Campo de Luz [Parte 1]

Campo de Luz

Prólogo

Cecília vivia rodeada por sua imaginação. Ela era capaz de viajar distâncias intransponíveis sem sair de sua casa, de transformar a sala de visitas em um templo abobadado de vigas que quase tocavam o céu. Ela era uma garotinha cheia de uma doçura que o nosso mundo já perdeu há muito tempo. Cecília conseguia trazer seus sonhos para a realidade, para lhe fazerem companhia.

Um dia ela ouviu um barulho. Estava em seu quarto e ele veio lá debaixo, do porão. Ela decidiu ver o que era. Calçou seus chinelos, se enfiou em um casaco e desceu a escada silenciosamente. Seus pais e sua irmã estavam assistindo TV. Ela passou pela porta da sala onde eles estavam engatinhando, não queria que eles a vissem. A escada que levava para o porão era comprida e empoeirada. Estava muito escuro. A lâmpada do porão queimara uma semana antes e seu pai ainda não a trocara. Cecília desceu no escuro, o barulho voltou. Ela não tinha medo, sabia que nada de mal lhe aconteceria. Percebeu que havia algo se mexendo no lado oposto ao da escada, no meio de um monte de caixas e de embrulhos velhos. Ela se aproximou e uma voz estranha flutuou até seus ouvidos.

- Que lugar é esse? – a voz rouca e rabugenta lhe perguntou.

- Está em minha casa, no porão – ela respondeu sem saber para onde olhar.

- Aqui é sempre escuro assim?

- Não – ela procurou ao seu redor e encontrou uma lamparina velha. – Você não gosta de escuro?

- Não gosto nem um pouco – ele respondeu rapidamente.

- Darei um jeito então – ela sorriu. – Espere só um pouquinho.

Ela foi até a cozinha sorrateiramente e pegou uma caixa de fósforos. Desceu novamente e acendeu a lamparina. A luz dourada aos poucos expulsou parte do escuro e banhou o porão velho e largado com seu brilho de sonhos. A voz se levantou, era um homem magro e alto, usando um casaco de gala e um chapéu com uma pena verde. A lamparina cobriu o porão com uma máscara fascinante. As caixas se tornaram lindos vasos de tulipas, os embrulhos estátuas de ouro. O piso de madeira gasta se transformou em um espelho de granito branco. A própria Cecília, agora, estava vestida como uma princesa.

- Sou Ocilari – ele se curvou. – É uma imensa alegria conhecê-la, rainha da Luz.

- Não precisa me chamar de rainha. Meu nome é apenas Cecília.

- Como é bom saber que há uma rainha luminosa aqui. Fico mais tranqüilo e aliviado – ele respirou fundo e relaxou. Sua voz perdeu toda sua rabugice e adquiriu tons amistosos, quase carinhosos.

- Você não quer subir? – Cecília perguntou com um sorriso empolgado. – Poderia lhe mostrar todos os salões do castelo, as obras de arte e os animais do estábulo real.

- Ficaria encantando, mas tenho uma recomendação a fazer – ele ficou sério. – Só irei com você se prometer não apagar sua luz. Se ela se apagar irei desaparecer e só voltarei a vê-la quando a lamparina voltar a brilhar.

- Então – ela pensou. – Posso apagar a luz, subir e voltar a acendê-la lá em cima?

- Claro! Seria ótimo não ter que atravessar tantos corredores andando.

Ela olhou mais uma vez para seu convidado e apagou a lamparina. O porão tirou sua máscara e voltou a ser velho, poeirento e feio. Cecília também não estava mais vestida com seu vestido real e o extravagante Ocilari desapareceu.

Capítulo 1

Megu e Naoko estavam explorando o bosque ao redor da casa dos avós paternos de Megu. Há muito tempo não faziam algo juntas e aquela simples brincadeira significava muito mais do que “reconhecimento de terreno”. Estavam se aproximando novamente e se sentiam bem juntas. Naoko tinha 14 anos, era magra e inteligente. Tinha os cabelos pretos e os olhos redondos sob uma franja reta que quase os cobria totalmente. Megu era loira, seus olhos verdes eram grandes e brilhantes. Era mais velha que Naoko, 16 anos, mas essa diferença de idade não importava, eram amigas em perfeita sintonia.

Já haviam andado por meia hora e continuavam em ritmo forte. Não conversavam muito, tinham medo de tocar em algo. Nohri, irmão de Megu e ex-namorado de Naoko. Ele desapareceu há quatro meses. Saiu de casa e não voltou mais. Não deixou carta, bilhete ou qualquer explicação. Ele era muito importante para elas e em um dia, sem qualquer explicação, sumiu. Aquilo produziu um buraco dolorido em seus corações e que ainda estava em carne viva. Ainda não conseguiam falar sobre Nohri e por isso ficavam caladas. Uma tinha medo da outra se encorajar e tocar naquela ferida. Por isso escolheram o silêncio.

- Olhe isso, Megu – Naoko afastou um ramo alto de alguma planta de folhas roxas e revelou uma casa abandonada no meio de um pântano. Todo o bosque era úmido, mas havia regiões alagadas e mal-cheirosas. As folhagens encobriam seus joelhos e as árvores vestiam casacos de trepadeiras, algumas floridas outras espinhentas.

- Precisamos ir até lá – ela olhou para a amiga.

- Claro! O que está esperando.

