Hunio, o Calmo – Parte 03
Argos marchava sorrateiramente pelo corredor do castelo. Suas passadas produziam batidas no chão de pedra que ecoavam pelos salões vazios. A noite dentro do castelo era espessa e sufocante, ali os prateados raios da lua não produzia efeito algum. Não fosse os pesados casacos de couros que vestia Argos provavelmente morreria de frio.
A cada porta que passava o capitão dava uma olhadela de esguelha a procura de vestígios. Algumas estavam fechadas, outras desmanteladas, umas davam para escadarias que subiam, ora desciam e para salas e corredores que sabe Deus onde dariam. Quadros pendurados, empoeirados e velhas heráldicas podiam ser vistas no meio da penumbra num misto de sombra e vultos embaçados. Era somente o que restava da dinastia Kor.
- Um bom nome é só o que fica neste mundo – pensava Argos – e tenho que deixar o meu ecoando pela eternidade. Por culpa daquele bastardo eu vim parar aqui. – Seus pensamentos iam de bares entre as bebidas a camas quentes e reconfortantes entre as donzelas. – Mas aquele miserável huno vai me pagar caro. Logo deixou seus pensamentos esvaírem, pareceu ouvir algo.
No fim do corredor e logo à direita, jazia uma velha armadura, imponente e com algumas peças faltando. Principalmente a espada. Não fosse a escuridão que a cercava Argos veria as cores que simbolizavam a dinastia Kor, verde e carmesim. Logo acima uma heráldica esquecida ainda ostentava o nome da família do último imperador e o brasão com a mascote da família, um morcego gigante. – Céus, que animal esse para se escolher por mascote. – Pensou o Capitão.
À esquerda começava uma escada, por uma porta estreita e com um belo arco de pedra a adornando. Foi dali que o guerreiro pressentiu ter ouvido algo. Subiu.
No pavimento superior, não menos sombrio que o de baixo, um vento gelado vinha das janelas sem umbrais. O que restava do que fora belas e cintilantes cortinas de sedas agora esvoaçavam em trapos sujos e embotados, ao sabor da brisa. Argos esfregou os braços.
No centro da sala se encontrava uma grande mesa de madeira polida e sem nenhuma cadeira presente. O único objeto que havia sobre ela era lâmpada a óleo. A sala estava parcialmente iluminada pela lua e um leve fumo pairava no ar.
Argos foi até a mesa e algo lhe chamara a atenção.
- Ainda está quente. – Argos punha a mão sobre a lâmpada de metal. – Ele está aqui, posso pressentir.
Argos sentiu um calafrio começando na nuca e que desceu por toda a espinha. Seu instinto de guerreiro denunciava que não estava sozinho na sala.
Explorou o lugar com os olhos e reparou um lugar mais escuro na sala. Onde as janelas estavam intactas e as cortinas no lugar. Ali não corria vento e estava na total escuridão.
Desembainhou a sua espada e com a arma em punho Argos caminhou até o local. Pôde observar um grande volume por detrás da cortina. Sentiu que alguém o espreitava e que estaria escondido ali.
Mil coisas passaram pela sua mente naquela hora menos a possibilidade de alguma surpresa desagradável. Quando a imagem de Hunio veio à sua mente o seu sangue começou a ferver e uma ira repentina lhe possuiu.
Rapidamente desferiu um golpe certeiro com a espada, de baixo para cima cravando sua espada no flanco esquerdo do oponente através da cortina. O corpo pendeu sem se mexer e tombou para cima de Argos.
Não se ouviu nada naquele momento além de um gemido sufocado de dor.
Argos retirou sua espada úmida de sangue e gordura humana se afastando rapidamente para se livrar daquele peso morto. Ao se afastar o corpo caiu em sua frente com cortina e varão sobre o frio chão de pedra.
Um misto de sangue e poeira inundou o chão e o odor ferroso do sangue subiu às narinas do capitão.
Argos, presto, retirou o pano de cima do corpo que jazia inconsciente.
Sem a cortina pode ver, à luz da lua o estado de sua presa, mas o que viu o deixou aterrorizado e o ódio percorreu em suas veias como o veneno de uma jararaca.
