Do livro A viola do Lobo!

A VIOLA DO LOBO

... “O diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o

homem arruinado, ou o homem dos avessos!”

Guimarães Rosa – Grande Sertão, Veredas!

A VIOLA DO LOBO

O som estranho e agudo ilustrava a escuridão que açoitava junto com o vento, o sítio pequeno que ficava afastado do Arraial dos Lobos, pelos ladas da fazenda de Zé Clemente. No passeio improvisado por algumas táboas corridas, o pequeno Libério ouvia curioso ao som que vinha do escuro da estrada e parecia hipnotizá-lo...

-"Menino, vem pra dentro! O Enél tá na estrada e daqui a pouco a lua nasce". – disse a mãe do menino, que saiu lá fora e fitou o menino olhando para a escuridão da estrada em frente ao sítio que aos poucos era clareada pela lua nova que rompia o horizonte lá atrás das copas das árvores.

A mulher arrastou a criança pelo braço e essa sem lutar, ouviu pela boca da mãe sua mais estranha história:

"-O Enél meu filho, é uma assombração que toca nas luas. Até capeta tem medo dêle. A sua viola amaldiçoada já assustou muita gente... Esse Lobo hoje tá rondando por aí...! O menino soltou-se dos braços da mãe e correu para debaixo das cobertas quentinhas de sua cama que ficava debaixo da janela de seu quarto. Pela fresta, o som entrava baixinho, e o ninou pela noite adentro.

Enél... Enél... o Lobo... Era estranho como todos queriam conhecer- lhe a história, saber sobre ele, temê-lo, admirá-lo...

De manhã bem cedo, enquanto alimentava os porcos e as cabritas, teve o menino a idéia de visitar "Vô Preto", bem à tardinha, depois da escola.

"Vô Preto é sabido dessas coisas"!

- Mãe, eu posso passar a tarde na casa do Vô Preto? – Perguntou o menino, enquanto lavava as latas na bica do tanque.

- Podê, pode, mais ocê sempre perde a hora quando vai pra lá e fica ouvindo as mentiras do velho.

- Prometo que volto cedo!

- Pois se é prometido! Então vá!

Assim que a aula terminou, Libério saiu correndo, deixando todos os meninos para trás. Desceu a estradinha perto do bosque, entrou pelo trilho sob as assapeixas e logo avistou a taperinha no meio da mata. Devagar, abriu a porta de tábuas e de mansinho viu que o velho estava com os olhos apagados, fitanto o tempo, fumando tranquilo um palheiro.

-"Vô! A mãe falô que ontem o Lobo tava na estrada! – Disse o menino, sem se anunciar, já acostomado àquela maneira.

- "É, êh! Iscuitei! Onti tava duído. É lua, é quando o Enél fica com saudade. Por isso ele toca. Entra aí, meu fiizinho!

- Vô! A mãe disse que o Enél é assombração, mas o sinhô falô que já prosiô com ele. Quem mentiu vô! A mãe ou o sinhô? – Dizia o menino, se aproximando do velho, que ajeitava um velho pilão para o menino se assentar.

- Ah! meu filho, isso é uma história muito cumprida viu?... Enél, Lobo; que nem chamava o povo antigo, já foi moço rico, nobre. Tocadô igual a ele num tem. "Os ôtro chamava ele de Lobo, pruquê gostava de tocá só im noite de lua cheia e prás morena, donde uma vêis, uns cumpanhêro lhe presentiáro com uma capa de coro de lobo. Pra uns foi motivo de chacota, pra outros besteira pura, mai o Enél inté gostô do tar presente. Dispois dês dia, nunca mais ele largô dela. O Enel era violeiro famoso. Viveu na época dos duelos. De longe vinha violêro desse brazirsão todo, para mode disbancá o Enél, mais vortava tudo derrotado. Uma veis, o Enél sumiu. Ninguém sabia donde ela tava. Todo mundo do arraiá ficô precurando ele mais ninguém achava...

Libério assentou-se num pilão próximo ao pequeno fogão a lenha e insistiu para que o velho continuasse.

... Antão o pai, que era antigo laçador de cavalo bravo, fazendeiro de renome, saiu pros pasto afora junto com um monte de pião pra mode achá o Enél.

