DIÁLOGO INSÓLITO
NA CULTURA CELTA A DAMA BRANCA REPRESENTA A MORTE. PORÉM ELA TAMBÉM REPRESENTA A POSSIBILIDADE DE VIDA E DE RENASCIMENTO. A TRÍADE DA QUAL FAZ PARTE ESTABELECE QUE ESSA DEIDADE É MISTO DE FERTILIZAÇÃO DA TERRA (RENASCIMENTO) E DE JULGAMENTO DA VIDA E DA MORTE. E ISSO NÃO SIGNIFICA QUE ELA SEJA BOA OU MÁ, APENAS UMA DIVINDADE RESPONSÁVEL POR OBSERVAR NÓS HUMANOS FRACOS E INCAPAZES DE LIDARMOS COM NOSSA PRÓPRIA LIMITAÇÃO.
“Dia de merda!”, pensou Gervásio ao preparar-se para sair do escritório onde dava expediente. Havia um sentimento de insatisfação no ar, ele pensava, e nada do que havia sido planejado tinha dado certo. Relatórios não concretizados, reuniões que resultaram em uma nova reunião e conversas paralelas que não renderam o esperado. É, tinha mesmo sido um dia de merda! Disso ele não tinha qualquer dúvida. O pior era pensar como seria o resto!
O melhor mesmo era ir embora, sair dali o mais depressa possível e sem olhar para trás. Estava tão alucinado por tudo que acontecera que dera as costas para tudo e para todos. Aliás, ele sabia muito bem que seus colegas iam entender – e mesmo que não entendessem, ele jamais iria se preocupar – já que eles sabiam o quanto impessoal e distante Gervásio costumava ser com todos que o cercavam. Mesmo aqueles poucos amigos que teimavam em manter-se próximo a ele não representavam algo mais que apenas um contato para beber e jogar conversa fora, … e nada mais!
Sua vida sempre foi assim, impessoal, distante e orientada para o seus interesses, e nada mais.
Pegou seu carro decidido a ir direto para casa, sem qualquer parada. Bares, restaurantes, encontros com amigos, com certeza nada daquilo iria dar certo em um dia onde tudo deu errado. Até mesmo seu chefe, sempre pronto a ouvir antes de criticar, desta vez não lhe deu moleza: chegou até a gritar com ele por conta de um orçamento pífio que um cliente recusara sabe-se lá porque. O melhor mesmo era ir para seu apartamento e esquecer definitivamente aquele dia.
E foi o que fez. Chegou ao seu apartamento mais cedo do que esperava. Entrou e foi direto para o quarto, precisava despir-se, pois aquele terno executivo parecia pesar o mesmo que uma armadura medieval. Dispensou a roupa da forma mais displicente possível (menos que o usual), e correu em direção ao banheiro. Somente um longo banho com direito a ducha expressa e bastante sabonete líquido seriam capazes de remover – pelo menos em parte – todo o peso daquele dia dos infernos.
Deliciou-se longamente com aquele banho reconfortante que parecia limpar não apenas o corpo, mas também a alma. Gervásio, pouco a pouco, ia sentido suas energias serem repostas, como se a água quente que saía do chuveiro equivalesse a um bálsamo que removia as dores e os sofrimentos pelos quais ele passara durante aquele dia de trabalho infeliz e absolutamente vazio. E mesmo demorando mais que o normal, Gervásio preferiu permanecer sob os efeitos calmantes da água do que findar um prazer que além de parecer único, muito se assemelhava ao último desejo de um condenado (pelo menos, era o que ele pensava naquele momento triste e vazio).
Secou-se sem pressa, e olhando para o rádio-relógio que ficava sob o apoio de cabeceira de sua cama, sentia que aquele dia (e também a noite) parecia não querer ir embora. Era uma recusa tácita, apenas demonstrável, sem a intenção de impor-se, apenas desejando ficar, mesmo sabendo o dano que havia causado, a impressão que Gervásio tinha era de que aquele dia queria se desculpar por todo o transtorno causado e, de algum modo que não podia ser facilmente compreendido, havia a intenção de propiciar alguma retribuição pelos prejuízos causados.
“Que estranho!”, pensou Gervásio, porém, logo deu de ombros, pois eram apenas conjecturas que não tinham a menor razão de ser. Ademais, ele precisava relaxar e não filosofar. Nu como saíra do banheiro caminhou até a sala de estar e depois em direção à cozinha. Abriu a porta da geladeira e pegou uma lata de coca cola zero bem gelada; abriu-a e despejou seu conteúdo em um copo também gelado.
Sorveu o líquido (ou boa parte dele) e um só gole. Aquele sabor ácido queimando a garganta também parecia haver recebido algum dom reparador, relaxante. Gervásio continuou bebendo. E quando aquela lata terminou ele abriu outra e depois outra. Era um alívio saber que estava em casa e que, em poucas horas, aquele dia maldito tornar-se-ia passado, um passado fácil de ser esquecido.
Assim as horas foram passando, encontrando um Gervásio cada vez mais desanimado e cansado. Queria muito que aquele dia acabasse definitivamente. Precisava disso para sentir-se um pouco melhor, … apenas um pouco, … e nada mais.
As imagens da televisão alternavam-se com o ritmo do programa; um filme seguido de outro, e depois um noticiário local, e mais filmes – novos, antigos, desconhecidos – até que ambos, televisão e espectador, foram ter com a madrugada que se aproximava resoluta com a firmeza de que seria a responsável pela aniquilação daquele dia dos infernos que assolava a mente, o corpo e o espírito de Gervásio, liberando-lhe da angústia e da frustração causada pela senhora absoluta do do tempo, aquela que aniquila todos os sofrimentos dos mortais.
