CONTOS AVULSOS - PAI DESCONHECIDO

Do Livro ' A ESQUINA DOS CONTOS '

NO mesmo bairro onde se localizava a escola, próximo à Esquina dos Contos, num velho casarão tipo construção do início do século XX, com portas de “duas folhas” e com altura de três metros, funcionava o que hoje conhecemos como Defensoria Pública, mas que naqueles tempos possuía outra denominação – um daqueles “nomes velhos” que jamais se recordam - mas que representava o mesmo serviço prestado nos dias atuais, qual seja, assistência jurídica gratuita em favor de pessoas menos bem aquinhoadas.

Apenas uma bandeira nacional e uma placa “esmaltada” em formato oval – fundo branco padrão “ovo frito” - e com o brasão do Estado dava alguma pompa àquele casario antigo, que recebia todos os dias uma caravana de gente simples, muitos dos quais passavam de cabeça baixa pela Esquina dos Contos, provavelmente carregando no silêncio o conjunto dos males que os levavam até aquela repartição, perseguindo uma justiça sempre incerta e invariavelmente mais simpática aos poderosos.

Um garotinho que aparentava pouco mais de 12 anos transitava seguidamente pela mesma rua , quase sempre acompanhado de sua mãe , e como que parecendo curioso fixava o olhar para o pessoal da confraria da esquina , abanando a mão e presenteando-nos com um sorridente “olá” . É um gesto simples, mas – bom recordar - que ao longo dos tempos sempre se prestou para conquistar alguma simpatia e , ao menos, assegurar um registro na memória alheia.

Quem sabe por isso, suas passagens pelo local foram sendo registradas e com o transcurso dos meses e dos anos o menino já crescido e “conhecido” da turma arriscava parar para dar uma conversada com o pessoal da confraria. A essas alturas, já egresso da sala da inocência infantil, ostentando ares de adolescente e algumas “espinhas” no rosto , que se apresentavam acompanhadas daquele som de galo garnizé , típico de guri mudando de voz ... e com isto o desejo de falar, de opinar e de indagar ...

Desejo que, de certa forma , era recíproco ...

Um belo dia, intrigado e curioso , Alface perguntou ao jovem se ele morava ali perto, o que a todos parecia muito improvável devido a suas vestes humildes e sua aparência de pobre, intrigando também o fato de que era da mesa forma sabido que ele não estudava na escola. Havia algo de incomum a desafiar a freqüência daquele guri por aquelas bandas ...

Foi então que o menino , acolhendo a indagação com naturalidade , respondeu de maneira bem espontânea que freqüentava o escritório da assistência jurídica gratuita e disse sem rodeios – fulminante e definitivamente - que já estava na terceira tentativa de descobrir quem era seu pai.

O garoto parece que respirou muito fundo e com uma autoridade que parecia brotar das profundezas de sua alma, confessou a todos do grupo que sua mãe havia sido prostituta profissional e que nunca soube quem era seu pai. Contou que nenhum ressentimento tinha com a mãe, pois ela o assistiu sempre na medida de suas parcas possibilidades e do destino que a vida havia lhe reservado. Mas ele queria saber sua origem paterna ... necessitava disso ...

Houve um certo mal estar e até mesmo uma sensação de remorso, porque de certa forma todos os presentes eram filhos de famílias sólidas e foram criados ao pálio da cultura do “macho” onde o bom pai deveria desde cedo encaminhar seus filhos na “iniciação” sexual,de preferência “comendo” alguém da vizinhança, incljusive para arredar aquele fantasma do filho “veado”...

Mas, é bom que se diga, um silenciou momentâneo impregnou o ar e não escapava ao conhecimento de todos ali que vez por outras surgiam casos de homens de situação financeira “estável” que davam suas “escapadas” ... Pais, tios, primos e até irmãos mais velhos freqüentavam casas de tolerância e ninguém se arriscou a perguntar muito mais ... quiçá no silencio da consciência de cada um não transitou o medo de que aquele infeliz pudesse ser seu parente...

Ele contou aos membros da confraria da Esquina dos Contos que um dos homens suspeitos de ser seu pai era uma cidadão abastado, dono de fazenda e rebanho de gado , mas que o mesmo teria contratado e pago dezenas de testemunhas para prestarem depoimento contrário, algo que sempre ganhava muito valor frente à versão de uma “puta”... também correu a suspeita de que o ricaço havia oferecido suborno a um enfermeiro na hora da coleta do sangue.

Aliás, naqueles tempos ainda não existia o chamado exame de DNA e a perícia de sangue era feita apenas para excluir a paternidade, ou seja, se o “tipo” e o fator RH do sangue era incompatível o exame sanguineo permitia afirmar quem não era o pai, mas ao contrário do exame genético não dava a garantia da paternidade. Era apenas o chamado “exame negativo” e não afirmativo .

Havia, contudo, cor de “sangue” nos olhos do menino que revelava um incêndio interno , a certeza de que seu trânsito por aquelas ruas iria ser prolongado e repetitivo...

Com os anos passando todos os membros da confraria seguiram suas vidas e aquela figura do guri certamente se perdeu nos desdobrados caminhos da vida e todas as suas tantas incertezas. Mas com certeza a confraria jamais esqueceu da dolorosa peregrinação daquele jovem. Como deve ser triste e incompleta a vida sem uma história de lastro paterno .... - Como deve ser angustiante para alguém viver ostentando na cédula de identidade a condição de “pai desconhecido” ....