As Vidas de Christine
De noite sonho.
De noite sonho com o cavalo. Sou a garotinha da fazenda e o cavalo de cor marrom, de bonita crina surge do nada pra visitar. Eu o adoro, amigos de longa data. Tenho medo de perdê-lo, acho que também pensa assim, por isso vêm todos os dias de manhã após o café e fica horas para desaparecer do nada.
Neste lugar meus pais é um casal de idosos, diferente dos verdadeiros que são caretas. Os da fazenda atraem mais amor, respeito e carinho por mim. Talvez nem fosse à garotinha, talvez...
...
- Christine?
João... Sua voz ecoa como sino de catedral gótica. Estamos na casa dele, deitados e viajando. Os pais saíram, jantar de negócios, voltam tarde. Usamos uma droga chamada O Pó da Lua. João disse que é muito boa, comprovo com minha experiência. Encaro-o, seu rosto é uma tulipa em lágrimas, pétalas desbotando.
- Christine?
A voz surge perdida num vazio buraco profundo. Fecho os olhos por um tempo. Abro-os. Sim, agora sim, vejo o rosto normal de João. Alivio? Talvez.
- Está tudo bem? – Pergunta. – Estou viajando...
- Meu Deus, João, eu era o ventre da Vênus e estava sendo possuída pelo mundo! O mundo possuindo-me e gozando...
- Que coisa... Fui passarinho que saiu da boca da criança e que voou para o espaço.
De novo o rosto transmuta. É um pião de ferro que gira rápido. Fico tonta. Deito e respiro. Volta ao normal.
- Sabe. – Começo a falar. – Nunca te contei do sonho que repete várias vezes pra mim.
- Humm. Sonho?
- É. Um lugar, uma fazenda e o cavalo de cor marrom. Não consigo entender como aparece, sei que gosto dele. Sou menina loirinha, que usa vestidos de variadas cores e os pais são um casal de idosos.
- Puxa! Que doideira. Repete muito?
- Bastante. E mais uma coisa: vim do espaço ainda bebê dentro da nave que caiu próximo a fazenda. Os meus pais salvaram-me e adotaram, já que não podiam ter filhos. E sabe o que é estranho, têm mais amor por mim dos que os verdadeiros.
- Que coisa, gata! Não é nenhuma porra de efeito alucinógeno. Não adivinho o que seja, mas que é uma viagem, isso é.
Silencia. Observo o corpo e rosto. A alucinação não terminou. O que me tornarei?
...
Quando chega é só festa. Meu pai não entende, não gosta do cavalo, fica de cara feia. Mamãe fala pra não se zangar, o animal é manso e não perigoso. Papai diz que o cavalo não traz bons agouros, carrega uma coisa terrível e oculta. Eu não ligo, não é o mal, não deseja minha desgraça.
E ao baixar o dorso, hora de passear. Seguro bem firme, deito no corpo cheirando agridoce e corre e salta. Deitada à cabeça de olhos fechados. Não sei o que passa, por onde passamos, o que há na frente e se há pessoas ou objetos. A viagem de olhos fechados e meu amigo quieto. Sinto que terminou ao sentir as patas tocarem o solo. Desconfiada abro os olhos é o lugar que costuma trazer.
Acho que é o paraíso, o paraíso das crianças. Só há crianças.
Adulto somente o moço de energia azul que brilha no corpo. De longo cabelo loiro claro, olhos marrons e barba grande. Usa túnica branca com faixa azul claro, anda de pés descalços e a fala é mansa, calma e pausada. Não sei quem é, gosto da presença dele, a luz azul emite tranqüilidade.
Os cavalos surgem de várias direções trazendo crianças. São meninos e meninas e entendem a razão de estarmos ali. Pra mim ninguém explicou o motivo, dos cavalos e do moço. A melhor coisa é que brincamos. E é maravilhoso!
...
Ao voltar ao normal, João gargalha sem parar. Do que ri? O que viu?
A droga em mim indo embora. O vazio chegando. Preciso de mais, mais um pouquinho. João não cessa de gargalhar. Fico preocupada. E se passar mal, o que faço? Desorientada como estou não chego nem na porta.