Gervásio sentia seus olhos pesarem, seu corpo cobrar-lhe o merecido descanso. Não havia mais o que fazer exceto deitar-se, fechar os olhos e entregar-se ao sono que viria para tomá-lo por completo até o novo dia que virá, e que virá com novas expectativas, pelo menos melhores que as anteriores. Caminhou cambaleante até sua cama e sobre ela despencou como uma fruta madura a cair do pé.
Interessante como a madrugada tem seus domínios bem estabelecidos. É o período que encerra uma jornada e dá início a outra. Algo semelhante ao limbo, muito embora desconheçamos o que o limbo realmente signifique. E durante seu transcurso tudo parece ser perdoado: enganos, desejos, paixões, culpas, faltas, ausências, presenças, … enfim toda a amargura do dia é lavado pela madrugada, restando apenas as primeiras luzes do novo dia, onde renovados todos nós estamos e a partir de onde iniciaremos uma nova caminhada de aprendizados, esperanças, oportunidades, tristezas e insatisfações. E foi nesse clima que Gervásio adormeceu pesadamente, esquecendo-se de tudo que havia acontecido naquele dia que já estava partindo sem deixar saudades.
… Todavia, não sabendo muito bem porque ou como, ele foi trazido de volta pelo toque suave de uma mão sobre o seu peito. Com certa dificuldade e esforço, ele entreabriu os olhos e fitou a figura de uma mulher muito bonita, cuja silhueta era contornada por um halo de luz azulada levemente brilhante. Ela estava em pé ao lado de sua cama e era simplesmente deslumbrante! Uma mulher extremamente bonita e atraente; olhos azuis tão profundos quanto o céu, rosto plácido e suave. Suas vestes eram tão transparentes que suas formar ficavam evidentes mesmo sobre a escuridão do quarto e da madrugada. E tinha um corpo perfeito! Além do que, percebeu Gervásio, ela estava despida de qualquer outra roupa apenas um vestido longo que parecia desaparecer abaixo do piso.
“Que loucura era aquela!”, pensou Gervásio; como era possível que uma mulher aparecesse em seu quarto vindo do nada! Ademais como ela poderia ter entrado? De onde veio? Quem era? E o mais importante: o que estava fazendo ali. A mente repleta da perguntas perdia-se no toque frio e suave da mão que permanecia pousada sobre seu peito. Foi então que ele olhou diretamente nos olhos daquela linda mulher e percebeu que aquele profundo azul não tinha fim, era como se ele pudesse ser engolido apenas por um olhar, … um olhar azul, profundo e frio!
“Não se assuste, eu vim apenas conversar com você”, disse-lhe a desconhecida permanecendo com a mão sobre seu peito. Gervásio sentiu o quão suave e o quão frio era o toque dela. Ao mesmo tempo percebeu também que era um toque profundo, pois ele podia senti-lo próximo ao seu coração que batia de um modo bastante cadenciado. Entre assustado, receoso e desorientado, ele balbuciou uma pergunta sobre quem era ela e como havia chegado até ali.
“Eu sou a morte, ou melhor a dama da morte, e vim aqui conversar como você, apenas isso”. Aquela frase quase fez com que o rapaz tivesse um surto de loucura total; como aquilo era possível? A morte? Uma mulher? Ou talvez tudo aquilo não passasse de uma brincadeira de mau gosto aprontada por algum de seus amigos? Nesse momento ela sorriu para ele e disse que não era uma brincadeira, apenas que ela precisava conversar com alguém e o escolhera para isso.
E porque ele? Perguntou-se mentalmente, ainda achando tudo aquilo muito insólito para ser verdade. “Porque você hoje pensou em morrer”; Gervásio ficou mais assustado ainda; de fato, durante aquele dia infernal, por um breve momento, ele pensou que poderia morrer (“a morte resolve tudo”, foi o que passou pela sua mente), mas não achou que aquele pensamento insignificante resultasse em uma visita tão inesperada. A mulher sorriu para ele, e levantou a mão que pousava sobre seu peito. Pediu para que se levantasse a fim de que pudessem conversar de modo mais adequado.
E quando o rapaz ensaiou levantar-se, ele olhou para ele, sorriu e depois disse que era melhor que ele vestisse alguma coisa, já que sua nudez a deixava estimulada. Gervásio, entre atônito e surpreso, apanhou um calção que ficava ao lado de sua cama e vestiu-se rapidamente. Como era possível um mortal excitar a morte.
“Eu não sou a morte, meu querido, sou a dama da morte, a companheira fiel e responsável do ceifador”; isso piorou tudo; como era possível que a morte fosse casada? Será que tinham filhos? E como eles transavam? Era mesmo algo muito enlouquecedor, … tudo muito maluco! Ela riu mais uma vez, uma gargalhada aberta e suave, olhou para ele fixamente e disse-lhe: “Eu sou a Dama da Morte, não sua esposa, mas apenas sua companheira, aquela responsável pelas almas que partem rumo ao seu destino, … faço parte do ritual de desencarnação pelo qual todos, um dia, tem de passar, … portanto, não faço sexo com a morte e muito menos temos filhos, … somos atemporais e nossos corpos mais celestes do que físicos, essa imagem que eu adotei serve apenas para nos comunicarmos melhor”.
