O Violeiro e o Capeta

Era madrugada alta, a lua boiava mansa no céu escuro do centro-oeste mineiro, bordando na escuridão a beleza rústica do serrado mineiro que naquele verão exauria o forte cheiro dos pequis que caiam abundantes por causa do calor. Um carro de boi vinha na escuridão trazendo um “Sô Zé” e uma “Dona Maria” que ninavam uns molecotes com o vai-e-vem das rodas do carro-de-boi que batiam na poeira e eram iluminadas pela lua. Mas era um carro de boi daqueles, bonitos, cercados de bambus em rede, que serviam pra carrear capim, grãos, gente...

De repente, lá na curva da estrada, passou um vulto rápido.

-Cê viu, Zé!?

- Não Maria, vi não! - Disse o sujeito, cansado! - Vi nada, disse que tava tarde e ocê num quis vimbora! Vi o quê?

- Um vurto, lá na estradinha!

- Êh, e eu tenho tempo pra vulto? Tô é tipurano os meninos aqui! Quase caindo.

De repente, o vulto passou de novo. Os bois ficaram agitados.

- Oh Lá, Zé!

- Êia, Sete Copas! Êia, Pinta Preta! E o sujeito parou o carro-de-boi.

- Cadê?

- Lá oh!

Uma figura estava parada numa das curvas da encruzilhada da estradinha que dava para um bambuzeiro enorme, que por causa da lua projetava sua sombra escura na terra branca da estrada, sombra que batia bem no meio da encruzilhada. De repente, veio um lobo manso e assentou-se ao lado do sujeito.

- Viu? Foi aquele lobinho lá que vurtô na estrada!

- E ocê tá preocupada com lobo? Tá vendo lá na frente não?

- É o Enél?

- Será, muié?

- E se fô?

- A gente pára aqui e espera. Senão, vorta, uai!

- E vamo esperá boa vontade de assombração?

- Deixa de ser besta muié, o Enél né assombração não, Sá! Todo mundo sabe que o Enél é um violeiro que anda por aí nas noites desafiando com sua viola, os capeta que trama mal no mundo!

- Todo mundo fala que é, sô!

E a figura moveu-se rápida e foi parar sob a sombra do bambuzeiro.

- Êia, Êia! - Dava a ordem baixinha, o Zé, como medo de chamar a atenção.

De repente um cheiro forte de enxofre fez com que os dois, tapassem o nariz. Então, lá do outro lado da curva, veio um vulto estranho, que vinha de ré, que vinha de fasta...

O lobo uivou baixinho e então, a tal figura saiu por debaixo da sombra do bambuzeiro e foi parar no meio da encruzilhada. A estranha figura tinha uns cabelos longos, pretos, que caiam sobre os ombros cobertos por uma capeta peluda parecendo pêlos de lobo. Naturalmente, de sob a capa sacou uma viola de madeira escura, mais escura que o ébano e ficou ali, empunhando a tal, como se fosse pronto a um duelo.

A outra figura que vinha de fasta, que andava de costas, parou a uns dois metros do tal violeiro e ficou ali, em silêncio.

Era estranha a figura: tinha nos pés, às canelas, tal qual aos das orelhas, uma centena de chocalhos de cascavel que tiniam quando este andava. Atada à cintura, estava uma cabaça escura, já bastante gasta, tapada por uma cortiça grande. Não se sabendo de onde, o sinistro sacou uma viola também, de madeira tão bem escura quanto a outra, e manteve o silêncio.

- Muié, cê viu o que veio de fasta?

- Vi!

- Mas é O Tar, O coisinha, aquele que anda de fasta?

-Virge, Santa Mãe!!!! - Gemeu baixinho a mulher, fitando aos meninos dormindo inocentes no assoalho do carro de boi.

E a figura enfim, sacando da viola, começou a praguejar:

-Enél! Que cocê qué? Que cocê qué? Que cocê qué? Cádi quê? Cádi quê? Cadi quê?

- Um duelo! - Disse o Enél, empunhando enfim sua viola mais escura que o ébano.

- Num duelo à toa não! Num duelo à toa não! Num duelo à toa não! - Virando-se enfim para o Enél, mostrando sua cara preta, seus dentes afiados e seu olhar medonho.