- E acharam vô?!

- Num deu dois canto de galo e ês acharo o moço, coitado, todo rasgado, arranhado e quase morto. Dispois desse acunticido, nunca mais ele foi o memo. Só uma coisa ficô a mema: A sá viola viu?! Ficô mai bizarro no istrumento. Chegava a sumi o dedo quando tocava. Só tocava pra ele, pra Deus e de veis em quando pra mãe dêle, já véia pra morrê. Isso quando algum sortudo topava pelas istrada cum ele. Num falava cum ninguém!

- Que bicho istragô ele assim Vô?

- Todo mundo falava, inté seu pai dizia, que foi os lobo que invistiro na capa dele, mais otros diz que foi um tar duelo. – O velho levantou-se, foi até a mesinha que ficava no canto da cozinha e retiorou água da talha. Avivou as brasas do fogareiro do fogão a lenha e colocou o bule preto pra ferver a água. Depois tomou um coador de pano encardido pelo pó e colocou a medida que estava acostumado. Depois fitou o menino e diminuiu um pouco.

A criança interessada, cruzou os braços, assentou-se no pilão e pôs-se a ouvir:

- O duelo com o tal "Coisa-Ruím"! Com o “tarzim que anda de fasta”! – Disse, aguçando o palheiro.

- Credo Vô!?

-É! Diz muitos por aí viu, que o Enél ganhô?! Mais capeta, que num gosta de perdê, deu nele um curambeio cum "Unha de gato", aquês ramim aídido cheio de espinhozinho!

Insistira tanto o menino para que o velho confirmasse a história, que pra se livrar da enxurrada de pergundas de Libério, acabara confessando o velho em acreditar na primeira, pois lobo é bicho danado.

-Uma veis, -continuou o velho. - Enél veio das suas costumera viaje pelo Brasir e topô ca sá casa tôda quemada, as prantação arruinada, a mãe e muitos impregado morto! virge! Foi uma tragédia! O Pai do "Moço", ficô maluco e morreu à mingua, invorta da igrejinha, pruquê num aceitava ajuda de ninguém. Isso tudo, proeza de um tal "Senhor," fazendeiro bruto, por causa de demanda de terra. Tentaro acalmá o Enél, mais num consiguiro não! O moço sem sabê o que fazê muntô no seu "Roxão"e saiu galopano pasto afora. E nês dia, meu fio, caiu uma tempestade que nunca se viu! Era curisco e trovão pra tudo quanto era canto do céu. Daí que vem todas as história im vorta do Enél...

... Naquela chuvarada toda, o Lobo tocô inté sá viola dismanchá. E diz, que donde ele tava, era cheio de bambuzero... Batuta, minino! Nessa hora, quando a viola do moço era só pedaço, pulô do céu um curisco que nunca se viu! Sartô pra riba do bambuzero é dexô só "Taquara-preta"! É daí que vem toda a belezura da história.

- Proquê tanto bafafá vô? O Enél morreu?

- Não, viu minino!? Enél tava muito perto não. Mai eu falei "Taquara- Preta"! A coisa mais dificir de acontecê, é curisco caí em riba de bambuzero. Quando isso acuntece, é só proquê merecimento de mistério que nóis num demanda.

Libério com medo fez o sinal da cruz e corrigiu-se sobre o pilão, arregalando os olhos para o velho.

... Enél antão, sabendo do que tava acunticeno correu pra lá! Que pirigo! Pois o danado iscoieu direitinho!

- Uai, tem que sabê, Vô? Sabê o quê?!

Então o velho apontou para uma violazinha surrada que estava encostada no canto da parede e o menino foi buscar.

- Tem uma cantiga, que fala assim... E riscou as cordas...

Corta vento num O Lobo uiva,

Bramido sem fim! A Lua queima,

Ecoa nas folhas o As cordas tremem,

Som da Viola! Os dedos dançam...

Tempestade! Escuridão sem fim...

Bambus! Bambus! Poeira apagada,

Queimados pelo fogo do céu! Tem som na estrada,

Taquara- preta nas É a viola do lobo!

Mãos de Enél!

- Nossa Vô, o sinhô tá cantano dana de bão.