Gervásio levantou-se e caminhou em direção a sala, sendo acompanhado de perto pela Dama que parecia flutuar sobre o solo. Quanto ele tentou acender a luz, ele docilmente impediu-lhe o ato dizendo que seria melhor que permanecessem naquela leve penumbra, já que a luz poderia mostrar a ele a sua verdadeira face – e, segundo ela, isso não seria algo agradável – e daquele modo poderiam conversar mais tranquilamente. O rapaz, ainda meio receoso de tudo o que estava acontecendo, titubeou por um momento, mas acabou por concordar, já que não lhe restava outra alternativa.
Foi até a cozinha e apanhou outra lata de refrigerante da geladeira e antes que tencionasse oferecer algo para beber à sua companheira, esta declinou gentilmente. Retornou para a sala, sentou-se o mais confortavelmente possível e olhando diretamente para sua interlocutora, passou a examiná-la à luz de seus olhos e sua razão: uma silhueta esguia e de formas perfeitas, cabelos cor de platina que refletiam o tom azulado do halo de luz que tomava conta de seu corpo. Olhos enigmáticos e uma boca vermelha mas sem parecer artificial ou cosmeticamente produzida. “Gostou do que viu meu amigo?”, a pergunta ecoou na cabeça de Gervásio que deu por si e percebeu que tudo o que pensava podia ser lido pela sua doce porém perigosa interlocutora.
“Afinal, porque você pensou em morrer hoje, Gervásio?”, a pergunta parecia ser uma indagação de cunho mais filosófico do que prático, o que para ele era algo inaceitável, uma vez que sua mente sempre trabalhara com a razão. Ele jamais admitira pensamentos de cunho existencial ou filosófico – achava que filosofia era coisa de boiola – e sempre margeara sua vida pelas coisas concretas e racionais. “Sei lá porque pensei em morrer; aliás, não pensei em morrer, apenas pensei que a morte resolve tudo”, respondeu ele sem hesitação no tom a nas palavras.
A dama sorriu sutilmente e respondeu-lhe que aquilo não a convencera. A morte não resolve tudo, apenas encerra um ciclo, disse ela, um ciclo que iniciou-se quando seus pais amaram-se desejando conceber uma nova vida e que se encerra quando nos desligamos deste universo e partimos para outro.
“Me desculpe, mas como ninguém voltou para dizer isso, vou fingir que acredito em você, está bem?” - a resposta do rapaz, embora sincera soou um tanto quanto irônica, e a dama achou por bem relevar, já que sua irritação poderia trazer consequências desagradáveis para ele. Mais uma vez ela dele se aproximou e fitou-lhe o olhar. Gervásio sentiu um frio profundo percorrer-lhe a espinha. Não era um frio comum, mas algo mais poderoso, algo que era capaz de congelar seus pensamentos, causando-lhe um enorme desconforto. Agora sim, ele temeu por sua integridade física.
“Não se preocupe meu querido, ninguém morre na véspera, … vim apenas para conversar, … até mesmo porque se a finalidade fosse outra você já estaria morto, … diga-me você desejou morrer e agora tem medo da morte? Como isso se explica?” - Gervásio não entendia a razão daquela pergunta, todos tinham medo da morte, porque ela representava o desconhecido, o inesperado, o acidental, que ninguém desejava, mas que todos sabiam que viria.
“Não seu todo idiota, você tem medo de perder-se desse mundo material repleto de sensações e de estimulações que fazem com que você sinta a sua existência, … isso é o que realmente te aflige...” - A dama tinha uma firmeza resoluta nas palavras e dizia cada uma dela com uma entonação própria que não cedia margem à interpretações outras. Gervásio parou um minuto e após pensar um pouco, não teve outra alternativa senão concordar com ela.
“Se assim é, porque você desejou a morte, … apenas para se livrar da vida? Isso foge um pouco da sua lógica meu amigo...”; aquela era uma afirmação mais preocupante que a anterior. Gervásio parou mais uma vez para pensar e descobriu que jamais fizera uma introspecção a respeito do assunto; sempre esperara pela morte como todos os demais seres humanos, apenas sabia que ainda não era chegado o momento. “Mas se não era chegado o seu momento, porque pensou nela? Foi uma fuga? Ou apenas um desvio tolo e desvairado de quem não sabe exatamente o que quer?”.
Gervásio percebeu que aquela conversa tornava-se cada vez mais densa e profunda. O problema é que ele não era profundo, era superficial, como superficiais eram todos os seres humanos. Neste momento e dama fez-lhe um convite e com um gesto abriu uma espécie de portal de onde tudo podia ser observado.
A cena seguinte chocou demais aquele homem desnorteado: era um leito de hospital onde um moribundo jazia à espera do último suspiro. Apenas uma parcela do homem que fora anteriormente. Fraco e debilitado, nada mais lhe restava, apenas a dor e o sofrimento de uma doença incurável. E naquele momento ele implorou com o olhar rogando a misericórdia da morte derradeira companheira de todos os aflitos. Gervásio tinha o coração apertado e as lágrimas presas no olhar; aquele homem era o seu pai, que ele não conseguira ver despedir-se da vida. O trabalho e as atribulações de seu cotidiano impediram-no de chegar a tempo no hospital. Ele queria desviar o olhar daquela cena, mas uma força mais que ele impedia qualquer movimento, qualquer gesto de repúdio ou de desvio. E, naquela altura ele ouviu as últimas palavras que seu pai dissera em seu leito de morte: pediu perdão por seus pecados e disse que amava seu filho.
