O caçador de nuvens
Rita estava cheia daquilo.
Bastava fazer um dia branco e azul e Rogério se transformava a parecer maluco a caça de urubu.
De urubu não. Antes de urubu fosse, como dizia sua mãe Gertrudes: “porque o que ele é mesmo é um caçador de nuvens”.
- Danou-se! – pensou Rita aflita.
Pelo menos foi o que, constrita, sua mãe dissera naquele dia também a sua tia Doura: que ele prometera ir vê-la em casa e sumira, sem lhe dar notícia de onde fora.
- Caçar nuvens, eu diria! – replicou mãe Gertrudes, irmã de Doura, olhando para uma nuvem na hora d’aurora através da janela a parecer-lhe rosto suave a olhar para ela.
Mas aquilo que Rogério dissera poder ser não podia, e então ela voltou a não dar atenção às nuvens naquele dia pedindo a Rita que fosse atrás de Rogério, antes que se desenvolvesse nela uma vontade incontrolável de lhe dizer qualquer impropério.
E aí Rute se foi, sorrindo, sem qualquer tristeza de Dona Gertrudes por estar partindo, embora cheia de raiva nas atitudes.
- Aquele “filho de dona Gertrudes”...! – resmungara Rita, pensando ao mesmo tempo ofender mãe e filho ao dizer aquilo, o coração parecendo urtiga ardendo dentro do peito, doida pra encontrar aquele sujeito e, cheia de ira, lhe dizer a verdade sobre o que acontecera em certa tarde na orla de Manaíra.
- Ah, você está aí! – dissera Rita ao encontrar Rogério deitado sobre a grama, um tanto sério e displicente a não perceber que, além dele, a Terra estava cheia de gente.
– Como ousa me trocar por estas nuvens, seu indecente? – Rita sussurrou, prendendo a raiva entre dentes.
- Você precisa ver isto! – sugeriu Rogério ainda bastante sério, pondo-se de pé a pegar a câmera, antes, presa num tripé.
- Eu não preciso ver nada, “Zé Mané”. Esqueceu que sou sua namorada, é? – disse ela de repente.
- Não, Rita; não esqueci. Não foi por não querer ficar com você que sumi - Rogério pestanejou.
- Sei como é: aquela mesma história que me contou Maria José, tua ex-namorada, com quem você, por amor a suas nuvens, também não queria nada! – esbravejou Rita, constrita.
- Não. Vocês é que vivem no mundo das luas: agora, eu amo vocês duas! – confessou Rogério muito sério.
- Como ousa me confessar que ama outra, seu aluado? Você é mesmo cabra safado! – gritou Rita sem muito babado.
- Não, Rita; você não entende o que aconteceu, o que acontece no céu, e então não imagina agora quão grande é meu amor por você, Maria, Serafina e mesmo por “meu” pequeno eu que, aos poucos, agora se desvanece! – contou Rogério.
- Não conheço tal menina. Serafina? É tua namorada secreta? Olha que mudo tua sina, cravo em teu coração uma seta! – ameaçou Rita fazendo um movimento com o punho fechado, a mão ereta...
- O cupido já cravou amor em mim por ti, meu pudim! – disse Rogério na esperança de lhe amolecer o coração, enfim.
- Olha pra mim, minha vida – ele disse passando a mão no rosto de Rita, sem que ela soubesse o quanto aquilo lhe excitava, como quase sempre quando dela se aproximava.
– Todos vamo-nos transformar em nuvens um dia!
Rita não podia acreditar no que ouvia. “Transformar-nos em nuvens um dia”? Rogério estava louco. Só podia.
- Mas não é que estás mesmo louco! E isso é coisa estimulada por tua tia!
- Não – Rogério interrompeu. – Só não podia te contar que converso às vezes com nuvens em certos dias.
- Aquela velha ranzinza pensa que sabe tudo! Que nem tu, mesmo com pouco estudo! E essa vontade de caçar as nuvens que flutuam sobre a cidade? Tua tia apoia tua insanidade?
- Ela viu o que tu não queres ver!
- Ela assiste muita TV: tem a mente influenciada por tudo o que ouve e vê sair daquela tela danada! Como tu, gosta de alimentar fantasias: ela e aquelas outras tuas tias, irmãs de dona Gertrudes, de quem quero que tu desgrudes a vir morar comigo – disse Rita determinada.
- Contigo? Mesmo sendo eu caçador de nuvens? – perguntou-lhe Rogério a ouvir resposta de Rita, que falou devagar, sofrendo:
- Melhor te ver caçar nuvens do que saber-te ter arrancado de outra um gemido obsceno. Melhor um caçador de nuvens comigo do que eu em companhia de destemido mulherengo.