- Tô sabeno disso há muito tempo, minino! – E riu. Depois afinou aqui, afinou acolá e começou a pontear:

“Dizem que nesse sertão

não se viu nada igual

violeiro mais matutuo

tocadô tão magistral...

Violeiro misterioso

O seu nome é Enél

Só penteia a viola

Quando a lua tá no céu

É nessas noites do sertão

Quando a bruma é quase um véu...

O seu som é conhecido

Pois também não há nada igual

Vem com vento num bramido

História de um bambuzal

Que se queimou num corisco,

Ele é o lobo, ele é o tal...

Este moço destemido, toca com taquara-preta

Afinação da Sá viola, que também é toda preta

Dizem que este danado,

A ganhou foi de um capeta!

Mais agora é assombração

Este tal violeiro

Que toca nas luas cheias

Por baixo dos bambuzeiros...

Pra pagá sua vingança, por ter matado um fazendeiro...

Eu que conto esta estória sou um velho e nada mais

Mas o Enél Lobo Matreiro

Não envelhece jamais,

Desde que venceu o capeta

Ele já não morre mais...

Dizem que neste sertão

Não se viu mais nada igual

A Enel o violeiro,

Tocadô tal magistral.

Libério ficou enfeitiçado com a música.

- Essa afinação aí é a tar “Taquara-Preta”, Vô?

- Que nada minino! Essa aqui é cebolão! Mais tem a “Rio abaixo”, otra afinação do “Tarzim que anda de fasta!” Tem a boiadeira, a blemblem, virge, tem um tantão assim... e batia nas cordas, rindo, mostrando as gengivas. – a única viola que é afinada na “Taquara-preta” é a do Enél, e duns certozin por aí, os tarzim, que anda de fasta!

-Mai, se a viola dele quebrô, como é que ele tocô onti? E a tar taquara preta que ele pegô, serve pra quê?

- Carma que já lhe conto!

Quando a prosa é boa, o tempo parece voar. Quando o menino fitou a janela, viu a tardinha cansada querendo cair por detrás da colina lá na frente e os grilos começando a fazer melodia.

O velho riscou a viola e começou a contar:

- Pois naquele dia mêss, o Enel saiu pelo serrado pra isperá a hora certa.

- Vô Preto, já tá ficano tarde sô, e eu vou tê que cascá!

- Ispera minino, premero ocê iscuita, dispois se precisá ieu levo ocê!

Libério exitou por um momento, pois sabia que o velho mal podia andar, escorado pela bengala. Mau colhia os poucos frutos da horta de seu pequeno quintal. O que ele tinha de comer, gavanhava das beatas do Arraial dos Lobos, através de alguma novena.

- Tá bão, Vô Preto. Dispois o sinhô me leva.- falou, sabendo do medo terrível que ia passar ao ir embora sozinho. – Mas ele foi isperá que hora, Vô?

- A hora de fazê o tar trato!

- “Trato”?

- É. Essa tar Taquara-Preta minino, é na verdade um diapasão divino... Enél vortô pra donde ele tocava e pegô sá viola toda petecada e foi-se pruma incruziada de bombuzero e ficô lá debaixo pra esperá o Tarzin, aquele...

- Já sei Vô, o que anda de fasta...!

- É. A lua já tava ino drumi, quando bateu aquela catinga de jatobá quemado, viu menino! Antão se iscutô anssim lá na bêra do rio:

"Ôh Nhazinha!

Vem cantá! Óia

Minha cabaça rimá"...!

...E um som de quemá os ovido sartô ali. Passô um mucadim viu minino, o chão todo se afumaçô e num é que o Coisa-Ruim apareceu!?

Um calafrio rondou o corpo do menino, que esfregou os braços, estranhando o frio repentino. O velho desenhou um sorriso no rosto e de repente fitou-o sério, continuando a estória...

- Pareceu e já veio preguntado: "Quê cocê qué? Quê cocê qué? Cádi quê?! Cadi quê?! E o danado da besta era feio de duê.

Vô Preto soltou uma gargalhada, mostrando as gengivas nuas, ao ver a cara espantada de Libério espremida entre as mãos...

... -E sem medo ninhum viu, Enél tamém sortô sá vois pro home: "Tenho uma proposta!" - Falou o velho, fazendo um enorme esforço para imitar a voz correta e bem falada de Enél.

