A estupidez é uma dádiva

Existia em uma grande cidade um famigerado assassino que, apesar de muito forte e resistente, era notoriamente parvo. Sua força advinha de um acordo que a muito havia feito com um poderoso feiticeiro. Nesse acordo lhe foi dada imensa força e seu corpo foi coberto por uma indestrutível armadura, quase impenetrável.

Um dia, tal assassino foi convocado por senhor muito abastado para resguardar sua filha, para que a mesma não fosse alvo de seus inúmeros inimigos. A moça era muito bela e era noiva de um rapaz que, aos olhos do assassino, era homem muito mal educado, mas também de inegável cultura.

Aconteceu que, numa traquinagem do destino, o grande assassino acabou por se apaixonar pela moça. Ao perceber seus próprios sentimentos, a primeira coisa que fez foi ir ate o feiticeiro e pedir-lhe que retirasse a armadura (que era colada ao seu corpo e nunca podia ser despida) para que pudesse ter com sua amada uma vida normal. Chegando ao castelo, que se escondia no frio norte, adentrou nervoso o antro e, correndo pelos aposentos em busca do feiticeiro deparou-se com uma cena que lhe prendeu a atenção, através de um vidro pode ver um pequeno macaco que, animado, regia uma imensa orquestra tocando uma musica que, ate para um bronco como ele, soava divina.

Ao encontrar o feiticeiro o assassino perguntou-lhe como fazia aquele macaco tal coisa, e o feiticeiro respondeu-lhe que havia lançado sobre ele um novo encanto, que dava a aquele que o recebesse uma incrível inteligência.

Mudando de assunto, o assassino fez a pergunta que vinha fazer. Mas respondeu-lhe o feiticeiro que, quando havia lhe colocado essa armadura, o tinha avisado que nunca mais poderia ser retirada.

Triste, como nunca na sua vida, o grande assassino rumou para a cidade, e resolveu que assim mesmo declararia o seu amor à bela donzela. Mas ao fazê-lo, a donzela, com desprezo nos olhos, lhe disse que nunca seria possível amar a alguém tão acéfalo e insensível como ele, e que o pai dela só o havia contratado por que sabia que, na sua infinita estupidez, nunca poderia ele tentar nada contra ela. E seu noivo sabia que não corria risco de ser traído com tal baixa criatura.

Novamente triste, e agora mais que antes, ele subiu a mais alta montanha e decidiu que iria se atirar dali, pois não podia suportar tamanho desprezo da pessoa que mais amava. E se jogou. Mas, para a sua surpresa, tão forte era sua armadura que não sofreu sequer um aranhão devido a queda. Queda que facilmente matéria ate o mais forte dos homens. Tentou outras vezes, mas com o mesmo resultado.

Então, sentado ao pe da montanha pronto a tentar novamente ate que conseguisse seu intento, ele lembrou da cena que havia visto no castelo do feiticeiro, e da magia lançada sobre o macaco. E, em um momento muito raro na vida de um homem tão bruto, teve uma idéia.

Voltou ao castelo e disse ao feiticeiro que queria ser alvo da mesma mágica que havia sido usada no macaco. O feiticeiro, relutante, o alertou que aquela mágica ainda era experimental e que podia ter algum efeito maléfico. Mas, na empolgação da boa idéia, o assassino lhe disse que aceitava qualquer risco.

Foi feita então a mágica. E depois de uma ou duas semanas de recuperação chegou o dia de se testar a nova inteligência que lhe tinha sido dada. O feiticeiro o colocou no seu mais intrincado labirinto, e lhe disse que agora ele deveria sair. O assassino perguntou como. E o feiticeiro mandou que ele usasse a cabeça. Sem pensar muito, e com a fúria de um touro, o assassino investiu contra a parede do labirinto usando a própria cabeça e, destruindo parede a parede, encontrou a saída. Admirado, o feiticeiro pensou que talvez a sua mágica tivesse falhado, e percebendo o que acabava de fazer, o assassino também o pensou.

Triste ele disse ao feiticeiro que iria embora, que queria sair daquele castelo que também parecia um labirinto.Foi quando, num estalo, o feiticeiro lhe disse que ele acabara de usar uma metáfora! E que aquilo podia ser um começo. E realmente o era.

