_Os românticos

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O romantismo ressurgiu. Passei junto a alguns túmulos e muitos me seguiram. Estavam calados. Olhavam para os paletós desgastados pelo tempo, mas Álvares de Azevedo ainda mantinha no bolso superior esquerdo o lenço azul-marinho trazido da Alemanha há exatos dois anos antes de morrer. Coincidência ou não, ele acaba de cotejar[1] duas datas: 12 de Setembro de 1831 e 25 de Abril de 1852. Parece reflexivo...

Aos poucos iam desenferrujando o verbo. Pareciam buscar nas reminiscências[2] as tiras do passado. Álvares inicia: “É formosa, meu Deus! Desde que a vi na minha alma suspira a sombra dela. E sinto que podia nesta vida num seu lânguido[3] olhar morrer por ela”.

Procuro identificar a musa – surgindo a poesia presume-se a existência de fêmea inspiradora. Mas ao redor apenas tumbas e fotos. Aproximo-me de Álvares. Ele retorna ao estado do silêncio. Parece tristonho. Dentro de um dos mausoléus[4] observo uma foto. É para ela que ele fulmina o poético e sofrido olhar.

– Por que choras, meu amigo? – pergunta Gonçalves Dias ao plumitivo[5].

Ainda agarrado à grade sepulcral da bela senhorita da foto, a resposta:

– Ela silencia.

– “Ela ama a solidão, ama o silêncio, ama o prado florido, a selva umbrosa[6]...” Vamos em boa hora, pois o mundo nos espera!

– Ah vida! Eterna fuga, permanente ilusão. “Vivi a solidão, odeio o mundo, e no orvalho embucei[7] meu rosto pálido como um astro na treva...”. Ela me ignora, Gonça! Como somos tolos e como são tiranas todas as mulheres! Elas nos enfeitam a vida com o gracejo do espanto ao primeiro olhar, mas, furtivas, alimentam nosso mordaz[8] desejo quando nos ignoram. Ela silencia, amigo. Ela silencia...

Almeida Garret se aproxima. Sorri e zomba do inglório amigo:

– Vavá, exaspere-se, claro! Elas merecem qualquer constrição[9]. “Este sonhar acordado, este cismar poético diante dos sublimes espetáculos da natureza, é dos prazeres grandes que Deus concedeu às almas de certa têmpera[10]”. Não sei quanto aos homens, mas foi Deus, certamente – foi Ele, sim, – quem inventou as mulheres.

Os amigos tentam sair do cemitério. Dão as mãos e ensaiam versos para a próxima pândega[11]. Haverá sarau[12] na casa do Barão de Cafundó. Ao cruzarem o portão onde se destaca a inscrição “Última morada”, uma voz os assombra:

“Alma minha gentil[13], que te partiste tão cedo desta vida, descontente, repousa lá no Céu eternamente e viva eu cá na terra sempre triste. Se lá no assento Etéreo[14], onde subiste, memória desta vida se consente, não te esqueças daquele amor ardente que já nos olhos meus tão puro viste”.

Álvares, emocionado, comenta:

– Grande amigo Camões! Como me consola o calor da sua preocupação. Este amor de agora, que me parece infindo, está me consumindo a alma viva, apesar de a morte ser um mal inebriante.

Parecendo alheio aos apelos, a voz continua:

“E se vires que pode merecer-te alguma cousa a dor que me ficou da mágoa, sem remédio, de perder-te, roga a Deus, que teus anos encurtou, que tão cedo de cá me leve a ver-te, quão cedo de meus olhos te levou”.

Eles cruzam a alameda. No muro do cemitério, numa das esquinas, existe uma barbearia. Resolvem ir até ela. Há cadeiras vazias. Sentam-se. Alguns são atendidos. Outros conversam. De repente, surgem três indivíduos estranhos. O fígaro[15] os cumprimenta, aparentando intimidade:

– Bom dia Senhor Machado! Como o senhor está, Seu Raul? Vamos sentar Senhor Visconde! A casa está cheia, mas acomoda todo mundo.

Casimiro de Abreu olha para os amigos e comenta:

– Machado de Assis, Raul Pompeia e Visconde de Taunay não deveriam estar aqui! Entram em nossas cercanias para caçoarem de nós. Isso não vai acabar bem!

Machado de Assis, cutucando o Raul, assevera:

– Mundo cruel! Entender as entrelinhas da realidade humana é muito mais que morrer de amores por frívolas[16] moçoilas que passam, seduzindo os tolos com requebros de maldade.

Álvares, que estava sentado olhando a foto da senhorita, quis levantar-se.

– Ainda não acabou, senhor! – diz o barbeiro. – falta o cavanhaque.

– Como o tempo nos torna diferentes! – comenta Gonçalves Dias, levantando-se. Não foi você quem escreveu que “a mão do tempo e o hálito dos homens murchem a flor das ilusões da vida, musa consoladora. É no teu seio amigo e sossegado que o poeta respira o suave sono”?

Machado silencia. O sino da capela toca doze badaladas e os túmulos são preenchidos pela magia do tempo.

Transtornado, sentado no bar que margeia o Campo Santo, espero que a noite seguinte me alimente de novos versos, banhando-me o devaneio, pois enquanto há vida e medo, somente na loucura encontro a lucidez necessária para viver nessa orbe de aparências.

Juazeiro do Norte-CE, 08 DE Abril de 2012.

11h01min

[1] Comparar.

[2] Lembranças, recordações.

[3] Voluptuoso, desfalecido, abatido.

[4] Sepulcro suntuoso; Sepulcro de Mausolo. O rei Mausolo é mais conhecido por sua tumba chamada Mausoléu de Halicarnasso.

[5] Escritor.

[6] Sombria.

[7] Tapei (o rosto) até aos olhos.

[8] Maledicente, satírico, desejoso.

[9] Aperto, sofrimento.

[10] Índole, caráter.

[11] Festa alegre e ruidosa, patuscada.

[12] Festa noturna em que há dança, música, canto etc.

[13] Nobre, perfeita em virtudes.

[14] Elevado, sublime.

[15] Barbeiro (jocoso)

[16] Levianas, inconstantes, volúveis, fúteis.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 08/05/2012
Reeditado em 08/05/2012
Código do texto: T3656284
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