Os Lobs

01

Faziam quatro dias que Valco partira de casa, três que encontrara a caravana, nada mais acontecera de notável até então. Acampou no topo de uma colina. O sol já havia se retirado dando lugar para uma noite agradável. A lua surgia lentamente e uma brisa suave começava a caminhar. Dançando graciosamente com as folhas tenras nas copas das árvores.

Recolheu uns gravetos e acendeu uma fogueira para assar o jantar.

Não estariam muito longe do Tonel de Prata – pensava - um dia talvez. Iriam cavalgar a noite toda e dormiriam de dia na estalagem, se estivessem com sorte. - Precisariam de muita sorte. – pensou Valco – estavam a três dias na estrada e o tempo fechava lentamente a cada dia, choveria esta madrugada. A lua escondia parcialmente atrás de grossas nuvens escuras.

Comeu uns bolos de carne seca, tomou um último gole de cerveja e deu uma cochilada, eram oito horas da noite.

Ouviu lobos uivando e despertou sobressaltado, pela posição da lua dormira uma meia hora. A noite estava mais obscura. As nuvens passavam rapidamente sob a lua, fracos espectros de luz e sombra pareciam que andavam sobre as folhagens e o chão, estava cada vez mais perigosa aquela planície. Aquele jogo de luz e sombra se projetando sobre as pedras, as folhas, o mato, era assustador. Fazia qualquer um perder a concentração e ser surpreendido por qualquer coisa. Criava certo ilusionismo aquelas sombras. Coisas mortas pareciam reais enquanto coisas muito vivas passavam despercebidas.

Mas Valco sabia muito bem disso. Por isso confiava pouco na visão naquele momento. Valia-se mais dos outros sentidos. E ele sabia que estava sendo vigiado. Não ficou surpreso pelo cheiro que sentira, era algum lobo, acordara com os uivos, estranhava era o fato de que se quisessem atacar alguém, não teriam uivado, uivos eram usados mais para avisos. Para espantar os estranhos, avisando que fiquem longe, ponderou esse fato e ficou mais tranqüilo, mas não menos vigilante.

De repente Valco observou e pode ver uma sombra diferente. Havia muitas ali, mas uma era novidade, misturada com a escura massa espectral, que uma árvore onde estava acampado projetava, Valco viu uma sombra de lobo, quando a lua refletiu por um instante a mais os seus fracos raios de luz. Viu perfeitamente a forma de um lobo parado sobre quatro patas. Nessa hora um relâmpago circulou no céu e um trovão assustador o precedeu.

Seu sentido fez perceber que haviam chegado mais lobos, uns quinze talvez, estava cercado. A uns dez ou quinze metros, Portaventos, calmo, sabia da presença dos lobos, mas não mudou seu comportamento. Um pensamento semelhante a isso fez Valco estremecer.

O líder dos lobos estava ali ao lado da grande árvore, orelhas pontudas e em pé, dois grandes e brilhantes olhos observando atentamente o cavaleiro.

Valco se pôs de pé, desembainhou a espada e manteve-a abaixada com a ponta furando o chão. A luz da lua bateu diretamente na lâmina da espada Gladiventus, seu brilho ofuscou a vista de Valco e fez os pelos do grande lobo enrijecer. Nesse instante uma nuvem cobriu a lua, mas a espada continuou a brilhar. Emitia somente uma luz fraca, mostrava com letras azuis runas gravada na espada.

O grande lobo deu um passo à frente e disse:

- Não será necessário usar de violência, nobre cavaleiro. Guarde sua espada! Mesmo se travássemos uma batalha não sobreviveria, está em menor número.

Valco não respondeu de imediato, depois disse:

- Percebi quinze de vocês, mestre Lobo e se realmente estivéssemos em pé de guerra não restaria um de vocês que uivasse um único sussurro antes da meia noite. - O lobo mostrou os dentes brilhantes, pareciam duas facas seguidas de duas fileiras de agulhas, emparelhadas. Valco firmou o punho na espada.

- Venho em paz, amigo! Que a Fênix abençoe os seus passos e dê tranqüilidade no que resta desta noite. – disse o lobo. Somo soldados aliados de Castélia.

- São belas palavras! – respondeu Valco abaixando o tom de voz – Mas se vamos conversar espero que assumam suas formas verdadeiras.