Gervásio jamais ouvira, quando em vida, seu pai dizer algo carinhoso ou tão intenso como aquilo que agora ouvia. Sempre fora um homem firme, correto, amável com a mulher, mas distante de seu único filho. Houve um tempo em que Gervásio pensou que seu pai não o amava, que na verdade o odiava, porque ele nasceu e roubou o amor de sua mãe. Porém, o tempo mostrou-lhe o contrário, pois seu pai, assim como ele próprio, tinha uma enorme dificuldade de lidar com as palavras. Ouvir aquilo foi duro e triste, mas ao mesmo tempo, profundo e sincero, rendendo-lhe, ao final a satisfação de saber que seu pai pensara nele com carinho por toda a sua vida.
“Seu pai teve medo de deixar você, assim como a vida que ele desfrutava, … entendeu como todos vocês temem não a morte, mas a perda da vida? … ficou claro para você agora que seu desejo de ontem a tarde não tinha nenhuma razão de ser?”. Ela tinha razão, ele não tinha porque pensar em morrer, … mas, e porque pensou? Não sabia explicar. E nem mesmo podia entender qual a relevância de um pensamento oportunista que lhe passara pela mente em fração de segundos? Para ele viver ainda era mais importante.
“Será que viver é mesmo importante para você? … já pensou que naquele momento você desejou algo contraditório, ambíguo e completamente desconectado da sua vontade presente? Meu caro, não se iluda, se a vida é realmente importante nós não podemos simplesmente desejar a morte que é a súbita e inesperada cessação da vida! Ou você foi hipócrita naquele momento, ou o está sendo agora … pense bem, pois não há duas respostas certas para a mesma pergunta...”
Mais uma Gervásio estava completamente confuso com o que a Dama da Morte havia comentado, … e pensando bem, ela tinha razão, se ele pensou em morrer é porque era exatamente isso que queria! Ou não! Qual é a verdade afinal? Ou ele era mesmo um hipócrita que fingia sentir o que jamais desejara sentir?
Perguntas, apenas perguntas que assolavam sua mente. A noite avançava. Estava quente, muito quente, … mas parecia um calor incomum, inclusive para a época do ano. Gervásio sentia calor, um calor quase sufocante. Sentia o suor escorrer por sua pele, mas não era capaz de vê-lo. Tudo parecia muito estranho; suor que não existia, uma calor sufocante, uma sensação de vazio, e aquele interrogatório.
“Não meu caro, não é um interrogatório, …”, respondeu sua acompanhante ao pensamento que parecia sair de um megafone. “Eu apenas quero entender porque você pediu algo que não desejava e que pode realmente acontecer, mesmo que ainda não seja chegado o momento”.
Como assim?, pensou Gervásio. Como podia acontecer algo que ainda não fazia parte do momento certo para acontecer. Ele não era um peru que sabia que iria morrer na véspera! Então, não podia acontecer algo que ainda não estava para acontecer; principalmente a sua própria morte!
“Você ainda se lembra de suas aulas de religião? Lembra-se de Eclesiastes 3-1,23?” O Criador sempre pede contas do que passou, … mesmo que isso signifique antecipar o inevitável, esse pode ser o seu caso, não é meu caro? Não pense, apenas sinta, … sinta o enorme potencial de um pensamento inadequado, mas não infeliz, apenas desconectado do resto, isso foi o que você fez ontem, … potencializou a sua escolha futura, e antecipou as regras do jogo, … isso não é bom, isso não é aconselhável, … principalmente quando há alguém que está sempre pronto a escutar tudo o que pensamos...”.
Agora sim Gervásio estava completamente confuso! Tudo aquilo era absolutamente insano, insólito, e inacreditável! Ele não queria morrer, aliás não quer morrer! Quer viver! E aquele pensamento foi apenas algo, … inesperado, sem qualquer consistência ou coerência. Ele não podia ser penalizado por um breve pensamento inconsequente. Não era justo.
“E quem é você para falar em justiça!”, a voz da Dama ergueu-se a tom acima do que ela usara até aquele momento. “Você é um ser humano tolo, falho, limitado, finito e sem perspectiva, … como pode falar em justiça, … ou você foi justo com a jovem Caroline?”.
Caroline! Nossa! Gervásio quase teve um ataque quando o nome associou-se a uma imagem de seu passado recente. A jovem em questão, ele se lembrava, havia iniciado estágio na empresa onde Gervásio trabalhava. Era uma moça lindíssima: olhos castanhos grandes e brilhantes, longos cabelos lisos, escuros e de um brilho incomum. Seu corpo então era uma obra à parte. Busto firme que harmonizava com os resto de curvas que a natureza lhe proporcionara de forma tão benevolente.
Sim, Caroline era algo de fantástico, uma expressão única de beleza. E além de tudo, trabalhava diretamente com ele, o que possibilitava uma aproximação além do expediente. Foi curto o tempo necessário para que se tornassem amigos, confidentes, e não houve limitações para que tudo aquilo desaguasse na cama do apartamento do rapaz, com ela desnuda entregando-se totalmente a ele.
A primeira noite foi algo mágico, seus corpos pareciam estar em uma sintonia que fora originalmente concebida nos céus e depois concretizada na terra. Cada toque, cada gesto, cada respiração mais profunda, cada gemido era plenamente correspondido, e os orgasmos dela sucediam-se em uma sequência extremamente apaixonante e envolvente. Gervásio nem podia acreditar que aquela linda jovem havia se entregado de corpo e alma para ele. Era uma dádiva divina! E ele soube tirar proveito daquele relacionamento – em todos os sentidos – valendo-se inclusive de expedientes profissionais para extrair dela uma produtividade em seu favor, … afinal, o que havia de errado e unir o útil ao agradável.