Dona Maria tapou os olhos e Seu Zé os arregalou. O fato é que Seu Zé era daqueles sujeitos contadores de estórias em beira de balcões de venda, em roda de violeiros, em mesas de truco, ou à beira de fogueiras em currais de noites estreladas. Presenciar aquele encontro lhe era um prato cheio.

-Um duelo, falou saudoso o Capeta. Há quantos eu não duelo? Há quantos ein? Tinha tal Eusébio, a quem venci; tal Renato de quem eu perdi, nunca mais! E tinha tal Libério, que me roubou as cordas pra ficar encantado... Mas um duelo! Há quantos? É o crespo, é o crespo, aquele crespo que todo homem carrega na alma, na alma que quer saber! Quê cê qué sabê?

- Da peste que anda por aí! Da chuva que não cai no norte, dos desatinos no central, desse calor medonho no centro-oeste... Da morreção de vacas no sul... Das caídas das árvores nas florestas... Da sabensa de morte... De morte matada de meu povo. E do povo que mata na guerra... Das terras que morrem de fome, e das terras que jogam sustância fora... Do mundo, dessa dor que dói no mundo.

- Mais já disse, antes que disse... É o crespo, o crespo do homem, e da luta do bem, contra o mal. - Disse.

- Então, um duelo, pra quebra desse mal... Desse mal aí, dessa dor no mundo, desse povo que passa fome, e dos que joga sustância fora, e do Brasil, do Brasil... Êta, Brasil.

Então o Crespudo sacou sua viola e começou a dedilhar: colcheias, semicolcheias, fusas, semifusas, trincas de quiálteras, cinco quiálteras, seis, sete, oito e uma melodia rondou as proximidades, bordando aos ouvidos de Seu Zé lá no carro de boi, e nas estradas vizinhas, nas tocas dos lobos, dos tatus, nos poleiros das corujas nas gameleiras das matinhas ao longe, até chegar ao arraial lá longe. Ao terminar sua melodia de sétimas maiores; O Tar, aquele que anda de fasta, soltou sua cabaça e arrancou a cortiça, deixando-a aberta. E veio dançando uma cobra preta quem chocalhando que nem cascavel, ficando ali, em pé, fitando o Enél, como se preparasse um bote. Esperando o moço tocar.

- Que crespos são esses? É o próprio mal que ronda a alma do homem, ou o é o homem que faz o mal rondar a alma, e fazer os crespos que doem no mundo? Como aquela fome que falei? Ou como as vacas que morrem e dão tristeza, ou como a labuta que não tem valor?

E naquele dia o Enél não ponteou como ponteava. Mas duplicou suas colcheias, triplicou suas semicolcheias e quadruplicou suas fusas; sumindo os dedos nas semifusas requintadas, terminando numa harmonia de acordes em sétimas maiores... Destilando uma tristeza, percebendo que o duelo com o tal não desfaria os crespos no homem, e que o mal, não era O Mal, mas os males, que há nos maus, nas almas dos homens. E que não bastavam duelos com os tais, como fazia às vezes, pra quebrar os males. E sua harmonia soou triste, que a cobra voltou mansinha para a cabaça, tamanha tristeza que rondou a alma do capeta ali de pé.

- É o homem! - Disse o Enél, quando terminou de tocar.

- É, é o homem! - Conferiu aquele Capeta, apanhando sua cabaça e indo sumir de fasta, na escuridão da estrada.

Enél guardou sua viola e chamou o lobo. Então, entraram na estradinha velha que havia atrás do bambuzeiro e sumiram também, pra dentro do sertão escuro da madrugada.

- Muié! Cê viu? - Disse Seu Zé, cutucando a Dona Maria.

- Não, uai! Tô de olho tapado.

- Antão, distapa e vão bora!

- Êh, vai Sete Copas! Êh vai Pinta Preta! - E batia de mansinho lá nos bois.

- Cê vai contá essa lá na venda? Na roda de truco ou nas foguêra do currar do seu Juquinha?

- É muié, essa num conto não. Vão é me chamá de mentiroso. Onde já se viu, duela, sem duelo?

E o carro de boi foi-se, cortando a estradinha com destino ao arraial. De longe, se ouvia lá na estrada uma melodia triste, de um violeiro tocando na beira da estradinha, uma melodia pra lutar contra os crespos, os crespos do homem e as dores, que vão ao mundo.