- E se te disser, mesmo se não quiseres ouvir, que a maioria das nuvens é mulher? – Rogério disse sem temer Rita partir para sempre, sumir.
- Direi que, se continuares malucando, deixarei de te dar aquilo que às vezes mais queres e me oferecerei a outro fulano – ameaçou Rita cheia de si, esquecendo-se que havia como ela outras mulheres ali.
- Se pelo menos considerasse o que tenho a te mostrar... – lamentou Rogério com gravidade, aumentando ainda mais a seriedade.
- Olhar nuvens me dá mal estar. Principalmente durante uma tempestade elétrica. Deve ser genética: Amenemar, um tio meu, tem medo de para o céu olhar porque sente que despencará para o vazio! Pobre de meu tio! – confessou Rita.
– Que têm, afinal, tuas nuvens de tão especial? – perguntou ela, lembrando-se de uma que, devagar, olhara pela janela a flutuar. – Não serão tuas visões motivadas pela mesma doidice de meu tio Amenemar?
- Vê.
E então Rogério mostrou a Rita foto da primeira estranha nuvem que viu na vida.
- Repara! – apontou para o que também lhe parecia um floco de algodão entre todo aquele azulão. – Vê aqui os cabelos da Margarida!
- Isso não é normal: estás a fazer arrepiar meu pelo! Onde já se viu margarida ter cabelo, animal? – disse Rita raivosa, antevendo alguma noite tenebrosa.
- Me endentes-te mal: Margarida não é flor que se cheire, mas espírito de uma mulher que morreu num Carnaval! Confia em mim: a nuvem Margarida me disse isso durante um vendaval!
- És anormal! Como pude me apaixonar por ti? – disse Rita antes de resolver ir para sempre e deixar Rogério de vez sozinho com aquela sua mania demente de pensar que as nuvens eram espíritos, desencarnes de gente.
Porque ele já lhe tinha dito isso a vê-la embasbacada com toda aquela sua loucura, embora, para si mesma prometesse, ela nele não tivesse crido nem creria, quer naquele ou em qualquer outro dia.
- Queres outra vez me convencer que também nós um dia nuvens haveremos de ser.
- Não tenho certeza se eu e tu possamos nos transformar em nuvens um dia, mas é o que indica todo esse modelo de fotografia. Vê, olha, presta atenção neste sorriso.
- Sorriso? Um amontoado de nuvens que se juntam no precipício celestial turbulento, onde vapores de frios ventos provocam todo movimento a fazer com que as nuvens nos pareçam às vezes castelos, nevoentos trens pipocando sem pudor chumaços de fumaças, de onde imaginamos saltar carneirinhos em combustão pelos pastos reluzentes do Senhor do relâmpago e do trovão! – disse Rita então, lembrando-se de como funcionava a imaginação.
– Bem me lembro de todas as formas que vi quando criança pelo apontar de meu pai – disse ainda Rita – um sonhador como tu e outros tantos, que caçam nuvens durante anos e perdem toda uma vida de conquistador daquelas coisas que se deve possuir daqui!
- Acredita Rita: aquela nuvem ali me diz que nada podes possuir – disparou a paixão de Rogério a confessar tudo nuvens habitando todo hemisfério de seu coração.
- Tua declaração se desvanece como aquelas nuvens onde não vês defeito – reclamou Rita sem pestanejar.
- Engano teu: meu amor por ti é agora perfeito!
- Mas bem preferes me trocar pelo que parece haver e não há no ar rarefeito, de que não quero saber. Pois és somente tu que vês o que não vejo, o que não quero ver além das coisas que pensas que existem; além de você!
- Oh Rita: obrigado por me amar assim por toda vida – agradeceu Rogério desmanchando seu ar sério.
- E amaria mais se Amor tivesse medida – declarou Rita, agora, fechando em si mesma qualquer ferida.
- Medita, então, com a grandeza de teu coração no tamanho de todo este mundão e seus mistérios, para muito além do que pensamos existirem ao sair dos cemitérios! – pediu Rogério voltando a ficar com aquele ar aéreo.
- Este teu papo me arrepia e me sinto igual àquele dia, quando fomos à casa de tua tia jantar cogumelos...
- Comer machimelos na sobremesa!
- O que para mim sempre foi uma surpresa: não comemos machimelos no nordeste brasileiro! Isso é coisa de outra natureza.
- De outra cultura, com certeza – disse Rogério. – Mas ela os faz, assim como aqueles cremes, enfeites de bolo que mais parecem animais!
