Campo de Luz [Parte 3]

Capítulo 3

Megu e Naoko acordaram cedo. O sol começou a surgir entre as nuvens, mal tocou a janela e elas já estavam de pé. Arrumaram suas mochilas, tomaram café e despediram-se de seus anfitriões. Os avós estranharam a partida repentina das garotas, mas não puderam fazer nada para convencê-las a ficar. Fizeram propostas tentadoras, almoços especiais, passeios no bosque e idas ao parque de diversões que chegara na cidade. Embora fossem irrecusáveis em situações normais, naquele caso especial não surtiram o efeito que os avós de Megu esperavam. Depois de muita insistência, eles acabaram se conformando.

As duas foram até a rodoviária de carona com o avô de Megu. Quando ele entrou no carro, contornou a plataforma de embarque e desapareceu seguindo a rua principal, elas correram para o guichê. Precisavam trocar suas passagens. Agora, seu destino era Santana e nada mais poderia impedi-las. Assim que o ônibus parou na plataforma, elas pularam para dentro dele. Escolheram as últimas poltronas e se acomodaram da melhor maneira que puderam. Estavam ansiosas e um pouco nervosas. A viagem devia durar umas três horas, calculara Naoko. No início o ônibus parava de cinco em cinco minutos para pegar mais passageiros. Havia duas senhoras conversando sobre os horrores que seus vizinhos faziam durante os fins de semana, nada mais do que churrascos e festas na piscina. Um bebê chorava sem parar e sua mãe não conseguia acalmá-lo. Um senhor, de uns 70 anos, conversava sozinho, como se houvesse alguém sentado na poltrona adjacente a dele. Elas acabaram pegando no sono e só acordaram quando o ônibus parou na rodoviária de Santana.

Elas desceram no meio de uma multidão de olhares preocupados, fixos nos horários dos ônibus e completamente mergulhada em um mar de ansiedade. Todo mundo carregava alguma coisa, ninguém estava com as mãos vazias. Malas, mochilas, sacolas. Alguns puxavam carrinhos gigantescos, cheios de embrulhos e de caixinhas de papelão. Cada pessoa possuía um destino diferente e tinha suas próprias expectativas que para elas eram, certamente, mais importantes e mais urgentes do que qualquer outra coisa.

Uma certa pontinha de medo começou a brotar no coração delas quando perceberam que estavam sozinhas e em uma cidade desconhecida. Naquele instante só podiam confiar em sua amizade. As pessoas eram estranhas, não olhavam para os lados, como se todas tivessem assuntos secretos para resolver. Megu e Naoko andaram um pouco pelo piso verde lustroso, sem rumo e sem ter idéia do que fazer. Sentaram-se em um banco de cimento, colocaram suas mochilas no chão e começaram a pensar. “O que fariam?” Havia uma lata de lixo ao lado do banco. Ela estava transbordando, cheia de papéis amassados, de copos plásticos e de palitos de picolé. Megu percebeu alguma coisa se movendo lá dentro e quando menos esperava um pequeno ratinho preto escorregou para fora dela. Ele tinha os olhos azuis e por um momento, Megu pensou que ele estava usando um boné e uma bermuda de suspensórios.

- Olha, Naoko – ela apontou para o montinho preto que rodopiava no piso escorregadio.

- O que é isso?

- Acho que é um rato.

O ratinho atravessou o corredor onde elas estavam e sumiu no meio da multidão.

- Onde ele está? – Megu tentava encontrá-lo.

- Está ali – foram as duas atrás dele.

O ratinho se esforçava para não trombar nos pés inquietos das pessoas que passavam. Ele olhou para trás e viu que estava sendo seguido e acelerou. Megu e Naoko passaram pelas pessoas mantendo os olhos no pontinho preto que dava voltas e mais voltas tentando despistá-las. Ele se aproximou de um grupo de pessoas que se amontoavam ao redor de um homem de paletó marrom. O ratinho desviou dos pés das pessoas e entrou na barra da calça do homem de paletó. As garotas já estavam agachadas no chão tentando descobrir em qual perna o ratinho se escondera.