- "Cádi quê? Proposta é eu que tem de fazê". Falô o capeta. E capeta tem muitos viu Libér. E esse já foi logo falando assim: "Cê curiô cumpanherô meu! Curiô cumpade meu na viola. Danado ocê. Dô nada não!"Sem dá ispricação, Enél jogô sá viola nos pé preto do tinhoso e já foi logo falano: "Eu tenho uma Taquara-Preta"! Arrancô a danada da Taquara da ropa, e mostrô pro pemba, que sartô pra trais praguejano e sacudino os chucaio da oreia... "Milive, danado é memo ocê, que ganhô presente do curisco... E nisso viu, a cabaça do danado chocoalhô!?

- Que cabaça vô? - Perguntou o menino, interrompendo o transe em que estava o velho.

-“Capeta violeiro", anda cuma cabaça; ocê iscuita, e dentro, o Coisa-Ruím guarda uma cassiana anssim óh! êh! êh! Uma bruta duma serpente toda preta e óia só o pareio minino: A tinhosa da cobra, que parece uma cascavér; tem chucáio e tudo, se chama... Taquara-Preta!!!

A magia das palavras do velho fazia-o viajar pelo mundo estranho de Enél. Sentia, via, ouvia... O pensamento vivia.

- E é animar que só capeta da conta de capiturá, por causa de quê, as danada faiz suas toca im cumpizero profundo e só ês é que consegue arcansá tar lugá... Antão, quem tem sorte de ganhá um presente do curisco, leva a danada da Taquara pruma incruziada e faiz iguar ao moço. Se o Pemba agrada do tar, ele sorta a bichana e faiz ela dançá prú riba da taquara. Aí ela fica incantada e o violero pode afiná sá viola na tar afinação... Quando o Pemba viu que a sá cobra se agradô do moço, sartô pra frente ca sá proposta tamém: "Ocê vai tê a dança da minha serpente na sá taquara, mai dispois suncê tem que tocá com eu... e se eu tocá mió qui ocê, cureio..."E o danado do moço aceitô... Põe no chão! põe no chão! falô o pemba cô Enél, e ele jogô a taquara no chão. Antão o capeta se agachô e distampô a sá cabaça. E lá de dentro, saiu a cobra serpentinano ali, serpentiano delá numa dança terrível. Se amunhô na Taquara do Enél e encantô ela numa dança ainda mais terrível enquanto o tarzin ponteava uma moda assombrada. E o capeta antão assoviô bem finim pra cobra, e ela obedeceu sartano pra dentro da cabaça. E nisso o danado do coisa ruím já foi sacano da sá viola e gritô -"Agora cê toca, agora cê toca se não apanha! Mais o Enél de novo sortô sá vóis: "Minha viola se desfez com o choro do céu." Falou o Enél todo poético, pruquê pemba gosta dês tipo de coisa.

... Mais como pemba num aceita discurpa tamém, bateu cos pé preto no chão, sacudiu as chucaio das sá zoreia e deu uma "guspida" na viola no chão, que se apregô todinha de novo e já afinadinha. Antão o Enél catô sá viola e viu que a cuspida do capeta dexô ela toda prêtia. Tão prêtia, que inté duia os óio. Guardô a Taquara e já foi logo tocano. E os dois tivero uma luta terrível. Era som pra lá e pra cá. O Enél deu maió concerto...

- Mai Vô, cumé que é esses pemba! É tudo iguar o padre fala? O sinhô fala tão isquisito!

- Não, minino. Pemba né essas coisa que o Padre Bento fala não! Os tarzin, é home que se amarvadô, que deu pra trás! É os tarzim que anda de fasta!

- Mai então o Enel é pemba, Vô?

- Vixe minino! Né não viu, né mai não! Largô disso. Vortemo: Antão, dispois que tocaro, o Enel, Eh, Eh! Dispois na destreza, Enél tirô da ropa um "ramo", sartô nês pemba de coro e tomô a cabaça dele. Era unha de gato! O danado tamém era tinhoso. E o Pemba se disfeis que nem luiz de lamparina véia!

- Mai o Pemba num luitô pra consegui sá cabaça de vorta não?!