O lobo se contorceu. Levantou o corpo e ficaram sobre as duas patas traseiras, quase a altura de Valco, suas unhas pontudas e afiadas sobressaíam nas patas. Os músculos e o esqueleto do lobo começaram a tremer, os ossos e as juntas estalaram e o lobo soltou um uivo começando do grave indo até o agudo. Os outros lobos fizeram o mesmo, houve um reboliço de estalos de ossos e músculos se movendo misturados com uivos e gemidos. A transformação de lobo em homem ou vice e versa, era uma coisa medonha de se ver, para não falar pavorosa.

Um vento norte soprou as nuvens e a lua apareceu por inteira iluminando todo o vale, Valco pode observar com riqueza de detalhes as que estavam acontecendo, as garras virando unhas, as presas virando dentes, os pêlos sumindo, as orelhas mudando de tamanho e forma e toda a pelagem da cabeça se transformando em cabelos novamente. Não foram mais que quarenta ou cinqüenta segundos para que um bando de lobos desse lugar para um grupo de guerreiros. O líder do bando de lobos brancos, agora em forma humana, começou a falar:

- Saudação nobre cavaleiro!

- Por que me tem por nobre, mestre lobo? – disse Valco.

- É do sangue real, posso notar. Conheci o rei de Castélia antes da sua morte, meus sentimentos – O jovem guerreiro aproximou de Valco e estendeu-lhe a mão – Desculpe não ter me apresentado antes. Sou Keno Lupus, O Branco.

- Valco, o Veloz, detentor do Vento. – respondeu.

- Este é meu bando. – Disse Keno, apontando para os demais – Ou minha Alcatilha como preferir, nós somos da raça dos Lobs.

- Lobisomens. – disse Valco.

- Lupshomos? – repetira Keno, na sua própria língua – são lendas. Aquelas histórias que saem em noite de lua e comem as criancinhas?

- Fui criado ouvindo essas histórias. – disse Valco, sem mudar o tom de voz – O que são vocês então?

- Homens-lobos de fato, mas somos humanos, temos as nossas famílias e as nossas casas, somente protegemos nossas vidas nessa forma animal. Somos talvez descendentes dos Pastores dos Lobos da época dos seres de luz.

- O que traz nobres lobos às paragens de Castélia?

- A guerra. – disse pesadoramente o capitão – Combateremos juntos. Somos aliados do reino.

02

Valco e o grupo de Lobs conversaram quase a noite toda. Um vento frio começou a soprar do leste, os relâmpagos e trovões que ouviam casualmente estavam agora mais fortes e freqüentes, uma tempestade se aproximava.

- Temos um refúgio aqui perto cavaleiro. Temos que nos abrigar dessa tempestade. Não quer vir conosco? Há lugar para o seu cavalo. – disse Keno.

Valco aceitou o convite, não confiava de todo nos guerreiros lobos, mas estavam em maior número e eram mais fortes e habilidosos, seria perigoso recusar. Afinal se tinham planos de fazer algum mal para Valco já teria feito. Os lobs assumiram a forma animal para serem mais rápidos enquanto Valco fora cavalgando, o refúgio dos lobs não era demasiadamente longe dali, uns quinhentos metros talvez, mas a chuva não esperaria nem poucos minutos que fosse antes de desabar na planície.

Os Lobs, na forma animal, são capazes de percorrer longas distâncias a cerca de 10 quilômetros por hora e são conhecidos por atingir velocidades próximas a 65 quilômetros por hora durante uma perseguição. Valco com seu cavalo não deixava por menos.

A lua sumira de todo e o vento soprava mais forte e mais frio, quem olhasse veria as figuras de um cavaleiro e dezoito a vinte lobos esgueirando furtivamente pelas sombras.

Quando os lobs assumiram novamente a forma animal Valco percebeu uma coisa, um dos lobos não havia tomado forma humana em momento algum, nem se chegara ao grupo ou falara alguma palavra. Valco por pouco não perceberia isso, já que não foram todos formalmente apresentados.

- Sabe Keno, – disse Valco, numa frenética corrida ao lado dos Lobos Brancos – há um fato que me intriga.

- Diga Senhor dos ventos!

- Por que nem todos tomaram forma humana, agora a pouco, quando nos apresentamos?

- Logo saberá amigo. – disse Keno – Sobre isso que falaremos.