- Tava demorando. Nosso papo ia bem até tal bolo te fazer lembrar o que em tuas nuvens vês! Não te lembras de mim, vais me perder e, se tiveres razão, talvez tu possas me curtir entre nuvens, então. É o que pareces querer. Mas, se me queres contigo como tua amada, não mencione nome de outras mulheres-nuvens: fico consternada.
- Entendo teu ciúme, mas não penses que te trocaria por nada neste mundo cão.
- E por aquela nuvem, não?
E então Rogério virou o rosto e encarou uma nuvem onde se formava rosto lindo de uma garota ex-namorada, que morrera afogada durante uma madrugada festiva, um ano depois que Rogério a conquistara.
- Não acredito: Maria Eduarda!
- Quem, meu bem?
- Aquela é Maria Eduarda, agora um tanto esfumaçada... – apontou Rogério ainda mais sério a pegar a câmera fotográfica e gravar nela aquela imagem inusitada.
-Não vais fotografar aquela nuvem – disse Rita, arrancando a câmera das mãos de Rogério.
- Sério? – disse ele. – Não vais me permitir que fotografe quem um dia esteve aqui?
- Tua ex-namorada não: qualquer outra nuvem, então, menos ela, que morreu donzela e esteve sempre a te perseguir; e mesmo agora te persegue como aquela nuvem ali! – disse Rita, confessando sem querer também ver o que Rogério vira numa nuvem um dia.
- Então tu percebes o que percebo! – exclamou Rogério com algum horror, ao constatar que também Rita era mulher de inventar coisas a mascarar intenções, como mascarava a tristeza com maquiagem de sorrisos e a incerteza com ares superiores.
E tudo somente para aplacar certas dores que, como a maioria, ela também sentia na alma a às vezes querer também logo se transformar em nuvens, dissolver-se chovendo sobre todo o mundo onde novas flores pudessem fazer Rogério também dela lembrar quando não mais ela estivesse naquele lugar. Como ela própria, em segredo, lembrava uma amiga de infância atrapalhada, Manoela, um infantil amor dela, que morrera atropelada ao atravessar a rua, nua de atenção a não perceber vir à sua direção um carro desgovernado que passara em cima dela.
Rita nunca a ninguém dissera aquilo, mas tinha visto o rosto de Manoela ao olhar para cima, entre aquelas nuvens que pairavam o cemitério naquele dia onde, morto, fora enterrado seu belo jovem corpo.
- Então, para o meu conforto, tu também vês o que vejo nas nuvens e não estou louco! – disse Rogério aliviado. – Era o que ouvir de ti queria, pois não bastavam os sins de minha tia a compartilhar comigo revelação de que as nuvens não são apenas vapores sem odores: as nuvens são mesmo conjunto de espíritos reunidos daqueles que, um dia, estiveram sobre este mundo e que, agora, libertos de seus corpos, vagam sobre ele a fecundar a terra ao nascimento de outras formas da Vida! Pois repara que a nuvem Maria Eduarda é a mesma que fora Margarida!
- Então – admirou-se Rita – a mesma nuvem que serei... também será tu!
- Sim, querida – disse Rogério. – Enfim percebes porque estava eu sempre a nuvens perseguir: para te mostrar, e a todos, que, no começo e no fim, como qualquer forma da Vida, somos vapores, nuvens uns dos outros, como agora sabemos, a sustentar-nos ao usufruto da Vida, fazê-la brotar em todas as cores que percebemos!
Rita sorriu, sentindo finalmente Rogério um tanto mais perto de seu coração.
- Depois de tudo descoberto, agora que tudo está certo, podemos ir para tua casa a ver se consertamos nossa asa-delta? – sugeriu.
- Queres agora chegar outra vez mais perto da nuvem Roberto – disse Rogério, de repente enciumado. – De tua parte, muito esperto!
- Não, não – Rita disse sorrindo, sem muita convicção, mas pondo Rogério desarmado. – Não quero rever a nuvem Roberto não. Quero apenas ficar outra vez um pouco mais perto do céu.
- Sempre querendo voltar para casa – observou Rogério sorrindo, não mais parecendo um réu. – Vamos, então.
E aí ele guardou na bolsa a máquina fotográfica cheia de nuvens, recolheu o tripé, beijou e abraçou Rita com força de atleta e deu no pé a preparar o último voo que faria com ela de asa-delta.
Porque logo, unidos como as raízes das árvores no fundo da floresta, Rogério e Rita seriam uma só nuvem a chover, fazendo nascer sobre o mundo nova relva.
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