Elas rumaram para a casa abandonada. No caminho encontraram uma cruz de pedra incrustada em um bloco de concreto, parecia um túmulo. Ficaram assustadas e sua animação diminuiu um pouco. Mas aquilo não as impediria. Continuaram andando no meio da lama cheia de sapos e de libélulas. Havia um zumbido constante produzido por algum inseto que elas ainda não conseguiram ver e que torciam para não encontrar. Depois de se sujarem de lama pegajosa e de andar quase por quinze minutos mergulhadas no pântano, chegaram à varanda da casa. Era muito velha e podre, estava sendo engolida pelo lodo. As tabuas estavam soltas e cheias de cupins. As garotas descansaram um pouco e resolveram entrar. A porta estava aberta, andavam devagar, como se não quisessem ser ouvidas. A primeira sala tinha a mesma aparência decadente da varanda. Os poucos móveis estavam carcomidos e amontoadas nos cantos. Elas passaram por essa sala e seguiram até uma escada.

- Isso que é exploração de verdade – Naoko disse.

- Vamos ter diversão por todo o final de semana – Megu sorriu.

Elas subiram a escada. Ela estava ainda mais pobre que o resto da casa. Naoko ia à frente e quando pisou no quinto degrau ele cedeu.

- Segure-se Naoko – gritou Megu.

Naoko tentou se firmar no degrau seguinte mais ele também quebrou. Megu saltou para frente e segurou em sua mão, puxando-a para trás. Elas voltaram para o térreo.

- Isso realmente pode ser perigoso – Naoko gaguejou.

- Acho melhor tomarmos mais cuidado.

Naoko foi à frente outra vez. Subiu até os degraus quebrados e verificou se o degrau seguinte estava firme. Saltou até ele, se agarrou e subiu. Megu fez o mesmo. Não tiveram mais nenhum problema com a escada. Ela levava a um corredor com cinco portas. Todas velhas e encardidas. Havia alguns buracos no assoalho e por eles era possível ver o primeiro andar. O forro do teto tinha várias goteiras que havia alagado todo o lado esquerdo do corredor. Elas ficaram paradas por alguns segundos, apenas observando o que as aguardava. Megu foi primeiro, desta vez. Escolheu uma das portas e entrou. Algum dia aquilo foi o quarto de alguém. Havia uma cama, um armário e uma pequena cômoda. Sobre a cômoda, que tinha um dos pés quebrados, havia uma lamparina, estava enferrujada e apagada. Os vidros da janela estavam quebrados e centenas de folhas secas haviam pulado para dentro do quarto. Havia formigas por toda parte, comendo as folhas e os móveis.

- Vamos levar isso, pode ser útil. Já está anoitecendo.

Só depois que Naoko disse aquilo é que perceberam o quanto já escurecera. As sombras dentro da casa se misturavam com a noite, se tornando uma única escuridão.

- Eu tenho fósforos, vou acendê-la.

- Mas não deve ter querosene – Megu pensara e engolira seus pensamentos quando viu a lamparina acesa.

Aos poucos a luz ganhou força e coloriu a velhice da casa. Ela colocou sua máscara novamente. O quarto velho se transformou, sob a luz, em um aposento luxuoso. Uma cama de colunas com uma cortina de rendas ao redor, um armário de madeira dourada e uma penteadeira de marfim. As garotas ficaram impressionadas. Não conseguiam entender. No exato lugar onde a luz terminava, onde ela não conseguia alcançar, a casa continuava suja e podre. Naoko segurou na alça da lamparina e saiu do quarto com Megu em seus calcanhares. Quando iluminou o corredor, ela viu um homem. Vestia um casado acolchoado e segurava um chapéu nas mãos. Ele arregalou os olhos ao vê-las.

- Quem é você? – Naoko perguntou com medo, Megu olhava por cima de seu ombro.

- Sou Ocilari, rainhas da Luz – ele se curvou. – O que querem de mim?

Elas se entreolharam, sem entender.

- Posso encontrar o que vocês querem.

- O que? – elas perguntaram juntas.

- Mesmo que vocês não entendam, irei ajudar – ele continuou. – Nohri está em Santana, trabalhando para uma senhora em uma loja de máscaras.

- Como você pode saber? – Megu tomou a frente e perguntou energicamente.

- Posso ver tudo o que está iluminado e ele trabalha envolvido pela luz de centenas de velas brilhantes.

- Isso é verdade? – Naoko juntou-se a Megu.

- É sim e acho melhor se apressarem. Vocês precisam salvá-lo logo.

Ficaram em silêncio. A luz da lamparina piscou e como um pesadelo relâmpago a casa velha saltou diante dos olhos dela e depois desapareceu. A luz piscou outra vez e na terceira se apagou de vez. A noite as abraçou. Saíram correndo e só tiveram tempo de conversar sobre o que ocorrera quando já estavam em suas camas. Quando já estavam limpinhas e longe do pântano. Depois de tomarem sopa quente com suco de melancia e de escovarem os dentes. Cada uma estava em seu andar do beliche, Megu sempre ficava em cima.

- Precisamos ir buscá-lo – Megu começou.

- Já tenho quase tudo pensado – Naoko acrescentou empolgada. – Vamos dizer para seus avós que vamos embora amanhã – ela abaixou seu tom de voz. – Pegaremos nossas coisas e vamos para Santana. Só não sei se isso fica muito longe daqui.

- Eu acho que fica sim.

- Mesmo que fique do outro lado do mundo, irei atrás dele – disse Naoko.

- Você ainda ama meu irmão?

- Sim – ela respondeu meio sem graça. – Nunca deixei de acreditar que ele voltaria.

Elas dormiram e tiveram muitos sonhos. Muitos deles se perderam na noite, mas nenhum foi maior do que a expectativa que agitava seus corações. Mal podiam esperar para poder ver Nohri outra vez.

Fillipe Evangelista
Enviado por Fillipe Evangelista em 04/02/2007
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