Graças! Acalmou. Respiração tranqüila. A droga em mim se apagando... O vazio se próxima. Não quero, quero fugir dele! Preciso de novo.
- João? João, preciso de mais. Dá mais um pouquinho!
Levanta a cabeça e encara. Seus olhos são esferas brancas perdidas no hiperespaço.
- Acabou, Chris. Só arranjei um pouquinho pra gente. Fiquei bolado no que aconteceria na primeira vez. – Explica.
- Ah... Que merda... – Falo desanimada.
- Amanhã terei de novo e a gente usa dobrado.
- Quero agora, amanhã o barato será diferente.
- Por hoje acabou, gata. Lamento.
- Tudo bem. Entendo.
Ficamos em silêncio. João assobia uma antiga canção. Quando era pequena mamãe adorava cantar pra mim. Era a única vez que tinha amor por mim. Desejava que a canção não saísse da boca dela pra não ter tempo de esquecer de me amar.
- João, tem vontade de matar alguém?
- Hã?
- Perguntei se tem vontade de matar alguém? – Repito.
Ele levanta, senta de pernas cruzadas. Sem camisa de peito magro, de shorts cor de abóbora, descalço e o cabelo loiro solto. O efeito da droga também se foi nele.
- Não mataria ninguém, não. – Responde com olhar curioso.
- Eu teria coragem... Sim teria. Sem pestanejar. – Falo.
- E tirar a vida de outra pessoa por quê? Por qual motivo?
- Pela falta de amor que não tem desde que nasceu? A ausência, o carinho e afeto na vida?
- Com o que? Revólver?
- Ah, qualquer coisa, João! Não ligo pra detalhes. E você?
- Não sei, Christine. Sinceramente acho esse papo estranho demais.
- Tudo bem. Desculpa ter assustado com meu papo estranho...
Não entende. Não entende o que passo, não convive comigo, na minha casa, os meus pais. Não conhece meus problemas, angustias, a falta que me faz tão vazia. Não entenderá nunca.
- Quero matar meus pais.
...
É maravilhoso brincar. Meu amigo observa de longe acompanhado de outros cavalos.
São brancos, pretos, caramelos e marrons. São belos de pêlos tratados e brilhantes, robustos e serenos.
O moço os acaricia, conversa, olhares hipnotizados nele, talvez seja uma espécie de dono deles.
E sinto-me bem no sonho, no sonho da menininha. No meu sonho. É a minha outra vida? A vida que não tive e não tenho na realidade? Por que nessa vida sou feliz e na que eu estou não? Difícil pensar, difícil questionar. Amaria se meus pais fossem iguais aos da menina. Eles carregam amor, os meus não aprenderam a absolver.
A brincadeira acaba. As crianças cansadas. Algumas correm e abraçam o moço que retribui com gentileza.
Quem aproxima é um menino, moreno, mais alto que eu, usa roupa velha, o sapato também. No pescoço um medalhão de prata que perdeu o brilho de tão sujo que ficou. Seu nome é Francisco, foi quem disse um dia que a gente conversou. O cavalo que o traz é um corcel, dos mais lindos que vi. Cavalo de rei e de príncipe. O corcel parece desfilar ao andar, magnífico! E quando salta pra ir embora, faz uma bonita posse pelo ar.
Francisco costuma conversar comigo. Acho-o um tanto misterioso. Pela razão das coisas que fala, das crianças e do moço. Entristece-se ao despedir de mim. Prevê que na próxima não me verá mais. Não entendo sua previsão. Tenho medo, insegurança e preocupação.
Hora de partir. Meu amigo se aproxima. Eu o afago com a mão delicada. Abaixa pra que eu possa montar. Monto. O moço nos fita e vem perto da gente. A luz azul em seu corpo irradia cada vez mais. Fita-me com largo sorriso no rosto angelical.
- Em breve, você é seus amiguinhos viverão nesse lar. O tempo se esgota. A aurora aponta no horizonte. O firmamento se abre e é momento de preparar o fim para o surgimento do começo. Em breve, criança. Lembre-se, guarde no coração.