Foi um período maravilhoso, tudo corria de modo tranquilo. Gervásio e Caroline estavam juntos a maior parte do tempo, inclusive e principalmente os fins de semana,onde o sexo e as baladas determinavam o ritmo do dia e da noite. Durante a semana eles trabalhavam juntos, porém discretos e distantes o suficiente para que ninguém fosse capaz de perceber o que acontecia fora do ambiente corporativo. E Gervásio era tão convincente que nem mesmo seus poucos amigos mais próximos foram capazes de perceber o que havia de íntimo e pessoal entre ele e a estagiária.
Tudo corria muito bem, … bem até demais! E o dia fatídico não tardou em chegar apresentar-se com toda a sua fúria de justiça vingativa. Caroline aproximou-se da mesa de Gervásio, e ele percebeu que seu olhar estava diferente, parecia triste e choroso, como se algo acontecera ou estava para acontecer. E o alarme soou na mente do rapaz (será que ela estava grávida!). A jovem curvou-se na direção do colega de trabalho e confidenciou-lhe que aquele projeto em que estavam trabalhando havia vazado para a concorrência e que a Diretoria já sabia disso.
Foi uma bomba que explodiu sobre a cabeça do rapaz. Aquilo era simplesmente inacreditável, impossível mesmo de crer. Gervásio não titubeou e imediatamente pegou Caroline pelo braço e disse aos colegas próximos que eles iam sair para o almoço. Durante o trajeto até um restaurante pouco afastado do prédio que abrigava os escritórios da empresa onde trabalhavam, Gervásio permanecia em um silêncio gritante e impiedoso, ele não escondia o misto de temor e de preocupação que haviam tomado conta de sua consciência. Eles haviam trabalhado muito duro naquele projeto e ele não podia ter vazado para a concorrência; os efeitos na empresa seriam devastadores começando pela investigação dos possíveis culpados (ele e Caroline seriam os mais visados neste aspecto), seguindo-se a demissão em massa e os prejuízos decorrentes da perda de mercado. Gervásio estava tão preocupado e tão irritado ao mesmo tempo que em momento algum perguntou-se como sua colega estava se sentindo.
Caroline, por sua vez, tinha um choro reprimido em sua face; o seu mundo também havia desmoronado. Sobraram apenas pedaços de emoções, restos de esperanças e estilhaços de expectativa. Nada mais seria como antes. Tudo aquilo pelo qual ela havia lutado simplesmente deixara de existir e restava apenas o gosto amargo da culpa que teimava em não sair de sua boca.
Sem qualquer cabeça para comerem pediram alguma coisa e em seguida Gervásio começou um extenso interrogatório. Precisava saber de todos os detalhes sórdidos, e com eles buscar uma alternativa que protegesse a ele e que tirasse sua cabeça da alça de mira da Diretoria. Em nenhum momento preocupo-se com sua companheira; nem mesmo mirou seu rosto por tempo suficiente para perceber que ela queria lhe contar alguma coisa muito importante e que também tinha relação com aquela catástrofe. Ele estava tão aturdido e tão preocupado em safar-se daquela situação que Caroline era a última das suas preocupações – se é que ela representava uma preocupação ou uma ameaça! - e olhar para ela não era o mais relevante naquele momento.
Depois que ela começou a narrar-lhe os fatos Gervásio foi, aos poucos, mudando o jeito de olhar aquela menina indefesa que estava a sua frente. Ela contara-lhe que fora vítima de uma chantagem engendrada por um dos sócios que se beneficiaria do desvio de informações, alegando que ele sabia do relacionamento dela com Gervásio e que caso ele divulgasse o fato eles seriam sumariamente demitidos.
Todavia, Gervásio sabia muito bem que aquilo era parcialmente verdadeiro. Ele não seria demitido já que também tinha algumas informações escusas a respeito daquele sócio calhorda que sempre foi uma ameaça para ele. Apenas ela seria prejudicada por toda aquela história sórdida e corrompida. Caroline seria uma vítima necessária para que tudo voltasse ao normal. Não importam os meios eles estavam plenamente justificados pelos fins – aliás, pelo fim que significava a sobrevivência profissional de Gervásio. E afinal de contas, Caroline era apenas uma estagiária, ou seja, uma peça descartável do sistema e nada mais!
Voltando sua mente ao presente Gervásio observou que realmente aquilo não fora justo seja sob qualquer ponto de vista que pudesse ser analisado. Caroline foi sumariamente demitida e seu estágio prejudicado. Gervásio nunca mais a viu, posto que na tarde daquele mesmo dia, ele negociara sua situação com o sócio corrupto e quando saiu da sala de reuniões a jovem já havia partido para nunca mais voltar. Ele sequer procurou-a depois daquele dia. É bem verdade que tentou algumas ligações para o celular dela, mas conformou-se quando todos as suas ligações foram recusadas.
“De fato meu caro você não foi apenas injusto, foi também cruel, distante e previsivelmente humano! E se você quiser saber Caroline teve um destino triste e trágico, … perdeu diversas oportunidades de emprego, concluiu a faculdade a duras penas, já que seu pai ao saber do acontecido morreu de desgosto – e digo que morreu literalmente – deixando-a largada em um mundo cruel, … atualmente ela é apenas uma triste figura da jovem que já foi, … e tudo isso graças a você! O justo!”, a Dama tinha um tom de voz que oscilava entre o cruel, o irônico e o fatalístico sentimento de descrédito. Ela calava fundo na alma do rapaz que compreendeu que seu desejo de morte do dia anterior tinha mais razão de ser que o Tsunami que varrera o Japão meses atrás. Ele simplesmente destruíra a vida de alguém. Alguém que o amava e que tinha nele um amigo, um confidente e um amante, … de fato Gervásio – naquela situação descrita – tinha sido um crápula e merecia a morte pelo que fizera com a jovem Caroline.