- Cumé que luita minino, cumé que luita?! Coisa-Ruim sem cabaça nem serpente, é coisica de nada. Largô inté poera no chão...

Libério, que a cada minuto ficava mais encantado, esqueceu-se do tempo e de tudo, apaixonado pela história tão fantástica que passara-se ali, naquele sertão que ele pensava ser tão sem graça.

... -Naquela mesma noite viu libér, -Continuou o velho, acendendo de novo o palheiro. - Enél saiu pelo serrado iscuro, pra mode aprendê a tocá na tar Taquara Preta. Ele se assentô num tôco de piquizêro e começo a tocá aquele som que ficô ainda mais maravioso. E num é que o danado aprendeu rapidinho! E cumo se encantado, tocô até se perdê no tempo. Quando ele levantô a cabeça se livrano do encanto da sá música, viu ele que tava rodiado por um monte de lobo. Cada quar mai feroiz e mai bunito... E um "criolo", que todo mundo caipira chama anssim, mai que na verdade é o chefe da matilha, se achegô perto do Enél rastano um trenzim isquisito. Era um coro viu?! E presentiô o Enél cum ele. Coisa mai bizarra né minino?! Um corô tão pretio, que inté lumiava. Enél passô ês couro pra cacunda sobre a capa é nunca mai largô dele tamém! êh! êh! êh!

- E agora ele anda por aí assim vô?!

- Não! Premero ele num se esqueceu do que fizero ca sá famía não, vui?! Foi aí memo que cumeço:

***

As estradas daquele sertão, estavam repletas de poeira,bordadas por bois, cabras e galinhas, que peões tocavam com varas de bambu.

O viajante, com sua capa de couro de lobo, observava os peões com seus gritos altos. Ali não deviam conhecer o berrante, peça importante no trabalho de boiada. Faltavam-lhes também alguns cavalos. Este tipo de trabalho feito a pé, é mais árduo do que parece ser.

Seus pés calejados mostravam-no a rotina marcada e cascuda: Eram sofridos pela vida.

- Por favor senhores! Por acaso, vós sabeis onde mora o SENHOR da fazenda? - Perguntou o estranho, ajeitando a enorme capa de couro e uma viola, que encapada com a tal, desajeitava-lhe a caminhada.

- Fica a uns dois quilômetros daqui, seu moço!-Falou entusiamado um dos peões,que logo foi reprimido pelo companheiro:

- "Já lhe disse pra não falar com estranhos? - Retrucou mau humorado.

Caminhou em silêncio o viajante, com sua viola enrustida no couro de lobo; fumando ofensivamente o seu palheiro, deixando os peões para trás.

Uma plaqueta mau pintada, fixada num mourão de cerca corroído pelos cupins, contava-lhe seu paradeiro: "FAZENDA DO SENHOR"!

Por ele, passou o primeiro peão, tocando as cabras; e deu-lhe um sorriso discreto, em seguida passou o outro; ainda com a cara fechada, tocando os bois, descontando nos pobres seu mau humor.

O enorme chapéu de palha, estranhamente escura, ocultou o olhar cortante do violeiro, que iluminava-se vagamente pelo sol fraco que se punha.

Um grito fino rompeu o ar. Estrondou barulhenta a porteira, fazendo com que a caixa da viola por dentro da mochila improvisada, ressonasse em sons ocos e abafados.

Ali, os homens usavam cavalos, mas não usavam o berrante... Homem abastado em dinheiro, tinha tudo nos conformes...

- O que quer aqui estranho? - Perguntou um dos peões, que aproximou-se bruscamente com seu cavalo, fazendo-o recuar-se um pouco.

- Vim ver o Senhor da Fazenda! - Falou o estranho, mostrando ao capataz o vulto da viola sob a capa, persoadindo-o a deixá-lo passar.

- Pode me seguir! - Falou esnobando-o. "Esses artistas mediocres!" Pensou, sem olhar para trás.

- Este artista quer vê-lo. - Falou o capataz, depois de terem percorrido os metros que separava-os da varanda.

De dentro da rede, o gordo coronel da fazenda levantou-se preguiçoso, e viu pela margem da rede a figura estranha e cabeluda a observá-lo.

- Deixe-nos a sós! - Falou o Senhor, dispensando o Peão.