Com um gesto, ordena meu amigo que parta, dá adeus e saltamos no ar e desaparecemos do lugar mais bonito que sonhei.
...
- Quero matar meus pais...
As palavras soam como vidro estilhaçado. Percebo o que pensa. E sei que avancei muito.
Levanto. Estou bem, posso caminhar e ir embora.
- Desculpa. Assustei outra vez. Vou embora. Desculpa.
Caminho na direção da saída, devagar. Aguardo que grite, fale meu nome, diga pra esperar. Não, calado. Em choque com o que acabei de citar. Cruzo a saída, desço a escada. Não há mais volta. Estraguei tudo. Tudo!
Entro no barulho da noite. Luzes e mais luzes. Noite movimentada, gente sozinha, casais solitários, bares e mais bares. Amigos bebendo, embebedando, moças exibidas, garotos rebeldes de calças curtas, são felizes e estão felizes. E eu? Onde encaixo nisso? Farei uma besteira pior ainda. E não haverá nenhuma testemunha. Amanhã. Amanhã lembrarei do ar da noite.
...
Em casa encontro minha mãe hipnotizada nas cores da TV, o controle na mão é uma espada brega.
Não diz nada e não pergunta nada. Também não falo, passo deixando minha respiração. Papai dorme no quarto, pesadamente dorme.
Mamãe me segue no banheiro.
- O que quer? – Pergunto de cara feia.
Ela avança, pega meu rosto com brutalidade.
- O que fez, heim? Essa cara. O que fez!
- Não fiz nada, larga!
Arranco as mãos do meu rosto.
Bate tão forte que vou pra trás. Tonteia-me.
Sai. Quieta pra sala. Envergonha-me e deixa marcada. Bela demonstração de amor pra filha...
Engulo choro e a raiva. Raiva não. A raiva desce salgada no estomago. Banho, cama e dormir. Amanhã um capitulo se inicia.
...
Na viagem de volta fico de olhos bem abertos. Vejo pessoas de aspecto alegre e triste. Há casas, prédios, ruas, florestas e montanhas. Gente que caminha apressada, pega ônibus e trem, que manipulam máquinas e manivelas, parafusos e porcas, lavam e limpam, de dias agitados e corridos. É como um filme rodando na minha frente. Cenas da vida, do cotidiano que eu menina não compreendo. E aparecem os espelhos...
Nos espelhos sou adulta, com revólver e disparo. Cacos estilhaçam e eu desapareço no redemoinho gritando e desaparecendo. Os rostos nos espelhos estilhaçam um a um. Os cacos voam e seguem pra longe.
Papai de passos duros aproxima. Carrega espingarda que mora na parede de casa. Atrás falando e preocupada vem mamãe. Desço num pulo. Meu amigo tranqüilo observa minha família chegar.
- Afasta, Christine! – Ordena papai apontando a espingarda.
Por que está nervoso? Que houve com ele?
- Fique longe dela, animal amaldiçoado!
- Pai!
- Chega, Sebastião! Está assustando todos nós! – Reclama mamãe.
- Não, mulher! Basta! O animal é mau agouro, amaldiçoado que trará desgraça a nossa família. Por isso quero o fim dele o mais depressa possível. Christine, afasta do maldito, anda!
Meu amigo não mexe, nenhuma reação. Encara olhos de pena. Entro na frente e abro os braços. Protejo-o.
- Papai, por favor, não faça, não atire!
- Sai daí, menina. Obedeça!
- Pare, Sebastião, pare! – Grita mamãe.
- Quieta, Maria. Quieta mulher!
- Não permitirei. Não! – Digo.
- Ele trará desgraça, filha. Vi no sonho. Confie, sei que faço é para o nosso bem.
- Sebastião, homem, deixa de loucura. Acabará matando nossa filha. Abaixa a arma, meu marido!
- Não atire, por favor! – Estou chorando.
- Ele não é amigo, filha. Ele encanou, sempre te encanou. - Revela.
Então com a cabeça o cavalo me afasta violentamente para os lados e no grito de batalha corre.
- Sebastião, ouça-me. Cesse antes que seja tarde!