Naquela hora as poucas nuvens que embaçavam a luz da lua se esvaíram por completo e a noite se tornou dourada e majestosa.
- Maldito! – foi o que consegui gritar ao ver, morto aos seus pés, Duncar, seu primo legítimo, atado com ambas as mãos e os pés e com a boca amordaçada.
Meia hora antes Hunio saíra do meio das vilas com um corpo desmaiado sobre as costas. Não fora uma peleja difícil, porém tinha surpreendido o oponente, arte de sua melhor estratégia.
Ainda não havia bolado um plano quando avistou, de longe, Argos adentrar o castelo. Entrou por um atalho que já havia explorado e escolhera uma das salas do andar superior certo de Argos passaria por ali.
Atara e amordaçara o soldado inconsciente e o pendurara num canto escuro próximo a uma das janelas. Passou estrategicamente uma corda em volta da cintura do corpo desmaiado de seu oponente e enroscou na madeira da janela. Para que ele ficasse de pé. E o escondera com as cortinas. Apagara a lamparina que havia deixado sobre a mesa e desceu sorrateiramente pela janela com o resto de corda que sobrara. Depois caminhou e desceu direto para as masmorras.
Carcon já havia revistado aquelas celas varias vezes. Não havia encontrado nada a não serem restos de condenados apodrecidos. Alguma armadura e armas abandonadas e empoeiradas pelos cantos.
Fez mais uma vez uma ronda minuciosa e julgou que não havia mais motivo para ficar ali.
Retirou um grande cachimbo do bolso e o sobrecarregou de uma erva escura e fedorenta. Acendeu-o e sorveu de longas e delicadas baforadas. Começou a lembrar de casa. O rostinho redondo, bochechudinho e cheio de sardas de sua única filha e os cachos dourados de sua amada esposa.
Daria tudo para abandonar a comitiva e voltar novamente para os campos de trigo.
Subiu para o corredor principal e novamente olhava para cada compartimento, cela por cela, para certificar que não havia deixado escapar alguma coisa.
O que viu foi somente caveiras e esqueletos podres em meio a restos de roupas e objetos pessoais que se desfaziam com o tempo. Como há meia hora antes.
Só que alguma coisa em uma das celas chamou-lhe a atenção. Ali havia algo que incrivelmente lhe escapara aos olhos, havia passado por ali três vezes e não havia percebido. Um cadáver quase intacto naquela cela. As suas roupas estavam em bom estado de conservação. Carcon resolveu averiguar. A cela estava trancada, ele teve que forçar o cadeado com a espada que cedeu facilmente.
O lugar era mal iluminado pelos fracos raios da lua que penetravam as masmorras. Ao aproximar do cadáver Carcon percebeu uma poça de sangue recém coagulado no chão em volta do morto. Virou o rosto do defunto com o pé e empalideceu.
- Relipo! Oh meu Deus. – o pânico começou a tomar conta dele. - Fomos todos amaldiçoados.
Assim que Hunio completara sua fuga pela janela desceu pelo muro de pedra e saiu próximo a uma fonte de pedra. Quando começou a caminhar fora surpreendido por Relipo, que havia feito a sua ronda e voltara.
Não fosse a perícia de Hunio diante da agilidade do batedor, o nosso herói estaria morto agora.
Ele se desvencilhou dos ataques do mais jovem membro da comitiva e tentou partir para uma fuga. Estava num local e posição desvantajosos, porém não atacou. Calado só defendia e desviava dos golpes do oponente.
Numa distraída de Relipo, Hunio conseguiu sair daquela peleja e se precipitou a correr. O que foi surpreendido por uma ligeira boleadeira de espinhos que trançou as suas pernas. Caiu num baque seco sobre os paralelepípedos de pedra. Quase quebrou o maxilar.
Quando deu por si Relipo já estava em cima como um leão vai à presa. A única coisa que conseguiu fazer na hora foi sacar seu punhal e lançar contra o oponente. A arma cravou precisamente no lado esquerdo do peito.
Relipo caiu de joelho e vomitou várias golfadas de sangue.