Gervásio pressentiu que algo de pior estava por vir, havia um gosto metálico no ar, como se tudo tivera se tornado pesado e insuportavelmente realista demais. Ele precisava beber algo. Foi até a geladeira buscar uma cerveja. No seu trajeto simplesmente ignorou a presença da Dama da Morte que o observava com um olhar que trazia em si ódio, revolta e pena daquele ser humano pequeno, mesquinho e vazio. Gervásio havia sim desejado a morte, a exata morte que ele merecia. Uma morte que o livrasse de sua impiedosa existência vazia e sem sentido. Ele havia vivido sem metas, sem objetivos, apenas vivendo – ou melhor, vegetando – preocupado com seu próprio umbigo.
A Dama sabia muito bem que o desejo alegadamente inconsequente e também inconsciente dele fora o sinal de chamada que ativara a sua presença ali naquela noite. Gervásio havia pedido pela morte, como se ela fosse a melhor solução para o seu vazio existencial. A preocupação menor de todos os males que ele havia sofrido e impingido às pessoas que o cercaram durante sua vida. Seus amigos que não eram amigos porque ele jamais se importara com eles. Seus familiares com quem jamais manteve qualquer contato mais próximo. Seus pais, Caroline e quem mais viesse pela frente. Gervásio seria sempre um rascunho de ser humano, voltado para seu próprio umbigo e olhando sempre para baixo sem qualquer perspectiva melhor.
A dama compreendia o porque da sua presença: Gervásio já havia morrido, porém apenas ele ainda não se apercebera desse evento. Ele morrera para o mundo vítima de suas próprias ações, e vitimado pela sua própria inconsistência moral e espiritual, onde um emprego, uma oportunidade eram as únicas coisas capazes de motivá-lo e onde suas expectativas resumiam-se a tomar cerveja, rir a toa e usar-se de pessoas próximas o quanto fosse possível e depois descartá-las com se faz com embalagens vazias.
Quando o rapaz retornou da cozinha com uma lata de cerveja em uma das mãos, a Dama sopesou se seria razoável dar-lhe uma oportunidade de redimir-se de seus atos e de repensar a sua vida. Gervásio merecia uma chance? Ele seria uma pessoa digna de oportunizar o seu próprio futuro? Teria livre- arbítrio suficiente para discernir entre aquela vida sem sentido e uma vida repleta de realizações pessoais que construíssem um futuro melhor para ele e para aqueles que ele aprenderia a amar? Ela não podia deixar de crer que mesmo sendo a acompanhante eterna do Ceifador, oportunidades devem ser dadas àqueles que reconhecem o seu próprio valor. Gervásio não parecia preencher esse requisito, porém ela acreditava que não cabia a ela julgar as pessoas, pois alguém superior a ela concedera esse dom ao próprio indivíduo por meio do livre-arbítrio. Restava a ela apenas a possibilidade de ajudar as pessoas a tentarem esse caminho novo e desconhecido.
“Gervásio, eu sei que não é o melhor momento, mas eu preciso lhe perguntar algo, … algo muito importante e que vai definir como será sua vida daqui para a frente, … você está predisposto a meu ouvir e responder com sinceridade?”. Gervásio olhou para a face da Dama com um olhar perdido, o mesmo que ela já vira diversas vezes; o olhar de quem não sabia o que responder porque não sabia exatamente o que significava sua vida dali em diante. Ela temia que mesmo que ele aceitasse a proposta, seria muito árduo para ele enfrentar com fibra um futuro que exigia dele uma postura firme e decidida de quem veio ao mundo para ajudar a mudá-lo para melhor. O produto do Criador tinha também que ser um criador contínuo de possibilidades novas para seus semelhantes, um construtor de oportunidades, … enfim uma pessoa inteira e completa consigo mesmo e com aqueles com os quais dividia uma existência exitosa e plena de realização.
Repentinamente ele olhou com mais firmeza e disse a ela que sim, que ele estava preparado para a pergunta e que estava pronto para respondê-la da melhor forma possível. A Dama da Morte sorriu um sorriso sutil e depois de um olhar demorado em direção ao rapaz levantou-se e caminhou em sua direção. Tocou-lhe o peito com sua mão suave, fria e de uma alvura sem par. Sentiu o coração do rapaz que batia acelerado e perscrutou seu âmago buscando uma faísca de sentimento que lhe sinalizasse valer a pena a tentativa.
O que ela percebeu não lhe pareceu suficiente para acreditar em Gervásio. Era algo muito fraco, quase inaudível; um leve suspiro de esperança, muito parecido com o que sentira de pessoas como Pilatos, Herodes e Judas quando estes encontravam-se à beira do fatal encontro com o Ceifador. Algo que movia em pequenos passos, caminhando titubeante em uma direção que ele mesmo não sabia qual era, fruto de uma eterna incerteza humana, a incerteza de saber quem realmente é e qual a sua razão de existir. A Dama conhecia bem essa situação, mas ao mesmo tempo que considerava a possibilidade de deixar de lado e impor a Gervásio o mesmo triste fim de todos os demais que ela conheceu em situação idêntica, oportunizava imaginar que talvez naquele caso o livre-arbítrio seria mais acurado naquele rapaz desorientado.
