tanta coisa... Tudo havia permanecido entalado dentro de mim, sufocando-me todos os dias com aquele peso gigantesco que só as palavras não ditas podem causar. Porém, naquele instante, não consegui proferir uma única palavra. A perplexidade tomara conta de mim e não parecia querer abandonar-me tão cedo.
Ela pedia socorro, pedia que eu a salvasse. De quê? Por quê? Eu não fazia ideia. Tal fato era o oposto do que eu imaginara. A felicidade que eu sonhava ver estampada em seu rosto, se um dia nos encontrássemos, fora substituída por uma névoa que lhe cobria as feições, deixando-as sombrias e dolorosamente tristes.
Perguntei-me se eu estava feliz em revê-la. No abismo de meu coração, não obtive resposta – ou talvez não quisesse obter. Senti-me envergonhado pelo meu egoísmo. Será que eu ansiava em vê-la feliz apenas para poder sentir-me também? Que amor seria esse? Doentio – respondi a mim mesmo. E, portanto, recusei-me a aceitar essa hipótese.
Segurei-lhe a mão livre e supliquei para que me explicasse seu pedido. Matava-me não conseguir entender. Porém, ela sequer pareceu me ouvir, mantinha os olhos apavorados fixos nos meus, o que me causava uma angústia inexplicável.
O ar gélido a nossa volta me consumia e dificultava a respiração.
A luz turva que lhe cobria parecia se estender sob mim também.
Vozes.
Um farfalhar de asas.
Os sons explodiram na noite, fazendo-me estremecer. Olhei para o céu, horrorizado. Centenas de aves negras riscavam o céu, acompanhadas das vozes ruidosas.
Passei a lutar para livrar-me da mão que se mantinha presa em volta do meu pulso. O gesto pareceu tão grotesco que me doía profundamente fazê-lo. Mas, o medo era crescente e, surpreendentemente capaz de vencer qualquer outro sentimento.
Eu podia sentir a nuvem de desespero pairar sob mim, absorver-se em minha pele e inundar meus pensamentos. Salvar-me tornou-se o único objetivo a alcançar. Eu continuava a tentar soltar meu pulso, e enchi-me de alívio quando o fiz e, ao mesmo tempo, reprimindo-me por tal.
Subitamente, uma vertigem me fez cambalear e senti minha visão escurecer. Apressei-me em fechar a janela. Tateei a parede até alcançá-la novamente, mal tendo noção dos meus movimentos.
Quando percebi que o vento havia parado, concluí que eu conseguira. Os sons continuavam, mas eu estava seguro. Deitei-me no chão, pois era impossível localizar a cama e sentia-me demasiado fraco para sequer tentar. Na cegueira profunda, tapei os ouvidos inutilmente.
Meus pensamentos giravam em torno da imagem de Leonor e ainda era possível sentir seus dedos frios apertando-me o pulso. Os sons persistiam, recusando-se a me deixar em paz. Eu beirava entre o consciente e o inconsciente, ansiando por afundar no segundo e sem saber por que tanta demora em fazê-lo.
Mas não demorei a descobrir o motivo: Eu havia fugido. Fugido da mulher que mais amei na vida. Ela, de algum modo, precisava de mim e eu simplesmente a abandonei. Teria eu o feito durante toda sua vida comigo? Não lhe dei o que merecia? Tentei afastar os pensamentos da minha mente a todo custo, mas eles resistiam.
Naquele momento, a verdade apoderava-se de mim. Aquela fora uma chance. Uma chance de provar meu amor. Eu acreditava que o tempo fora o responsável por impedir-me. Porém, o responsável estava bem ali: deitado sob o chão congelante, em meio a devaneios que iriam atormentá-lo para sempre.