Hunio desceu o defunto por um alçapão secreto que havia descoberto numa noite anterior que dava para dentro de uma das celas das masmorras. Ajeitou o defunto na cela e saiu rapidamente. Subiu pelo saguão e entrou nas masmorras pela porta principal.
Carcon se virou e saiu dali. Jogou sua espada no chão e saiu correndo sentido ao grande corredor. Seu batimento aumentava consideravelmente e Carcon sentia muita falta de ar. Aquele lugar claustrofóbico e mórbido cheirava a maldição.
Subiu as escadas rapidamente. Retirou sua capa e jogou pelo chão. Parou e começou a procurar algo desesperadamente. O silêncio era aterrador e um vento gelado e irritante soprava de fora. De repente ouviu um grito vindo do alto:
- Maldito!
Sentiu uma pancada na nuca e não ouviu nem viu mais nada. Caiu desmaiado segurando um grande crucifixo de prata na mão que havia ganho de sua mãe.
Argos desceu as escadas rapidamente e foi para o pátio principal. Empunhava sua espada e um pequeno escudo de metal. Parou no centro do pátio. Rodava e gritava olhando para todos os lados.
- Apareça! Maldito, apareça!
A lua banhava aquela dança com raios dourados e prateados. Um vento frio e gelado assoviava entre os galhos das árvores compondo a melodia daquela valsa da morte.
Dudain era conhecido como o coração de leão. Tinha modestos dois metros de altura e várias mortes no seu currículo. Todas cruéis sem dó nem piedade. Se o seu alvo era um pai de família, matava todo mundo na casa, não poupava nem mesmo as crianças. Incendiara mais de trinta vilas e cinco fortes.
Voltava do vale onde fora designado para patrulhar. Andava apressadamente e o seu caminhar emitia um ruído característico de uma carroça de mercadores.
Era um perigoso batedor e não temia ninguém. Pelo contrário, era temido por muitos. O seu único erro naquele dia era estar usando um grande chapéu de couro com abas largas.
Nada escapava aos seus olhos, porém naquele dia a morte não era mais sua amiga. Dizem as más línguas que para cada caçador vem o dia de caça e para cada matador vem o dia da sua morte. Ninguém escapa e para aquele assassino não poderia ser diferente.
Dudain já havia varrido aquele lugar quando passara por ali e não havia encontrado nada. Dudain se esquecera de olhar para cima.
Um sibilo cortou o ar e Dudain sentiu uma picada no calcanhar. Logo toda a sua perna direita adormeceu. Continuou caminhando com dificuldade. Tentou endireitar os passos e caiu. Logo que levantou alguma coisa saltou sobre suas costas e Dudain sentiu uma corda sobre o seu pescoço.
Num relance Dudain acotovelou o oponente quebrando-lhe uma costela. O estalo foi bem audível. E apunhalou-o no flanco esquerdo.
Felizmente Hunio se esquivou. Foi o suficiente para escapar da morte, porém não para evitar o golpe. A faca de Dudain fez pelo menos um palmo de corte em seu braço que começou a jorrar sangue imediatamente.
Dudain lançou-se sobre Hunio e este novamente se esquivou. Pôs-se de pé e afastou o máximo que pôde do inimigo. Não pôde caminhar muito. As costelas doíam muito e o braço ardia. Abaixou curvando sobre seu abdome.
Dudain aproximava caminhando com uma perna e arrastando a outra.
Hunio preparou a zarabatana novamente e lhe cuspiu outro espinho. Esse foi no pescoço.
- O veneno do escorpião negro vai lhe purificar a alma e mandar o seu corpo para o inferno – disse.
Dudain largou a espada e pôs a mão no pescoço tateando o lugar. Aquela picada foi mais violenta e as suas vistas embaçaram na hora. Vomitou na mesma hora uma mistura de sangue e espuma. Não viu mais nada.
Hunio se pôs de pé com dificuldade. Só aí então percebeu uma figura, a uns dez metros dali, empunhando uma grande e brilhante espada. Viu quando o vulto caminhou velozmente em sua direção.
Desmaiou...