- O que vocês estão fazendo? – uma das pessoas perguntou.

- Estamos procurando um... ratinho – Naoko respondeu.

Naquele momento elas perceberam que todos estavam olhando para elas, inclusive o homem de paletó marrom. Ele era um senhor grisalho, de barba e cabelos desgrenhados. Tinha os olhos fundos e azuis, a boca fina e o nariz adunco.

- O que você duas querem mesmo? – ele perguntou para elas. As pessoas ficaram em silêncio e como não ouviram nenhuma resposta, voltaram todas a cuidar de suas próprias vidas. Todos estavam pedindo informações ao senhor de paletó que pacientemente tentava atender a todos. Quando a maioria das pessoas havia ido embora ele voltou-se outra vez para as garotas que continuaram ali sem saber por onde começar a procurar a Loja de Máscaras.

- Chegou a vez de vocês – ele disse educadamente. – Posso lhes ajudar em alguma coisa?

- Acho que pode sim – Naoko se levantou. – Estamos procurando uma loja de máscaras – ela disse rispidamente, como se já soubesse que ele não poderia ajudá-las. – Precisamos conversar com um de seus funcionários.

- Conheço apenas uma loja de máscaras – ele arregalou os olhos e estendeu o dedo indicador.

- Conhece? – Megu se levantou, seus olhos brilhavam.

- Sim – ele respondeu calmamente.

- Precisamos ir até lá. Onde ela fica?

- Fica aqui na cidade mesmo, mas acho que não será fácil ir até lá – ele balançou a cabeça e franziu a testa. – Desculpem minha intromissão, mas vocês querem conversar é com o novo funcionário?

- Ele se chama Nohri, não sei se é um funcionário novo.

- É ele mesmo. Nohri – o homem repetiu.

- Por que é difícil ir até lá? – Megu diminuiu o tom de voz, como se fosse contar um segredo.

- Somente sonhando você pode chegar até ela – ele apenas sussurrou.

- Sonhando? – Naoko se espantou.

- Vocês precisam de um sonho profundo – ele manteve o mesmo tom de voz. – Posso ajudar vocês, se assim quiserem.

- Acho que não podemos negar nenhuma ajuda – Megu olhou para Naoko esperando sua aprovação e após um aceno com a cabeça continuou. – Queremos sim.

- Meu nome é Maldredi e o de vocês?

- Naoko e Megu – elas disseram juntas.

Elas seguiram o homem de paletó até uma pequena casa no fim de uma rua estreita e esburacada. O sol já não estava tão forte, mas um calor úmido pingava do céu como se as nuvens estivessem fervendo. Andaram por todo tipo de lugar, a cidade era bonita. Havia igrejas antigas, estátuas nas praças e flores nos canteiros das avenidas. Seus habitantes é que pareciam um pouco ariscos e assustadiços. Andavam sempre olhando para baixo e nunca deixavam de cumprir suas tarefas e deveres. Pareciam bonecos de corda que só sabiam obedecer. Maldredi levou as garotas para sua casa, aliás, para a bagunça que havia em sua casa. Tudo estava fora do lugar, sujo ou quebrado. Havia copos espalhados por toda parte, todos com alguma bebida dentro. Alguns cheios e outros pela metade, lotavam as estantes, as mesas, o sofá e as cadeiras, até mesmo o chão estava cheio deles. Era uma missão difícil andar pela casa sem entornar um deles. Uma televisão velha ficava no centro de uma estante que tentava segurar sobre si, além dos copos uma pilha de jornais. O sofá de dois lugares ficava a pouco mais de um metro da tela da televisão, sobre um tapete redondo machado de café e sob uma lâmpada incandescente. A cozinha era apertada. Não tinha fogão ou geladeira, apenas uma mesa redonda e mais copos. Em um dos quartos havia uma cama e um cabide de chapéus, no outro havia uma cama de casal e um armário de seis portas fechadas com cadeados enormes. Quando entraram, Maldredi correu e fechou a porta deste último quarto, pegou um cinzeiro cheio de pontas de cigarro que estava na cabeceira de sua cama e tirou alguns jornais que estavam sobre o sofá.