03

O lugar de abrigo dos lobs era uma ampla caverna, forrada por capins e palhas secas, vários troncos de madeiras estavam espalhados pelo lugar. Não era muito grande, mas abrigariam suficientemente todos. A entrada da caverna projetava uma descida de dentro para fora, mas depois aplainava lá dentro, a porta era baixa e o teto alargava conforme adentravam. Cabia um cavalo em pé. Após cinco ou seis minutos os viajantes adentraram o abrigo. Os dois últimos lobs entraram com a cauda molhada. A chuva começou a cair numa tempestade repentinamente. Relâmpagos e trovões ribombavam lá fora e a água ligeira e fria começava a formar enxurrada entre as pedras.

- O que se levanta ligeiro, mais rápido cai. – disse um dos lobos.

- Em que sentido diz esse provérbio, amigo lobo? – quis saber Valco.

- Ele se refere à tempestade. – Disse Keno – Essas tempestades repentinas, na velocidade que veio ela vai embora, mas deixemos a chuva lá fora – acrescentou – Temos assuntos mais importantes a tratar.

A caverna estava mergulhada numa penumbra total, Valco não enxergava a ponta do nariz por mais que se esforçasse e ao ver o seu desconforto o capitão Keno disse:

- Enxergamos muito bem no escuro amigo, mas fique à vontade para fazer sua fogueira, temos bastante lenha e palha.

Os lobs, novamente em formas humana, ajudaram Valco a montar a estrutura da fogueira e sentaram formando um círculo, de novo Valco percebera que um deles conservava a forma de lobo e não dissera uma palavra sequer, era um dos que molhara a cauda.

- Como vede amigo, - começou Keno – um de nós não é um lob, em um humano, é um lobo legítimo. Um lobo branco da mais pura raça, das quais nós somos os pastores, chama-se Fiel – Keno chamou o lobo que veio e lambeu seus pés – será seu companheiro de viagem Valco, detentor dos ventos. É o mínimo que podemos fazer para ajudar. Sabemos que seu cavalo irá ficar e Fiel será um ótimo guarda-costas, poderão revezar nas vigílias.

- Não sei como agradecer amigo – disse Valco alisando o pêlo macio do pescoço de fiel – será uma ótima companhia e um belo amigo, tenho certeza.

- Como disse: é o mínimo que podemos fazer.

A chuva cessara abruptamente como antevira os lobos e a lua amarela voltara a brilhar. Três lobs tomaram a forma animal e começaram a correr de um lado para o outro na pastagem, na companhia de Fiel. Valco imaginou que estavam se despedindo de Fiel, brincando uma última vez talvez. Esse pensamento fez Valco estremecer, na verdade Valco não imaginava nem de perto os acontecimentos que se sucederiam nos próximos meses, não mesmo.

04

Fizeram o jantar, Valco assara três coelhos que os lobos caçaram minutos antes, esticou as peles e guardou em seu alforje. Beberam um pouco de cerveja que Valco havia ganhado dos viajantes da caravana, quase tinha se esquecido dela, por fim comeram uns últimos nacos de queijo curado, que trouxera de Castélia. Eram quase duas da manhã, Valco sentira uma fadiga das viagens anteriores e todos estavam cansados.

- Peço permissão para dormir um pouco em seu refúgio, amigo lobo? – disse Valco – Minhas velhas costelas estralam.

- Por favor, amigo. Fique a vontade. – respondera Keno. – Não dormimos muito de noite, nos desculpe se quando despertar não estivermos mais aqui, temos obrigações no Norte.

- Sim, amigos. Boa caçada! Que a Fênix ilumine seus caminhos! E a lua guie vossos pés! – despediu Valco à moda dos Cavaleiros.

- Que o poder da fênix seja contigo até o fim de Gládia, cavaleiro Valco, senhor do vento. – disseram numa só voz.

Os lobos assentaram na entrada da caverna e ficaram ali parados em silêncio por um longo tempo, Portaventos, sem a cela e o arreio, deitou no fundo da caverna sobre a palha seca, Fiel o Branco, deitou nos pés de Valco e ambos dormiram. Os lobos continuaram vigilantes lá fora enquanto a lua projetava suas sombras fantasmagoricamente sobre o chão.

