UTOPIA
Utopia.
Conto. Guel Brasil.
Acabei de ouvir as últimas badaladas do relógio da torre, anunciando o fim de uma era; foram cem longos anos desde o dia do meu nascimento até agora; os últimos cinqüenta anos foram os piores; metade da população ativa que vivia no planeta terra foi destruída; morreram os fabricantes de armas de guerra, morreram os políticos que fomentavam a luta armada, morreram também todos aqueles que não respeitavam os princípios da natureza, fazendo diminuir o número de habitantes em todo o Globo terrestre; em conseqüência disso, ouve uma mudança radical em todos os níveis da sociedade.
Uma sociedade sem guerras, sem nenhum tipo de luta armada, onde todos vivem uma paz duradoura. Todo o globo terrestre entrando numa nova era com as pessoas vivendo mais, e o espectro da morte aos poucos vai deixando de existir.
A terra diminuiu de tamanho; no final da década de dois mil e sessenta ouve um terremoto de proporções alarmantes, de forma que todas as cidades construídas ao longo dos anos, abaixo ou igual ao nível do mar, foram totalmente destruídas, engolidas pelas águas, e em muitos lugares onde era mar tudo secou, alterando o relevo dos mapas nos quatro cantos do mundo. O aquecimento global tão discutido por todas as nações nas primeiras décadas do terceiro milênio provocou o derretimento das geleiras na calota polar, fazendo surgir novas fontes de água doce, e aumentando o leito dos grandes rios.
Estou vendo o despertar de uma nova era, onde tive a graça de acompanhar todas as mudanças, das mais simples as mais radicais, e ao que parece, mudanças outras virão, num salto que a natureza está dando para a sua total perfeição. A longevidade agora é real; não há hospitais, a dor já não existe, e a mais de duas décadas não vejo pessoas morrerem; as novas cidades que surgem são modernas e nelas não há cemitérios.
Todas as pessoas se conhecem; o tratamento que é dado a um, é dado a todos, não havendo divisão por classes sociais. Não vejo ricos e nem pobres; todos são iguais, dando a impressão de uma grande colônia com todas as pessoas vestindo a mesma roupa, da mesma cor, e não vejo nem comandantes e nem comandados. Todas as tarefas estão sendo executadas, e quando um serviço parece ser demais para uma só pessoa, aparecem outras tantas para ajudar.
Tudo é novo agora, moderno, e pelo que eu estou vendo, ninguém é dono de nada; tudo pertence a todos. Vejo apenas dois tipos de transportes; coletivo e individual. O coletivo são grandes máquinas voadoras, tão grandes que ofuscam o brilho do sol por onde passam; silenciosas, de formato arredondado, parecem voar à velocidade da luz, levitando acima dos grandes arranha-céus, e a cada parada, vomitam do seu interior pequenas máquinas voadoras que servem como transporte individual, igualmente velozes, e que circulam ao nível do solo, ou até debaixo dele, ocupando pouco espaço.
E não é dado a ninguém saber qual o combustível que movimentam essas máquinas. Não são numeradas, de forma que qualquer um, que esteja em qualquer lugar no espaço e no tempo, pode lançar mão delas, sem nenhum prejuízo ou desconforto para quem as tenha deixado ali. O número de máquinas é exatamente igual ao número de habitantes que reside em cada colônia, ao nível do solo, ou debaixo dele. Essas máquinas são o cúmulo da perfeição; eu nunca as vi quebradas ou emperradas a ponto de deixar qualquer um sem o seu transporte.
Todas as pessoas que tenham atingido a sua idade produtiva trabalham; tanto os homens, quanto as mulheres; mas como o dinheiro já foi abolido há muitas décadas, não existe moeda de troca e ninguém recebe pelos serviços prestados. Eu sei qual é a minha tarefa, você sabe qual a sua tarefa, e ninguém precisa me dizer o que devo ou o que não devo fazer; todos trabalham a mesma quantidade de horas todos os dias.
Não vejo pessoas criando filhos; vejo uma colônia só para eles abaixo do nível do solo; ali chegam ao nascer, e saem prontas para o trabalho aos quinze anos de idade, e para o mundo aos vinte, graduados em todas as ciências, da mais simples a mais complicada, sem nenhuma intervenção dos pais.
O estado de direito é pleno e igual para todos; não há distinção de classes nem de cor; todos têm onde morar, e todos constroem casas em grandes aglomerados para que habitações não venham a faltar para as gerações futuras; No campo as mudanças foram ainda mais radicais, onde não vi mais a figura do lavrador; mas vi chuva e sol no tempo e na quantidade certa, germinando a semente e dando o fruto a seu tempo onde todos plantam, todos colhem, e todos têm alimentos para comer, num sistema de rotatividade que eu não tinha visto antes.
Mão-de-obra rotativa, cultura rotativa, em espaços que vão a perder de vista, e a natureza dando sua resposta no tempo certo.
A porção que servem para mim, servem para todos; o alimento que me é servido à mesa, também é servido à mesa do meu vizinho; não precisamos nos preocupar com o dia de amanhã, certamente estaremos aqui, teremos trabalho, teremos o que comer, teremos onde morar, e nossos filhos estão seguros para o futuro que lhes aguarda. Não vejo Papas, nem Bispos, nem Padres nem Pastores; não há políticos e a boca dos falsos profetas foi literalmente costurada; a ordem pública funciona de forma perfeita, todos adoram um só Deus, e ninguém faz juízo de valores.
Deixe-me pois acordar, e deixar em paz o espírito do Inglês Thomas Morus (1478-1535), porque até em sonhos tudo isso é impossível.
A Globalização avança, a ciência evolui, até a Bíblia profetiza novos céus e uma nova terra; mas esse mundo utópico está muito além da compreensão de todos nós seres humanos mortais, que insistimos em viver abaixo da linha da evolução, onde a prática do canibalismo global está literalmente no topo da cadeia alimentar.