- Em que posso servi-lo? - Olhou. - Ou me servirás? - Perguntou novamente, quando viu a cabaça balançar. - É pinga?

Em silêncio, este foi desencapando o instrumento:

Surgiu então um braço negro, e em poucos segundos depois, uma estranha viola negra fez-se surgir do couro de lobo; refletindo em seu tampo o rosto feliz do Coronel, que imaginava inocente poder ouvir um som gostoso de um instrumento que tanto apreciava: Uma viola de arame!

Retirou algumas moedas amareladas e atirou-as ao chão...

Da porteira donde estava descançando o capataz, e dando água a seu cavalo, ouviu-se estranhos sons bizarros e agudos, que fizeram-no tapar os ouvidos. Cortaram o ar por mais alguns segundos e descançaram-se pelo vento, aliviando o capataz, que levantou-se do chão donde estava.

Este, rapidamente montou em seu animal e seguiu num galope apavorado para a varanda, onde estavam o Coronel e o Violeiro.

Quando lá chegou, avistou confuso o coronel caído ao chão, com os ouvidos jorrando poças de sangue, afogando as moedas num lamaçal vermelho.

Deu o último suspiro, quando o capataz tomou-o nos braços.

Procurou com os olhos tentando inutilmente rastrear o violeiro que cometera o tal crime, mas este desaparecera com o vento, sem deixar rastro algum.

Pela estrada escura, caminhando sozinho, o violeiro desapareceu, fugindo do seu destino e da sua dor...

... Antão Libér; Enél saiu pela estrada, com a noite quase chagando. E uma revorta sercô seu coração, pruquê achô que tava lôco. Pela premera e última veis, ele usô a sá viola pra mode matá e pior, por vingança viu?! Vortô lá pro bambuzero, donde tinha topado cô pemba, e tocô como nunca! Naquela noite, ninguém cunsiguiu drumi direito, cum a música do Enél assartando os ovido do povo lá do Arraiá dos lobo. E quando ele parô, a lua já tava baixinho, quase incostando no horizonte. Naquela noite minino! Cruiz credo sete veis!

O velho então arregalou os olhos, parecendo confuso.

-O Quê que foi vô, o sinhô tá bem ?! - Perguntou Libério, ajeitando-lhe o chapéu de palha surrado, que quase caiu.

- Maió doideira Libér! Era anjo e capeta pra todo lado! Assim que o Lobo parô de tocá, um pemba violero vei tocando uma música terrrível e gritano nos ovido do moço: "Ocê agora é meu, ocê agora é meu!!!

Libério encolheu-se sobre o pilão.

- Mai o Enél nem ligô. Tocô uma música mai terrível de bonita, que o capeta se encoíeu que nem ocê aí agora. E o pembinha se incoieu tanto, que só se ouvia a sá cabaça chocoalhano num dueto com Enél, o Lobo... Antão minino, - Falou convulsivamente Vô Preto, reacendendo novamente o palheiro troncudo. - Um facho de luiz veio vindo do céu entre o Lobo e o Pemba. Enél num parô de tocá tamém não, e uma vóis saiu lá da luiz e falô:

"Pela Lei da verdade,

Por um fio de realidade,

Terás a eternidade"!!!

...Dizeno isso, o facho de luiz sumiu divagarzinho, enquanto o Lobo ainda tocava; cumo se nada tivesse acunticeno, sem da ninhuma importância práquilo. Dispois, parô di tocá e sortô uma gargalhada: "Agora é você"! Falô o Enél pro pemba, que se levantô mostrano todo e seu cinismo:

“Sete veiz nas sete lua ocê há de tocá

óia bem pro seu rosto, pois velhice

não vai enxergá...

... Êh! Êh! capeta num sabe faze poesia né minino?!

- Uai vô?! E o Enél?

- O gêno daquele moço era terríve: Atormentado o quê! Sortô otra gargalhada e otro bramido da sá viola, na tar afirnação que ele já duminava que nem um dotô!