Ousar não era uma característica sua, principalmente porque isso não era algo admissível nas funções que exercia junto ao Ceifador, e ela sabia muito bem as consequências decorrentes de qualquer abuso cometido, pois o inferno continuava repleto de almas com boas intenções. Mesmo assim a Dama achou por bem formular a pergunta ao rapaz – e a resposta decidiria não apenas o seu futuro, mas também o futuro de sua alma!
“Diga-me Gervásio, você acha que merece uma segunda chance? Você acha que ter desejado a morte foi um engano, mas que você também compreende que precisa mudar, … ser outra pessoa? Pense bem antes de responder, … esta resposta pode lhe custar muito caro … “, E enquanto falava a Dama mantinha sua mão sobre o peito do rapaz; o dom que ela recebera lhe permitia sentir as palavras no âmago da pessoa e com ele não seria diferente.
Gervásio sentiu o sangue congelar nas veias. Como responder àquela pergunta querendo ser impessoal? Não, não seria possível fazê-lo, para responder aquela pergunta Gervásio teria que fazer algo que jamais ousou fazer: olhar para dentro de si mesmo e prescrutar quem ele realmente era e o que pretendia da vida. E a bem da verdade, ele nunca pensou sobre isso, … apenas viveu. Seguiu seu caminho sem preocupar-se onde ele ia dar, sem dar ou prestar contas sobre seus atos e seus comportamentos. Seguia em frente sem bem saber onde esse caminho iria levá-lo.
O que seria menos penoso?, pensou – aprofundar-se no seu próprio eu e buscar um significado para a vida ou apenas pensar em uma resposta adequada que lhe salvasse a pele? Talvez nem um nem outro, apenas desconversar, … ou ainda, reconhecer sua limitação e entregar-se ao Ceifador, … afinal, “a morte resolve tudo”, …
Gervásio olhou para a Dama, respirou fundo e depois de um momento de hesitação, disse-lhe que sim, que ele realmente achava ser merecedor de uma segunda chance, … que ele precisava mudar e que as coisas deveriam, dali em diante, serem diferentes, e diferentes para melhor. Ele tinha a impressão de que uma segunda chance seria a melhor forma de ele corrigir suas falhas e tornar-se uma pessoa melhor.
A dama sorriu mais uma vez aquele sorriso sutil que sempre tem algo a dizer. E mantendo a mão sobre o peito do rapaz olhou nos seus olhos. Era um olhar profundo, quase cirúrgico, cuja tenacidade podia ser sentida. E esse olhar era um olhar desafiador de quem tem certeza de que aquela não foi uma resposta sincera, mas sim um script pronto que foi criado de improviso para safar-lhe de um destino desconhecido e assustador.
“Não meu caro, você não acha que merece uma segunda chance, …” , começou ela a dizer em um ritmo de voz cadenciado e que ia crescendo de forma delicada mas ao mesmo tempo firme e profunda. “Você simplesmente não acredita no que está dizendo. Parece um texto pronto! Você afirmou que precisa mudar, mas a pergunta é se você quer de fato mudar, … E, meu amigo, as pessoas não mudam, o que mudam são as situações que exigem de nós um novo olhar sobre o que está à nossa frente, … encarar um desafio; e o seu desafio é ser amável, compreensivo, render-se aos sentimentos das pessoas e também aos seus próprios sentimentos. Você, meu querido, precisa olhar para dentro de você e buscar o verdadeiro Gervásio, aquele que chorou pela perda do pai, que lamenta não ter bons amigos, e que não queria tratar Caroline como o fez, … não você não acredita no que está dizendo e isso é muito ruim, pois demonstra que não há segunda chance capaz de tornar você uma pessoa melhor … não Gervásio, você não é merecedor de uma dádiva divina que lhe é dada para construir e não para usufruir...”
Gervásio pensou que era o seu fim. Ele havia falhado e nada mais restava a ser feito. Tudo tornara-se cinza e sem sentido. Uma sensação de derrota e de prostração invadiu seu corpo e sua alma deixando-o inerte como uma massa amorfa e sem sentido que não conseguia compreender o porque de tudo aquilo. Se foi um teste, que merda de resultado! E se foi apenas uma brincadeira, que coisa mais sem graça!
Repentinamente um medo enorme apoderou-se de sua alma, e um frio congelante correu por sua espinha fazendo com que seu coração batesse mais rápido ainda e sua respiração tornasse-se ofegante, quase uma crise de falta de ar. Sentiu que tudo à sua volta estava se esvaindo, e que seu ser parecia esvaziar-se de presença. Ele achava que ia morrer e que isso era algo irreversível! Ele havia falhado, falhado consigo próprio e com a oportunidade que lhe fora dada de viver intensamente, de amar e de ser amado. Tudo agora parecia não ter mais razão de ser.
E quando, finalmente, Gervásio achou que deveria fechar os olhos e entregar-se ao destino que ele próprio havia escolhido, a Dama retirou sua mão de seu peito e começou a rir de uma forma leve e sincera. Não era uma gargalhada estridente, ou algo parecido com aquela risada mortal dos filmes de terror do tipo “B”. Era o riso de quem achava que tudo tinha acontecido como deveria.
