Engrenagens - 3
Milohridi levou Laura à Torre Abismo, ela precisava voltar pra casa. Leu os acompanhou e durante todo o caminho não disseram nada. Laura estava perturbada com tudo aquilo e só voltar para casa lhe traria algum conforto. Lori não havia saído de seu lado nem por um segundo, mas nem mesmo sua presença a consolava. Sentia-se sem futuro, como se tudo que houvesse pra fazer já tivesse sido feito. Não sabia para onde olhar, nem aonde ir, nem o que pensar. Eles foram até a mesma porta da chave de prata e Laura passou por ela. "Eu te buscarei, espere por mim."
Laura surgiu pela porta da loja, no mesmo instante em que havia desaparecido. O mundo estava esperando por ela. Pegou a sacola de compras e seguiu pelo atalho. A chuva continuava pronta pra cair. Laura correu para casa e aos poucos o vazio de seu coração foi preenchido pela familiaridade daquele lugar. Em poucos minutos já estava diante do prédio onde morava. Ela destrancou o portão com dificuldade e subiu, morava no terceiro andar. "Pai, cheguei. Acho que não esqueci de nada." Ela deixou a sacola de compras na mesa e jogou a mochila sobre uma poltrona. Foi direto cumprimentar seu pai na cama do quarto. "Como o senhor está?" Não importava, ele sempre dizia que estava melhor. Ela lhe beijou a testa enquanto contava como havia sido a aula. Contou os detalhes mais bobos, como, por exemplo o sabor do suco servido na hora do intervalo. Sabia que seu pai precisava daquilo, ele sempre dizia: não são as coisas grandiosas que nos faz vivos, mas as simples, as simples. Então, antes do fim da história, ela pulou da cama. "Vamos jantar... sopa?! De macarrão, cenoura e batata? Vou preparar."
A chuva despencou de vez. Ela se esforçava pra entrar pelas janelas fechadas, por sorte, apenas a da cozinha estava aberta e a chuva não perdoou, encharcou cada centímetro da cozinha. Laura deixou as compras na bancada, buscou um pano e enxugou o chão da melhor forma que pôde. Então, olhou pela janela. Era a única janela que dava para o céu, das outras só se via outras paredes. Mas daquela janela ela via o céu. As grandes ondas de tempestade lambendo a cidade. Laura sentiu um aperto no peito. Desejou silenciosamente que essa chuva pudesse chegar aos Campos de Cinzas, que ela pudesse trazer um pouco de alívio para aquela tristeza. Então, ela picou as batatas e fatiou as cenouras. Em meia hora a sopa estava pronta. Ela preparou dois pratos transbordantes e foi pro quarto. Deitou do lado de seu pai e jantaram assistindo televisão e conversando. Logo já estava dormindo e antes de pegar no sono, Laura desejou que seu pai melhorasse e que Lori aparecesse logo.
Mas Lori não apareceu, ainda não era hora. Milohridi estava em busca de algo que pudesse convencer os Senhores a entregar o castelo à Laura. Ele sabia exatamente a quem poderia recorrer. Leu insistiu para acompanhá-lo e no fundo, ficou agradecido por tê-lo por perto. Levaram meio dia de caminhada para cruzar os Campos de Cinzas. "Aonde exatamente estamos indo?", Milohridi olhou e apontou para algum lugar entre duas montanhas. "Para o Vale dos Vultos." Leu havia ouvido toda sorte de histórias sobre aquele vale, elas eram tristes e falavam sobre sofrimento e arrependimento. Todos de alguma forma as temiam.
Além das cinzas havia uma floresta e ela se estendia até as montanhas. Quando anoiteceu, eles montaram acampamento. Durante a noite, o vermelho do céu desaparecia e as nuvens se tornavam amareladas sobre um negrume absoluto e sólido. Não havia lua, nem estrelas e toda noite ameaçava durar para sempre. Fazia frio e a neblina ao redor das árvores parecia ser de puro gelo. Leu embrulhou-se em um cobertor e se aproximou o máximo possível da fogueira. Milohridi estava inquieto e seus olhos não desviam de seu destino. Não conversaram, nem mesmo se olharam. Quando a fome apertou, Leu comeu alguns pedaços de bolo de frutas e esquentou leite na fogueira. Por fim, ele adormeceu. Lori continuou de pé olhando para o escuro. Vultos não precisam dormir.
"Apronte-se." Foi a primeira coisa que Leu ouviu quando acordou. O vermelho já dominava o céu e o frio havia diminuído, embora só restasse as sobras da fogueira. Leu arrumou sua mochila e seguiu atrás do vulto. Depois de algum tempo de caminhada a floresta os envolveu, engolindo o céu e as nuvens. Andavam entre as árvores sem qualquer trilha para seguir. Milohridi não disse uma só palavra. Nem mesmo quando encontravam as enormes teias, como as de aranha, ou casulos tecidos com fios azuis. Ouviram barulhos de diversos animais, mas Leu não pôde reconhecer nenhum deles e Milohridi pareceu não se importar. Andaram durante toda a manhã e no início da tarde, chegaram ao limite do Vale dos Vultos. Como se emergissem da terra, havia blocos de pedra que, aos poucos, se juntavam e davam forma a uma estrada. A estrada era antiga e a floresta tomara conta dela. Havia folhagens e todo tipo de planta crescendo entre os blocos. "Você não deve continuar. Daqui, sigo sozinho." Leu ficou para trás. Milohridi continuou silenciosamente. A força da floresta havia destruído mais da estrada do que ele se lembrava, mas ela persistia. Vez ou outra ele pôde perceber sinais dos Vultos. Não eram mais do que rastros invisíveis: pegadas deformadas, aromas imprecisos, sombras de claridade.
A medida que avançava o frio aumentava e o hálito gelado da montanha soprava lembranças que há muito tempo decidira abandonar. Por fim, a estrada culminou na Cidade Fantasma. Não passava do esqueleto da cidade dos vultos. Era uma cidade grandiosa, mas abandonada. Milohridi percorreu as praças desoladas, as casas vazias e as torres ocas. Estavam abandonadas, mas ele podia sentir os olhos invisíveis lhe seguindo. Ele sabia que estavam ali. Lori continuou até a escada que subia a montanha. Ele parou por um instante no pé da escada e olhou para trás. Apenas a inexistente, como ele a temia. Medo, ele sentiu medo. Com as mãos trêmulas ele desabotoou o manto que vestia e ele escorregou por seu corpo invisível, amontoando-se no chão. Não restou mais nada para ver, ele havia se tornado um par de olhos vermelhos que vagarosamente se apagaram. Então, o vulto invisível subiu os degraus até encontrar o túnel que levava para o fundo da montanha, para o santuário.
No santuário, estava confinado o Deus Vazio, o senhor dos vultos. Milohridi vagou pelos corredores do interior da montanha. Foram esculpidos há milhares de anos pela vontade do Deus que teimava em escapar. Era um labirinto de pedra e escuro que mergulhava para o coração da montanha e nele estava o grande Ser Vazio. De sua poderosa inexistência, o Deus ouviu o que Milohridi desejava. Havia um escuro insuportável e nada assustava mais do que aquela gigantesca morbidez, aquela imobilidade. Era um estado absoluto daquilo que ainda não foi criado e Milohridi partilhou mais uma vez dele. O corpo oco do Deus pensou sobre aquilo. Seu vulto livre de qualquer existência conhecia tudo o que ainda não era e tudo o que poderia ser pertencia a ele. "Como fazer de Laura a rainha?", a pergunta fez estremecer o céu sobre a montanha e a resposta ecoou como se tivesse sido dita por todas as vozes do mundo.