Libério remexeu-se mais um vez, procurando uma posição mais confortável, sentindo uma certa agonia. Já se viam vaga-lumes rondando as proximidades da choupana. Levantou-se e fez menção a si mesmo em partir, mas fitou o olhar distante do velho, que rodava o palheiro nos lábios. Perguntando-lhe o que se passava, assentou de novo no pilão; já sentindo uma certa fadiga pelo assunto. O velho, sem dizer nada, serviu-se de um "gole" de café e ofereceu também a Libério; mas este preocupado, nem percebeu. Apenas observava o escuro, tomando coragem para partir...

- Vô, tá na hora sô, a mãe deve tá preocupada! - E um sorriso sem graça nasceu em seus lábios finos. Depois fitou os vaga-lumes novamente, tentando encontrar uma solução para seu pequeno problema. O velho, percebendo a agonia do menino, calçou suas sandálias novas e pegou seu meio cajado:

- Antão vamo, uai! Pega sás coisa, -Falou o velho, não se importando em fechar a única janela da cabana de um só cômodo.

Evitaram a estrada empoeirada. Preferiram seguir pelo trilho: Vô Preto por achar ser um bom atalho; Libério por medo, pois não queria encontrar-se com a história do velho pela estrada.

A vegetação estava toda manchada pelas sombras negras, que desbotavam o verde vívido para um verde lodo. De vez em quanto, ouviam-se alguns ruídos pelo mato; servindo de pesadelo para o menino, que se chicoteava para os braços finos do velho.

De repente, toda aquela escuridão começou a ser banhada por uma luz branda, dando uma certa claridade aos olhos dos dois. Era a lua cheia, que nascia do horizonte quebrado pelas silhuetas das árvores.

Através das galhas esparsas dos pequizeiros, o menino viu os raios prateados iluminando a face cansada do seu companheiro, projetando sua sombra no chão claro do trilho. Sentia-se inseguro no escuro. Quis voltar para a cabana e esperar o dia amanhecer; mas não, enfrentaria tudo como um homem: "Não decepcionaria seu velho companheiro.” Pensou.

Em certo trecho, o serrado começou a ficar mais denso. O cheiro forte dos piquis aliviou um pouco a tensão de Libério, que agora desgrudara-se dos braços do velho.

Num instante, o menino viu um vulto atravessar rapidamente o trilho logo em frente. Arrepiou-se todo. Vô Preto, desconfiado, deu um sorriso disfarçado.

- Qui foi minino?

- O sinhô num viu vô? Alguma coisa passô lá na frente!

- Não, num vi não! O quê qui passô?

- Sei lá vô, mas era grande!

De repente outro vulto, e outro, e outro e dezenas deles fizeram com que parassem e esperassem para ver o que era.

Um lobo cinza parou no trilho e ficou obsevando-os. Logo em seguida, um guará rosnou mansinho, mostrando-lhes seus olhos amarelos e volumosos. Vários outros então arrodearam: Negros, rajados, toscos amarronzados e foscos. Dezenas de lobos os obrigaram a seguí-los em frente, escoltando-os pelo.

Libério trêmulo de medo, apenas seguia os passos de Vô Preto; que tranquilo, já parecia acostumado com tudo aquilo.

E lá em frente, na junção do trilho com uma estrada abandonada e velha, viu Libério a face escura e assombrada do enorme bambuzeiro, surgindo por entre os arbustos do serrado cinza. A lua agora boiava no céu, mostrando em detalhes, todos os lobos em reunião.

Pararam a uns cinco metros e esperaram quietíssimos pelos lobos, que foram em rebuliço para de baixo da sombra densa do bambuzeiro.

Como se treinados, vieram escoltando entre eles, uma figura estranha.

Vô Preto tapou os lábios, escondendo de Libério um breve sorriso de satisfação.

"Era Ele..."

Os olhos de Libério arregalaram-se, e o menino não sabia se sentia medo ou entusiasmo.

Do escuro sombrio um rosto pálido surgiu. E havia jovialidade nas feições até encantadoras. Em seguida, como se por encanto, uma das mãos também pálidas surgiu do vulto, e unhas enormes enfeitavam os dedos esguios.

Os dois aproximaram-se.

Enormes fios de cabelos negros, confundiam-se com a capa de couro escura, dando uma imprensão ainda mais sombria; não deixando nada a desejar ao que dissera o velho.

Por baixo da capa, via-se outro vulto conhecido, mostrando-se de vez em quando por reluzidos rápidos: A viola.

