Um conto meio infantil

Um conto meio infantil

Era uma vez uma menina que, numa tarde de sol, resolveu esclarecer seus pontos de vista pessoais olhando seu pequeno rosto num balde com o qual tirava a água do poço. Era uma menina pequena ainda, de cabelos escuros e meio lisos, joelhos meio pontudos, meio magra, de tamanquinho que batia no cimento, plaft, plaft, que vivia numa casa numa cidade de uma rua só, com cinco irmãos uma vó e uma mãe, cujo pai aparecia de vez em quando, que era pai meio aventureiro e meio bravo, que olhava com espanto os lagartos lagarteando ao sol e as nuvens de camelo, que tomava café numa canequinha de ágate e banho numa bacia de alumínio velhinha, que subia em saco de milho, que dormia de cabeça coberta até que um dia a vó lhe disse, como é que você vai casar se dorme com a cabeça coberta e ela não entendeu o comentário muito bem, que andava de jipe com banco de sabão e gostava de broa de fubá, que era canhota e a professora amarrou sua mão esquerda pra ela escrever com a direita que era muito feio gente canhota, tinha parte com o diabo, que sentava na terra e ficava com a calcinha muito suja, levava a boneca de borracha passear num carrinho azul de madeira com flores pintadas, que teve tifo e via as coisas longe, longe, usava uma calça bordô que pinicava a pele , que brincava de circo e de amarelinha, dançou de chinesa na festa da escola e ficou muito preocupada porque seu chapéu caiu, brincava de trem com a irmã, uma cadeira atrás da outra, que você é a Miraci e eu sou a Marisa e somos muito ricas e quando as férias chegarem a gente vai pra minha fazenda, não importa, eu levo você que tenho chofer e estranhava ter sempre que ser a tal Miraci , não gostava desse nome curtinho e sempre tinha que ser cantora lírica que popular não servia e não sabia muito bem o que era popular nem quem era o príncipe Mishevsky que era amante de sua irmã, também não entendia o que era amante. Portanto, tratava-se de uma brincadeira da irmã, onde era espectadora gentil; uma menina que viu um camaleão no arbusto de “buquê de noiva”, uma menina que tinha medo e esperança...

Enquanto isso, uma formiga mal-humorada que estava lidando com a vida olhou-a e resmungou: "Essa aí sempre sonhando... Parece aquela cigarra tontolona que me acompanhou numa outra história". Tem gente que nunca aprende, arre, que chatice!

A menina meio magra de cabelo meio liso e joelhos meio pontudos com algumas feridinhas da infância ouviu o comentário e ficou assustada: mas, mesmo assim, limpou uma lágrima de medo com a manga do vestido e falou compassadamente:

- Numa tarde de verão como essa; um dia, quando eu crescer vou ser bem boazinha !! Com os jovens, as crianças como o sou agora e os velhinhos também né? E eu... Vou ouvir cada sentimento com a concentração dos atletas, amparar com os braços da musculação, suportar com a obstinação de um pasto seco e incentivar com as plumas d'alma !

Nesse momento, um colibri que passava meio distraído sobre a rosa vermelha, viu a menina meio atarantada no meio do jardim, e é quando a gente fica atarantada com provocação inútil e retrucou: "É..cada uma na sua..." e a menina meio magra, de cabelo meio liso e joelhos meio pontudos com algumas feridinhas da infância, ouviu e ficou com muita raiva. Limpando as lágrimas com mais força, gritou bem alto e esganiçadamente:

- E... Numa tarde de sorvetes como essa: um dia, quando eu crescer, vou ser bem justa. Ajudar sem a troca da usura, escorar sem o "eu não disse?", Resistir com a leveza dos anjos, estimular sem a doutrina dos homens...

Mas, nessa hora uma lagartixa transparente pelo descaso, que arrastava a barriga sobre uma bacia enferrujada, vivia com problema de circulação e tinha a sobrancelha muito levantada o que lhe dava um ar de eterna interrogação, sugeriu-lhe: - "Viva sua vida que já fará muito!"; aí então, a menina meio magra de cabelo meio liso e joelhos meio pontudos com algumas feridinhas, debruçou-se sobre o balde chorando e foi um rebuliço! Seu rosto começou a se diluir em ondas que não tinham fim e ela então, falou bem baixinho pra ninguém mais ouvir:

- Numa tarde de bermudas como essa...um dia, quando eu crescer... Vou ver a vida. A vida com seus querubins nas noites claras, suas margaridas de beleza tão simplória, o boi que mastiga com paciência, o cão que transforma sua sina...! Quando eu crescer, um dia... Não haverá mais lugar pra mim nesse mundo... Só num outro... Só num outro...ai, ai, ai, só num outro...

Mas um cão, que cão sempre presta atenção, tem sensibilidade e que a vinha observando desde o início do seu discurso tão cheio de esperança, abanou o rabo e respondeu com ternura:

- Sonha minha menina, sonha! Que quando as crianças sonham por vezes, os anjos que passeiam pela terra as ouvem e dão cambalhotas... E tudo estará modificado... Engrandecendo um pouco a vida e suas criaturas...

Nesse dia, e, só nesse dia, um bando de querubins foi visto comendo pitanga no quintal da casa do seu Onofre.

Vosmecê
Enviado por Vosmecê em 13/09/2012
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