A inteligência e a perspicácia do assassino aumentavam mais e mais a cada dia que se passava. Logo ele parou de matar, e começou sua própria organização criminosa. Era agora conhecido como cidadão respeitado, de imenso poder e influencia na sociedade. Acabou por desbancar os negócios do pai da bela donzela que um dia o rejeitara, e agora com suas novas armas, tentou novamente conquistá-la, o que não foi nenhum desafio a sua desmedida capacidade intelectual.

Em pouco tempo estava feliz ao lado de sua amada, tinha grandes posses e era respeitado e temido. E resolveu que voltaria ao castelo do feiticeiro para agradecer pelo bem que a inteligência concedida por ele havia lhe feito.

Mas ao chegar, notou um curioso detalhe. Olhando através do vidro tentou vislumbrar o pequeno símio que lhe havia servido de inspiração para tão bem sucedida idéia e, qual não foi a sua surpresa ao perceber que o pobre animalzinho balançava no meio do quarto com um laço ao pescoço, sufocado. Seu corpo sem vida pairava sobre as varias partituras e belos pinturas, feitas pelo mesmo, que se espalhavam pelo chão.

Chocado com tão hedionda cena, ele foi célere em questionar o feiticeiro sobre o ocorrido ao seu primo primata. O feiticeiro lhe explicou que o bichinho, durante um estranho ataque de fúria no qual rasgou partituras, quebrou instrumentos e gritou loucamente, havia se suicidado com sua própria veste. Quando questionado pelo assassino do por que de tal ato, o feiticeiro lhe respondeu que nada sabia.

Talvez, por agora gozar de enorme esperteza, ou mesmo pelo instinto que ainda sobrara do velho assassino, ele anteviu, no seu intimo, que os problemas não tardariam a chegar. E ele estava certo.

Não foi de súbito, mas pouco a pouco, dia a dia, a vida começou a lhe parecer diferente, já não se divertia, tudo lhe parecia tolo e fugaz. Dissecara de tal maneira o ser e o estar humanos, que praticamente não sentia, considerava os sentimentos uma estranha moléstia, que de nada lhe servia. A mulher, que presenciara a mudança, já não via mais nele aquele que um dia amou, já não conversavam, pois ela agora não podia compreender nem as mais banais considerações que ele lhe fazia. E, por fim, chegou o dia em que o deixou.

Nesse instante, despertando em se mesmo a ultima fagulha de bem querer, ele implorou que ela ficasse, que não o deixasse. Mas ela lhe respondeu que iria voltar para seu antigo noivo, que não era tão rico, respeitado ou estudado quanto ele, mas que a amava e a entendia. Ele agora nada mais era que uma pedra de gelo. Respirava, mas não sentia, e vivia para questões que a ela ou a qualquer outro era impossível sequer tatear ao entendimento.

Triste, como só já havia estado outras duas vezes, o velho assassino observou o seu império e sua vida. Observou as questões que não o deixavam dormir. Observou como o tempo havia passado e como ele tinha mudado. E naquele momento, rico, respeitado, versado em todos os conhecimentos que a raça humana possuía, e ate mesmo em alguns que ela não possuía, ele se viu sem meios de alcançar o seu único desejo. Pois não há dinheiro, posição, feitiço ou ciência que possa criar, ou mesmo destruir, o amor verdadeiro.

E, naquele momento, não por sua inteligência, mas por sua essência, ele sabia exatamente o que fazer.

Foi para o norte. Visitar um lugar em que há muitos anos não ia. E lá chegando e encontrando o feiticeiro, seu velho amigo, ele lhe pediu. Ele lhe implorou que retirasse a mágica de sua inteligência, e não só isso, mas também pediu que, se possível, o tornasse ainda mais inepto do que ele um dia fora. Pois, com raras exceções, esse tinha sido a única época da sua via em que ele havia sido feliz de verdade. E nunca mais queria que passasse por sua mente a maldita idéia de lançar sobre se mágicas de inteligência. O velho feiticeiro, vendo sua angustia, realizou seu desejo.

Tempo depois, ele voltou a matar, voltou a viver e voltou a sentir. E agora sim sentia que era perfeito, não por que o fosse realmente, mas por que em sua estreita mente, não cabiam questionamentos ou definições. Só certezas inexpugnáveis.

Kriador
Enviado por Kriador em 07/02/2007
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