Libério impressionou-se ainda mais, quando viu o cinto de corda, trançado por couraça de cascavél, e na ponta: A famosa cabaça.

Simples, porém misteriosa, estralava de leve, quando tocava outro objeto; que sustentava-se ao lado por outra corda fina:" A Taquara-Preta."

Era tudo verdade! - Exclamava para si mesmo.

Esfregando os olhos, Libério pensou ter percebido um sorriso vindo dos lábios pálidos do homem à sua frente. Procurou um lugar para assentar-se pois as pernas não mais lhe cabiam. Não encontrando, enterteu-se ao ouvir a voz de Vô Preto:

- Ah! Véio amigo! Como estais?! - Dizendo isto, andou alguns metros até abraçá-lo.

Enél rendeu-se ao abraço cançado do velho amigo, apenas com um sorriso de satisfação nos lábios.

- Não tão bem quanto tu Sebastião, que estás! -E sorriu, e seu sorriso era estranho aos olhos de Libério, que mantinha-se a uns dez passos, paralizado pela visão daquele homem.

Vô Preto sorriu também, olhando nos olhos claros do Lobo, que quis levá-lo para baixo dos bambus; mas o velho antes, fê-lo lembrar do menino.

- E quem é? - Perguntou Enél ,sereno.

- É um apaixonado pelo seu som!

- Por mim? Só mesmo tu velho! Achega-te moleque. - Falou o violeiro, acenando com as mãos.

Imóvel, Libério não conseguiu pronunciar-se, apenas mexeu com a cabeça timidamente. Mesmo vendo a intimidade dos dois, não conseguia livrar-se do certo assombro que a imagem exótica daquele homem lhe trazia.

Enél então estralou os dedos esguios, fazendo com que um dos lobos fosse buscar o menino.

Este primeiro identificou-o com o focinho e enlaçou-se em suas pernas. Libério sentindo náuseas por causa do medo, tentou recusar. Mas depois deixou guiar-se pelo lobo, que conduziu-o com sinceros e pequenos empurrões com a cabeça peluda.

Alguns segundos depois, Libério cumprimentou a história fantástica de Vô Preto, com suas próprias mãos trêmulas.

- Acalma-te, pois não sou nenhum bicho! - Falou Enél brincando, tentando descontrair o menino.

Quando perceberam, já estavam sob a sombra do enorme bambuzeiro, emvolvidos pela música fantástica que ali fez-se nascer...

A música o vento traz

Ah! Cantiga de cristal

Que as cordas cantam!

A dança, os lobos fazem

Ah! Correria sem fim

Pelo sertão escuro.

Enel está cantando

E as cordas traduzem

Trêmulas a sua voz!

Bambus! Bambus!

Dançando com o vento,

Cantando num alento,

O som do lobo.

A lua ouve quieta

O continuo uivo dos lobos,

Estão cantando... estão cantando!

Naquela noite, Libério viu o violeiro tocar como nunca. Ouvia a música que saía suave da viola de madeira preta. O som suave o fez esquecer-se do medo, da noite, do tempo, dos pais provavelmente preocupados... só ouvia, uma música de saudade; de saudades dos tempos antigos.

Depois, saíram pela estrada velha, levando o menino, até sumirem lá na curva da estrada. Ao chegarem próximos do sítio, Enel parou-se e os lobos também. Vô Preto viu que ele não continuaria.

- Vai menino. Amanhã nóis cunversar, viu?!

Libério deu um abraço no velho violeiro e fitou o rosto sério de Enel, que por um momento quis esboçar um sorriso.

***

- Menino, sai do terreno! O Enél tá na estrada de novo. – Gritou a mulher, vendo o menino parado em frente a porteira. - Onde cê tava nessa hora? Seu Pai; o seu pai vai lhe esquentá! Entra já pra dentro!

Libério sacudiu a cabeça e viu Enél e Vô Preto, juntos com os lobos sumindo na escuridão da estradinha velha. Bordou um sorriso no rosto e entrou.

O resto da noite ficou ouvindo pela fresta da janela, uma dueto de violas: Provavelmente Vô Preto e Enél, o Lobo Violeiro.

Wagner Cruz
Enviado por Wagner Cruz em 23/05/2012
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