- Podem ficar á vontade – ele sorriu meio sem graça e olhou para o espaço que acabara de liberar no sofá.

Elas se sentaram. Ele foi até a cozinha e trouxe um copo com uma bebida amarela para cada uma.

- Vocês devem estar com sede – ele entregou os copos para elas. – Andamos bastante para chegar até aqui.

- Obrigada - elas disseram automaticamente. Era suco de laranja e estava muito gostoso e gelado.

- Agora posso explicar a vocês sobre a Loja de Máscaras – ele sussurrou. Maldredi foi até a janela, olhou para os dois lados da rua e puxou as cortinas.

- A Loja fica no Campo de Luz – uma amargura antiga coloriu seus olhos, como nuvens escuras mudam o humor de um céu azul.

- Campos de Luz? – Naoko perguntou. – Onde isso fica?

- Ele está em toda parte e em lugar nenhum – sua resposta soou como um sino antigo, de milhares de anos.

- Então quer dizer que estamos nele? – Naoko continuou sem entender.

- Ele está em toda parte, mas é necessário entrar nele. Ir até o fundo, até o profundo abismo da realidade – ele fez uma pausa, molhou os lábios e foi para perto das garotas. – Onde tudo o que vemos e tocamos começa a se transformar em sonhos. Devemos entrar no limiar da existência.

- Eu não estou entendendo – Megu reclamou. – Como um lugar como esse pode existir?

- Ele não é um lugar – ele esperou suas próprias palavras silenciarem antes de continuar. – É apenas um Campo de Luz.

- O que devemos fazer para entrar nesse campo? – Naoko já havia roído as unhas de três dedos.

- Vocês precisam encontrar um sonho profundo – ele sentou-se entre elas. – Um sonho capaz de levá-las até lá. Um sonho que ficou marcado em seus corações.

- Eu não me lembro dos meus sonhos – Megu reclamou outra vez.

- Encontrar um sonho profundo é o primeiro passo rumo ao Campo de Luz – ele se levantou. – Vocês têm até a hora de ir dormir para encontrarem um.

Maldredi foi para o seu quarto e fechou a porta. Era doloroso para ele falar sobre coisas que lhe traziam recordações tão tristes. Há muito tempo, ele perdeu todos os seus sonhos profundos e nunca mais pôde voltar ao Campo de Luz. Deixara algo muito valioso lá e nunca pôde voltar a vê-la. Ele teve que esquecê-la ou, pelo menos, tentara.

Naoko e Megu mergulharam em um lago de pensamentos e lembranças. Esforçaram-se ao máximo para encontrar seus sonhos. A noite as pegou de surpresa quando começou a pingar pelas goteiras do telhado. Havia um copo para cada uma das goteiras. Eles não deixavam a noite se espalhar pela casa. Ela pingava lentamente, escura e viscosa, dentro de cada copo. Eles se enchiam lentamente com o suor da lua e quando estavam transbordando, Maldredi os trocava.

- Já estão prontas para dormir? – Maldredi perguntou.

- Não sei se encontrei o meu sonho – disse Megu.

- Você só saberá quando dormir.

- Você irá conosco? – Naoko quis saber.

- Não.

O som das gotas transformou-se em uma sinfonia, hipnotizante e frenética.

- Vocês dormirão comigo, em meu quarto. Coloquei dois colchões no chão.

Elas foram atrás dele, se acomodaram, cada uma em sua cama improvisada e se empenharam em pegar logo no sono. Maldredi deitou-se também, tirou um cordão e um pingente que estava em seu pescoço e os colocou sobre a cabeceira. Naoko percebeu que era uma flor-jóia, uma espécie de aliança na forma de uma pequena gema vermelha que os namorados costumavam trocar. Ela virou-se rapidamente, para que ele não percebesse que ela vira a flor-jóia. Em pouco tempo ouvia-se apenas o barulho das gotas de noite. Todos pegaram no sono.

Fillipe Evangelista
Enviado por Fillipe Evangelista em 17/02/2007
Reeditado em 18/02/2007
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