Não escuta minha mãe. Encoberto de fúria empurra-a que cai e machuca. Meu amigo corre, disparo na cabeça, o casco duro violento na cabeça. Desabam um do lado do outro.
- Sebastião, Sebastião! – Mamãe berra descontrolada.
Corro, não há socorro, não há medicamentos. Mortos, mortos os dois. O sonho estilhaça em infinitos pedaços. O capitulo termina.
...
Levantei cedo. Procurei um vendedor no centro da cidade. Desconfiado não queria vender a mercadoria. Tive que abrir a carteira e mostrar as notas. Era tudo que economizei nos meus vinte e três anos. Economia de migalhas. Suficiente pra pagar o valor. O vendedor não pensou duas vezes. Embrulhou cuidadosamente no papel, depois enrolou em dois sacos pretos e por fim com barbante deu nó.
Disse pra tomar cuidado, se eu sabia mexer. Respondi positivamente e agradeci. Não demorei nem vinte minutos pra voltar. Peguei meus pais falando de mim como de rotina. Mas a conversa era outra, não a mesma ladainha e reclamação. Desta vez, havia preocupação. E escutei e escutei o que compreendi e vim pra cá, no quarto, pra ficar em silêncio e chorando.
João ligou três vezes. Perguntou se eu estava bem, que arrumou a droga e que estaria sozinho de noite. Não respondi, quebrei o celular, joguei-o na rua. Desisto.
Falam de mim, de quem realmente sou. E ouvi, ouvi o que queria saber.
- Precisamos conversar. – Disse minha mãe preocupada para o meu pai.
- Conversar o que?
- Christine. O assunto é ela. – Respondeu.
- Aprontou outra vez?
- Não. Não sei. Mas não importa. Estou querendo explicar que é hora de contar.
- Contar? Contar o que, mulher?
- Sebastião, sabe do que estamos falando. Do segredo.
- Não há segredo.
- Pare de fingir de desentendido! Falo do segredo da Christine, de que não é a nossa...
Ele interrompe.
- Cale a boca. Fecha a matraca, Maria!
- Precisa saber, de que não é nossa filha, homem!
- Errado. É a nossa filha. Mesmo não sendo gerada por nós. E acreditará na história de que foi trazida por um...
- Cavalo que surgiu do nada na nossa frente.
- Isso. E que falou e explicou quem era a menina. E num salto sumiu das nossas vistas.
- Sebastião, Christine tem que saber de onde veio.
- Não! Maria, não! Esquece, não estragamos mais a vida da menina.
- A vida dela se estragou há muito tempo. Nós somos culpados. E temos obrigação de revelar.
- Obrigação? Obrigação é ficarmos de bico fechado, é o mais sensato.
- Estamos nos afundando mais e mais na merda. Presta atenção!
- Não seja maluca de contar, está ouvindo? Não seja!
- Larga, está machucando!
- Soltarei quando tiver certeza!
- Solta!
Vem o som do disparo. Alto. A cabeça é o espelho que estilhaça.
BAM!
- Que foi isso? – Ele pergunta assustado.
- Foi tiro. E daqui de dentro. Christine...
Não há mais o que fazer. Acabou. Virei página. Sou caco do espelho flutuando sem direção. Não importa, foi minha escolha.
E vejo o que sou: a menina feliz, a moça estudante, a freira, a rica empresária, a casada e seus filhos, política, presidente e lutadora. Soldada nas trincheiras. Sou as mulheres, contrapartes, outras vidas...
As vidas de Christine...
...
Epílogo:
Fazenda. Lugar distante deslocado no tempo e das lembranças:
- Mãe. Sonhei com a moça.
- Quem Christine?
- A moça. A moça magra de cabelo escuro e curto. Quem é ela?
- Como saber, filha? Quem responde o que os sonhos dizem? São as intervenções divinas e nada mais.
- Eu e ela temos uma coisa em comum, mas não sei o que é.
- Pode ser. Mas esqueça. Adivinha quem chegou e que espera lá fora?
- Ele?
- Isso. Esperando pra brincar e passear.
Saio apressada. Papai resmunga e mamãe manda-o calar.
E tudo continua de onde começou...