Valco sonhara. Um grande trono era trazido e colocado no salão real do castelo, feito de ébano e carvalho e cravejado com pedras preciosas, detalhes de ouro reluziam e o assento era feito da mais pura e macia lã dos carneiros do Vale de Sião. Valco sentara no trono vestido de uma túnica real e trazia sobre os ombros um manto escarlate. Uma coroa de ouro era trazida numa bandeja e colocada na cabeça de Valco, ele levantou do trono e foi até o parapeito da janela, uma multidão lá em baixo gritava: Viva o rei Valco! Viva a Rainha Fabian!

De repente começaram a uivar e lobos gigantes entravam no palácio real, um grande e cinzento lobo aproximou-se do rei e rosnou com as presas de fora, ia atacar Valco, abaixou e deu o bote, um pulo certeiro, mas a rainha pulou na frente e as presas do lobo lhe cravaram no pescoço. Ela olhou para Valco com lindos e brilhantes olhos verdes, morreu dizendo - Meu rei prometa! Prometa-me! Valco gritou desesperado - Fabian! E acordou.

Não havia lobo algum na caverna nem fora dela, Portaventos acabara de despertar no fundo da caverna e fiel fazia vigília na entrada da caverna, olhou para Valco um instante e voltou a se posicionar, orelhas em pé e sentado sobre as patas com os olhos atentos.

Valco imaginou que seriam umas quatro horas da manhã e era quase isso, três e cinqüenta.

- Chega de lobos por hoje! – disse consigo mesmo – Vamos viajar amigos?

O lobo espreguiçou as patas dianteiras, depois as traseiras e chacoalhou o pêlo, Portaventos se pusera de pé, parecia que disseram um sim.

05

Eram quase oito horas da manhã quando os amigos chegaram à grande Estrada para o Norte, depois de caminharem a madrugada toda pela planície lamacenta. A chuva fora breve, mas bem molhada, o chão só estaria completamente seco depois que o sol aparecesse.

A velha estrada fora construída séculos atrás, era o último marco dos domínios castelanos, dividia as terras de Castélia das Terras leporinas. Era usada por viajantes, imigrantes, nômades e peregrinos, desde tempos ha muito esquecidos, era um ponto muito longe de qualquer civilização. O único lugar mais próximo que, de longe, parecia algo civilizado era a estalagem Tonel de Prata, a última casa amiga.

Do lado oeste da estrada fica as terras de Castélia, começando na estrada, uma ampla planície, passando por colinas, alguns vales e pastagens até o grande Portão Leste. Do lado leste a estrada era margeada por serras, um vasto pântano mais ao sul e uma cordilheira de norte a sul. Do outro lado das montanhas as partes habitáveis das terras leporinas. Ao norte.

Para as terras do leste só existem passagem por três lugares distintos, a grande fenda ao Norte, os Pântanos Nodosos no centro sul e os Portos Sulinos no extremo Sul, situado no Mar do Sul. A não ser que alguém se aventure a escalar as montanhas e atravessar do outro lado, o que seria suicídio e uma completa idiotice.

A estrada velha forma uma linha partindo do sul e vai para o norte com milhares de quilômetros de extensão. Desde onde começa, passam por pontes, vales, pântanos, geleiras, rios e terminava numa fenda ao Norte.

Um sol amarelo e fresco aparecia e se escondia nas nuvens, não havia vento, o dia ia ser quente. Valco e seus dois companheiros viraram à esquerda na grande estrada e seguiram rumo ao Norte. Após caminharem uns quinhentos metros Valco viu uma coluna de fumaça adiante, distavam outros quinhentos metros, era a estalagem Tonel de Prata.

Valco parou, desceu e tirou o arreio de Portaventos, o cavalo soltou o relincho grave, amarrou parte do arreio na cela e outra parte das cordas colocara no alforje. Tirou para fora somente o necessário do alforje grande, coisas que seriam extremamente úteis e que não pesariam muito na viagem, as demais coisas que não levaria colocou em um alforje grande e amarrara fortemente na sela. Despedira de Portaventos com um forte abraço.

- Se cuida, amigo. – disse por fim – aqui nós separamos. Fiel se despediu também da sua maneira, com um grunhido, e o cavalo respondeu com um resmungo, depois pegou a estrada rumo ao sul e cavalgou velozmente. Valco ficou um momento olhando – Boa sorte, amigo! – disse baixinho. Virou-se e começou a caminhar, Fiel o acompanhou.

(continua em: O tonel de Prata)

Sr Marx
Enviado por Sr Marx em 13/06/2012
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