A dama olhou para o rapaz e após mais alguns minutos de risos incontroláveis, ela fitou seu semblante quase sem cor e depois de um momento para recompor-se disse-lhe em um tom descontraído: “Não se preocupe Gervásio, afinal hoje não é o dia da sua morte, … apenas um momento para você refletir sobre o que fez e o que não fez. Pense em como seria bom acordar de manhã e perceber que existem pessoas à sua volta que precisam ser melhor observadas. Que existem oportunidades incontáveis de apreciar um breve momento da vida: o canto dos pássaros, a luz do sol, o sorriso de uma linda mulher; pense, meu amigo, o quanto você perdeu, e o quanto deixou de ganhar e proporcionar aos outros de também ganharem. O que levamos dessa existência são as experiências que cultivamos ao longo da vida, os sentimentos que experimentamos e a proximidade que nos diferencia dos irracionais … pense meu amigo, você é um universo a ser explorado e cada um de seus semelhantes também são! Jamais se esqueça disso, …”
Depois de dizer isso ela se levantou e caminhou em direção da cozinha. E quando chegou na soleira da porta, voltou-se na direção de seu interlocutor, sorriu para ele e disse-lhe adeus, lembrando-o de que tudo estava consumado. E Gervásio desesperou-se! Como tudo estava consumado! Ele ia então encontrar-se com o Ceifador? Tudo havia acabado, seu universo tornara-se finito? Que merda era aquela afinal! Ele foi um idiota tratado como tal pelo seu total despreparo com a vida e com as pessoas?
“Não meu amigo, você realmente não entendeu, não é? Você mesmo se deu uma nova chance. Ninguém fez isso por você, pois é você quem decide o que fazer e como fazer! Sua vida é uma dádiva e a decisão do que fazer com ela cabe apenas a você. E você refletiu sobre isso, e pensou muito bem, … agora descanse que amanhã é um novo dia, … e lembre-se de que é importante você procurar por Caroline como você pensou agora há pouco, … Adeus e seja feliz, isso é o que basta!”
Quase que instintivamente Gervásio ainda teve forças para formular uma última questão: porque ela, a acompanhante do Ceifador dera-se ao trabalho de visitar um possível moribundo? Uma pessoa vazia e sem sentimentos? Porque ele? E porque Ela o escolhera?
“Você ainda não entendeu, não é?” - respondeu-lhe a Mulher com um sorriso diferente no rosto desta vez (um sorriso de benevolência) – “É bem verdade que eu raramente visito moribundos, apenas o faço quando isso é realmente necessário e por determinação superior; mas há casos em que as lágrimas e as preocupações de alguém por outra pessoa acabam por me comover; afinal eu já fui humana e sei bem o que sente um coração em sofrimento. E quando isso acontece eu vou verificar até que ponto aquelas lágrimas foram derramadas por alguém que valesse a pena; alguém que tivesse um mínimo de possibilidade de tornar-se um ser humano melhor, ou, ainda que fosse possível, uma pessoa com sentimentos; você precisa entender que são os sentimentos as únicas coisas que levamos desta vida, como também são as únicas coisas que pesarão na balança do destino. Você significa aquilo que você realmente é e não aquilo que você pensa ser, … então, no seu caso eu quis constatar se as lágrimas derramadas por você eram verdadeiras e valiam a pena, … bem, a resposta você já me deu...”
Gervásio ficou mais uma vez perplexo. Quem fora a pessoa que chorara por ele? quem fora a pessoa que perdera seu tempo pensando nele? Quem era essa pessoa que não veio até ele, mas pensou nele? Quem era, afinal!
A Dama mais uma vez sorriu sutilmente e sem voltar sua cabeça na direção de seu interlocutor, suspirou profundamente e disse: “Pense meu caro. Apenas uma mulher sensível teria derramado lágrimas por um homem como você; apenas uma mulher sensível e que sentira-se apaixonada por você seria capaz de chorar pela sua ausência absoluta, …. pense meu caro, … apenas pense, … Adeus mais uma vez e fique em paz, … um novo dia está nascendo e talvez seja um bom momento para recomeçar...”
Assim que a Dama partiu, Gervásio sentiu um enorme cansaço. Um cansaço tão profundo e tão necessário que não houve como resistir, e ele adormeceu ali mesmo na sala. Foi um sono profundo, reparador e extremamente compensador.
Quando o sol pôs-se a pino, veio encontrar Gervásio mal acomodado no sofá. Lentamente ele entreabriu os olhos e olhando para a janela, procurou ordenar suas ideias. Será que aquela longa noite tinha realmente acontecido? Ou foi apenas um devaneio de uma mente perturbada por problemas em excesso?
Sua consciência orbitava entre acreditar em um sonho estranho ou crer que de fato tudo acontecera. Mas havia uma coisa que podia lhe dar certeza do que acontecera.
Pegou seu celular e ligou para um amigo pedindo-lhe o número de uma certa pessoa. Desligou e ligou para o número fornecido. Após três demorados toque uma voz suave e doce atendeu do outro lado. Ele disse alô e pediu para que a pessoa não desligasse.
Pediu-lhe perdão e disse que precisava muito falar com ela. Conversaram por alguns minutos, e assim que ele desligou o telefone, caminhou até o quarto e olhando pela janela percebeu que aquele parecia ser uma dia diferente; não um dia especial, apenas um dia diferente. Um dia em que ele compreendera a importância de quem ele era e sobre como se sentia a respeito de sua vida. Pensou que, de qualquer modo ele valia a pena para alguém.
E assim decidiu que aquele era realmente um bom dia para encontrar-se com Caroline e rever a única pessoa que havia chorado por ele, … sim aquele era um dia especial após uma noite com um diálogo insólito.
E ele decidiu que era hora de agir, … agir para mudar, … agir para sentir!